A INSTIGANTE ARTE DA VIDA - PARTE VI (VIVER DE AMOR)

(Novela em 14 partes)

Renato nascera em Belo Horizonte. Seus pais possuíam dinheiro e puderam proporcionar-lhe infância e adolescência tranquilas e sem limitações materiais ou afetivas. Sendo filho único, todos os seus desejos eram então prontamente realizados. Crescera como um príncipe, envolvido no mais faustuoso conforto. Apesar do estilo, digamos, “temerário” de formação, tornara-se um jovem equilibrado, educado e sensível. Os padrões morais em meio aos quais fora criado proporcionaram-lhe um caráter reto, coeso, ideal.

Mas eis que num fevereiro desses, ao voltarem das costumeiras, já tradicionais férias em Búzios, Renato e seus pais foram vítimas de um terrível acidente automobilístico. Do carro, só a lataria esmagada... Da família, só Renato... Tinha então dezessete anos.

Após tal golpe funesto, o rapaz fechara-se por completo. Não se interessava mais por festas, passeios com amigos, namoros; enfim, todas essas coisas que são normais e até mesmo necessárias à vida de um jovem. Sua existência tornara-se um grande buraco negro, vazio. Afinal perdera, de maneira tão brusca e repentina, as pessoas que mais amava...

Mas, fato notório que é, o tempo vem desmanchando tudo (ou quase tudo) à sua frente e aos poucos, fora se despertando novamente para a vida. Descobrira então as maravilhas das artes plásticas e em consequência disso, o seu talento para a pintura. Pôs-se a criar suas obras compulsivamente! Óleos sobre telas de cores tristes e cenários angustiantes, encarcerados nos limites quadriláteros...

Fora amparado por um primo paterno de segunda geração, rico e poderoso, apesar de muito jovem, que se tornara seu tutor. A pouca diferença de idade, um seis anos apenas, acabou por ajudá-lo bastante, pois além de um guardião, conseguira também um amigo para partilhar a juventude.

Virgílio fora o incentivo materializado nos estudos de belas artes e investia no talento do rapaz com patrocínios e exposições. Dedicava toda sua vida a Renato, protegendo-o como a um filho; sequer casou-se.

Mas com o passar do tempo, aquela dedicação em demasia acabou por sufocá-lo sobremaneira. Sentia-se como uma extensão do tutor, nada podendo fazer sem a sua aprovação. Sutilmente, o tal tutor cobrava-lhe sob várias formas pelo bem que fizera, como se quisesse em troca sua própria liberdade. Apesar de tudo, Renato sentia grandes ternura e respeito por ele; afinal fora seu inseparável companheiro, estando presente nos momentos mais cruciais. Contudo, não poderia se anular, deixar perdurar a situação. Decidiu então desprender-se dele lentamente, o que não estava sendo fácil, pois sua dependência, àquela altura, era até mesmo financeira. Tudo do que precisava, desde materiais para sua arte até um lanche na esquina, derivava de Virgílio. Deixou-se dominar por completo pelo homem obcecado que o controlava, passo a passo.

O grande amor de Diana morava num apartamento situado no nobre e poético bairro de Lourdes, única herança que restou dos falecidos. Na verdade, a assistência absoluta concedida por Virgílio não mais provinha dos seus bens, que relativamente limitados, foram consumidos com o tempo.

Ao entrarem no apartamento, Renato amparou Diana nos braços, acomodando-a no sofá, com o cuidado que se manuseia uma peça de porcelana. Sussurrou, meio que hipnotizado por tantas beleza e graça:

- Jamais me afastarei de você...

Ela beijou-o intensamente! Sentiu a emoção fluir pelos poros, seu corpo inteiro arrepiou-se, quase desfalecido de êxtase, entregue aos toques do seu amado. Faces, ombros, o ventre e os seios lindos acolhiam deliciados os lábios do homem, que desbravadores, exploravam aquela extensão privilegiada de prazer em cada minudência. Em caráter de retribuição, ela acariciava-lhe com as pontas suaves dos dedos das mãos os pelos dourados do peito másculo, robusto, desejando enlouquecida o seu sexo. E se amaram longa e maravilhosamente, até selarem a magia do momento num delírio de gozo intenso! E Diana pôde finalmente sentir o verdadeiro significado do termo “fazer amor”. Apoiou-se sobre os braços de Renato e adormeceram, deitados no tapete, acolhidos pela paz. Lá fora, a noite iluminada de lua, estrelas e faróis os embalava...

Foi ele quem acordou primeiro. Com leves beijos nas faces, despertou-a também; em seguida, levantou-se para providenciar o banho, deixando-a ali.

