Eu e Lice: Para ninguém ver (capítulo 01)

(Eu) Havia uma menina. Esta menina aparentava lá seus 09 anos e meio. Seu nome era Analice, mas todos a chamavam de Lice. Seus cabelos eram dourados, da cor do sol, e seus olhos tinham um leve tom azulado. Sim, Lice era uma bela menina. Seu tipo em muito lembrava alguma alemãzinha que vemos por aí, mas a história desta garota era bem diferente de tudo isso.

(Lice) Eu era filha de dois pais. Não estranhe, sim, de dois pais. Isso me orgulhava, pois me fazia diferente. Com eles, agradecia por ter sido deixada, ainda bebê, em um orfanato. Eles eram tudo de bom em minha vida.

Certo dia, saíamos de uma sorveteria. Eu já tinha sono, era relativamente tarde da noite. Estávamos voltando da casa de minha avó Rosa, e tudo parecia muito tranquilo na rua. Meu pai Álvaro havia estacionado o carro a algumas esquinas dali, pois perto da sorveteria, tudo estava cheio. Havia uma igreja por lá que sempre estava lotada.

Eu ia na frente, brincando de me equilibrar no meio fio, enquanto os dois vinham atrás, de mãos dadas. Sabe, era lindo aquilo! Havia sido um dia tão belo, fizemos tantas coisas legais. Meu pai Victor me prometeu que amanhã, logo pela manhã, me levaria para escolher um livro. Era o livro que eu quisesse.

Quando nos afastamos um pouco da igreja, três rapazes, altos, bonitos e sim, de braços fortes, se aproximaram de meus pais. Estranho é que os três eram carecas e um andava com uma lâmpada, dessas grandes, nas mãos. Eles não pareciam eletricistas.

Olhei para trás e continuei andando. Numa hora, eu caí do meio fio. Meu pai Álvaro gritou. Ele me mandou correr. Ele gritou sério. Não teimei, eu corri. Nós brincávamos juntos de pega pega e ele sempre me mandava correr. Era minha brincadeira favorita.

Eu corri, corri, corri muito, mas não vi nenhum deles atrás de mim. "Pai Álvaro?!", "Pai Victor", eu chamei por eles. Sim, eu gritei, é verdade. Não vi ninguém. Decidi voltar, eles podiam ter se perdido de mim. Andei pouco, não foi muito.

De uma certa distância, comecei a ouvir gritos... sim, eram gritos de meus pais. Não eram gritos legais. Porque eles estavam gritando na rua naquela hora? Quis ir mais perto para ver.

Quando cheguei na avenida onde estava nosso carro, comecei a ver o chão sujo, manchado, manchado com sangue. Vi, logo ali, a minha frente, que aqueles homens, os três rapazes, batiam em meus pais... sim, e eles não pareciam estar brincando ou sequer assaltando. Aquela lâmpada estava no chão quebrada, também suja, e meus pais gritavam, eles ainda não haviam me visto.

"Para!", "Para!" gritei o mais alto que pude. Meu pai Victor me olhou. Corri em direção dele. Nessa hora, um dos rapazes, que aliás, tinha uma tatuagem de uma alguma coisa como cruz esquisita no braço, uma cruz vermelha, daquelas de filme, me catou pelo braço. Depois eu não vi mais nada. Quando acordei, estava num hospital.

(Eu) Havia algo que diferenciava aqueles três rapazes dos pais de Lice: o amor. Aqueles jovens moviam-se por ideologias que jamais tinham se quer passado perto de vivenciar. Eram sim, idiotas, cegos, e, por mais que pensassem o contrário, burros. A única diferença deles para um ditador sanguinário era a posição que ocupavam. Um ditador mandava, eles somente copiavam. Eram incapazes de compreender ao menos o amor de dois seres humanos por uma criança. Não interessava o que eles tinham feito com Lice naquele momento. Um momento não é uma vida, uma história. Um momento é passageiro, mas naquele instante, aquele maldito momento marcou, para sempre, a vida da pequena Lice.