Do banheiro, ele a chamou, convidando-a a partilhar com ele. Convite este aceito sem hesitação.

No dia seguinte, depois de saborearem as delícias de se adormecer ao lado de quem se ama, foram para um passeio na Praça da Liberdade.

Abraçados e caminhando calmamente, com uma sincronia impecável e em silêncio de paz, apreciavam detalhes só perceptíveis aos olhos dos sentimentos nobres.

As horas se passaram aceleradas e implacáveis. Ao se darem conta delas, resolveram voltar para casa.

Sentiam-se profundamente felizes ali, como se tomados por um passe de mágica, como se envolvidos num elmo sacrossanto de paz! Beijavam-se, trocavam carícias, num deleite delirante! E se amavam muito! Era como se suas vidas fossem o próprio sentido de todas as poesias do mundo! Era como se a Terra inteira se entregasse àquele paradigma de felicidade! Desconsiderando tempo e espaço, eram só amor e prazer, conheciam-se um ao outro mais a cada instante.

Contudo, tais coisas e fatos clamam por movimento, o tempo é dinâmico, não permite estagnação, ainda que justificada pelos deleites do bem-querer, e Diana e Renato foram pressionados a retornarem da viagem paradisíaca a partir do soar da campainha. Vestiram-se bem devagar, peça por peça, com esperanças de que o visitante desistisse de esperar, o que não aconteceu. Renato já estava certo de que se tratava de Virgílio; afinal, sua única possibilidade de visita em pleno domingo. Mal a porta se abriu, este o fez uma repreensão pela demora em atender:

- Pensei que ficaria um século a esperar!

- Acalme-se Virgílio, não exagere!

- Desculpe-me. De fato exagerei um pouco. Estou andando meio tenso ultimamente. Mas como está? Está bem? Não está precisando de nada? Há dias não me procura! Fiquei preocupado!

- Estou ótimo! Melhor, impossível...

Nesse momento, Diana aproximou-se, acatando o sinal de Renato, que a chamava. Virgílio, com olhos arregalados, vibráteis, sem assimilar o que se passava, interrogou num tom um tanto agressivo:

- O que significa isso?

Renato, espantado com a reação rude do amigo, admoestou-o:

- Sou eu quem pergunta, o que significa isso? Não admito que trate assim quem quer que esteja sob o meu teto! Precisa impor a si mesmo certos limites! Bem, esta é Diana, conhecemo-nos há algum tempo e...

Virgílio, mais equilibrado, porém não menos sério, desculpou-se e estendeu sua mão à jovem. Diana, embora assustada com a situação, retribuiu-lhe. Renato continuou:

- Acredito finalmente ter encontrado a mulher de minha vida! Jamais, jamais encontrei alguém que me fizesse tão feliz!

Ao dizer estas últimas palavras, penetrou seu olhar no olhar da jovem e seguiu viagem no brilho profundo, numa sensação tão intensa que os pés pareciam ascender-se do chão!

Virgílio, demonstrando a preocupação paternal de sempre, solicitou que ela se retirasse, alegando necessitar de uma conversa em particular com seu primo. Diana, com um sorriso artificial nos lábios entreabertos, atendeu.

- Renato, não estou entendendo nada! Como pode trazer uma desconhecida para seu apartamento e ainda se dizer perdidamente apaixonado? Você só pode estar louco! Não há o menor sentido nisso! Você nunca agiu assim, está se arriscando, não se pode confiar tanto em qualquer uma!

- Diana não é qualquer uma. A cada minuto que se passa aumenta minha certeza quanto a isso! Virgílio, não sou nenhum inconsequente, incomoda-me a forma como me trata. Tem razão quando diz que nunca agi assim; nunca agi assim porque nunca me senti assim, tão... completo! Sinto-me como se a conhecesse por muito tempo. Cada revelação de uma característica sua não representa surpresa alguma para mim, é como se já esperasse por cada atitude, cada reação!

- Renato, dê tempo ao tempo, isso irá passar; é simplesmente impossível que o que me diz que sente seja real, definitivo!

- Se eu deixar de sentir o que sinto agora, minha vida perderá o sentido! Antes era possível viver com o coração congelado, anulado para algumas emoções, porque desconhecia quão extremo júbilo nos concede o amor. Mas hoje, não creio que consiga prosseguir com a privação desse sentimento.

Um tanto consternado por tudo o que ouviu, Virgílio retirou-se abruptamente, batendo a porta com fúria! Diana saiu do quarto, dizendo:

- Ele não gostou nem um pouco dessa situação, não é?

- É natural que se preocupe. Com o tempo, essa resistência irá passar.

- Espero que tenha razão.

Abraçaram-se...

Virgílio fazia visitas regulares e impertinentes ao seu tutelado. Quase todos os dias! E não media esforços para demonstrar da maneira mais crua possível o descaso com a presença de Diana, embora não pudesse deixar de reconhecer a responsabilidade da mesma sobre a mudança tão positiva de Renato, que se apresentava a cada dia mais alegre, mais iluminado. Decidiu não se pronunciar mais sobre a questão, na esperança de que toda aquela ilusão de romantismo fosse efêmera. Não concebia o fato de ver seu primo tão vulnerável aos encantos da jovem belíssima – isso não podia negar – e sofria; sofrimento este facilmente visível através das feições graves, de pânico torturante e interminável. O fato é que mesmo sob a justificativa de acreditar tratar-se de uma impostora, sem caráter, interessada em tirar proveitos dos mais egoístas e sórdidos da situação, a veemência da revolta de Virgílio não procedia. Aliás, se o motivo fosse unicamente a desconfiança, suas atitudes deveriam ser bem diferentes. Talvez rondasse ali um sentimento desmedido e incontrolável de posse exclusiva, que beirava a insanidade. Queria ser o único, o responsável, o detentor de todas as emoções, todos os sentimentos do artista, que deveria rir ou chorar de acordo com seus comandos. Algo assustador!

Evitava dirigir a palavra à Diana, cuidando para que Renato não percebesse. Conseguia administrar ultrajes sucessivos com uma sutileza impressionante! Estes atingiam o alvo com precisão cirúrgica, sequer resvalando no coração cego e apaixonado de seu protegido. É que havia nele um talento raríssimo para lidar com as palavras. Com a mesma frase, conseguia aniquilar uma pessoa e, simultaneamente, congratular outra, sem contudo denunciar a menor ambiguidade na fala.

Aumentava gradativamente a frequência das visitas, como o intuito claro de controlar os passos do casal. E permanecia durante horas, sentado no sofá a esticar assuntos fúteis e às vezes sem sentido. Diana incomodava-se:

- Ele quer nos vigiar.

- Não, está enganada. Talvez queira conhecê-la melhor, faz parte do seu zelo para comigo.

- Não creio. Você é homem feito, não há sentido nesse exagero!

- Concordo que às vezes são espantosos os seus excessos, mas não sei como me livrar deles. Não posso simplesmente descartá-lo de minha vida, afinal devo-lhe quase tudo. Não seria justo. Mas não se aflija, encontrarei uma saída.

Renato colocou-se pensativo por alguns minutos, até que apanhou o interfone e comunicou-se com a portaria:

- Por favor, quando o Sr. Virgílio chegar, diga-o que viajamos e que desconhece o destino e a data da volta. Instrua também o seu substituto.

Diana emanou um sorriso maroto. Bem sabia que aquela atitude não seria propriamente uma solução. Até mesmo se espantou com a imaturidade do seu dileto. Por alguns instantes, conturbou-se com uma preocupação no mínimo coerente: como assumir e crer num relacionamento duradouro, se havia ali, diante dos seus olhos, uma personalidade despreparada e submissa que mais parecia ter vivido numa redoma de quimeras? De qualquer forma, tiveram alguns dias de paz. Mas não contaram com a perspicácia de Virgílio.

Manhã de domingo. Desconfiado da farsa e ciente dos passeios costumeiros do casal à Praça da Liberdade, ele estacionou seu carro numa rua próxima do prédio em que moravam, ficando à espreita. Quando se aproximaram, molestou-os cinicamente:

- Vocês por aqui? E então, como foi a viagem?

Acompanhou-os ao passeio e as constantes visitas voltaram a acontecer. Diana resolveu tentar aproximar-se do sujeito, para amenizar o constrangimento de Renato. Desdobrava-se em esforços para agradar o poderoso homem, desfazendo-se em gentilezas e desconsiderando certas ofensas “maquiadas” que por vezes via-se obrigada a ouvir. Não obstante seu apuro na polidez fosse inversamente proporcional às aceitação e tolerância do tal homem, viver com Renato era tudo o que queria da vida e valia o sacrifício. No mais, comparando-se ao que sofrera num passado recente, as agressões por ele proferidas eram plenamente superáveis. Era o preço que pagava por seu alívio interior. A teoria filosófica das trocas mútuas de Ana Lara instalou-se em seus conceitos como uma placa de concreto!

O fato é que com ou sem o beneplácito de Virgílio, eles se amavam mais a cada dia.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 02/10/2010
Código do texto: T2533271
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