Eu e Lice: Pequeno anjo (capítulo 02)

(Eu) Quando algo marca nossa vida, não falamos de uma brincadeira, ou simplesmente de um momentozinho passageiro. Uma marca é uma marca. Uma marca não passa depois de um dia, de um mês ou de um ano. Uma marca está alheia ao tempo, pois se crava num solo em que remédio nenhum pode penetrar. A Lice de agora jamais voltaria a ser aquela Lice.

(Lice) Como já havia dito, quando acordei, eu estava num hospital. Quando se acorda com um barulho chamando por "Doutor Fulano de Tal", e sentindo algo preso no seu corpo, você está num hospital. Acordei mais ou menos, pois tudo estava sem cor, desfigurado... talvez embaçado fosse a palavra mais certa para isso.

"Analice?!" - ouvi alguém me chamar. Não era uma voz conhecida. Eu sempre tive medo de estranhos, então não respondi, preferi fingir que estava dormindo. "Analice, você está bem?!" - olhei de lado. Havia uma pessoa, uma mulher. Ela se vestia com um jaleco branco. Como já falei, meus olhos estavam embaçados, então, não consigo descrever esta mulher.

"Quem é a senhora?" - eu perguntei. "Analice, eu quero te ajudar, confie em mim." - "Cadê meu Pai Victor? E meu pai Álvaro?" - "Meu amor, fique calma." - "Quem é a senhora?" - como eu não via ninguém, comecei a chorar de pouquinho em pouquinho. "Eu sou uma enfermeira deste hospital, irei te ajudar. Está tudo bem, confie em mim!" - "Mas eu quero meu pai" - chorei um pouco mais forte. "Venha comigo, meu amor."

Eu estava num hospital qualquer, então pensei que estivessem me dado algum remédio, e por isso minha visão estava daquele jeito. Aquela mulher me pôs numa cadeira. Era uma cadeira de rodinhas, dessas que deficientes ficam. Ela, ou alguém, começou a me guiar. Minha visão doía. Parecia que o ar me machucava. Fechei os olhos e meio que voltei a dormir. Meio não, eu voltei a dormir.

(Eu) Lice era uma menina pura, inocente, sem maldade, porém muito, muito emotiva. Qualquer coisa a fazia chorar. Se pressionada, podia reagir agressivamente. Seus grandes amores eram seus pais. Álvaro, o mais brincalhão, era um tremendo músico da Orquestra de Sopros de São Paulo. Victor, um consolidado banqueiro da cidade, era sério em tudo, mas para Lice, era um verdadeiro pai. A menina sabia: ele não era um pai normal. Seu maior prazer era sentar com sua filha e dizer a ela: "Pequeno Anjo, isso é certo, isso é errado". Ele sempre falava sério. Apesar do "pequeno anjo", jamais deixou de dar uma lição em Lice quando a oportunidade pedia.

O problema naquilo tudo era que um "jamais" não dura um vida toda. O jamais, assim como tudo na vida, também acaba. O que resta do jamais vira passado, e só existem três lugares para o passado: o nada, o museu e o coração.

(Lice) "Analice, Analice. chegamos" - acordei, do jeito que estava antes, mas agora, com os olhos ainda mais embaçados. "Filha?! Meu pequeno anjo?!" - Era meu pai. Tentei levantar da cadeira, mas a tal mulher me segurou. "Meu amor, não precisa. Você está do lado da cama de seu pai. Vou te colocar em cima". Senti dois braços fortes me levantando. Passei a mão para o lado, e senti meu pai.

"Papai, por que o senhor não foi me ver?! O que está fazendo aqui?!" - "Filha, o papai..." - Ele estava com uma voz esquisita, parecendo de um velho, sei lá. "Analice, seu pai não pode falar muito." - não quis responder. Deixei que papai falasse. Ele iria me explicar aquilo, eu tinha certeza.

"Filha, preste atenção... o papai... - meu pai começou a chorar -... você foi o maior presente da vida do papai. Lice, eu nunca vou deixar de te amar, viu?!" - ele chorava mais forte. Também chorei. "Pai, por que o senhor está falando assim? Eu também amo o senhor. O senhor também..." - "Lice, preste atenção... o papai nunca vai te esquecer, nunca. Eu vou estar no seu coração. Eu te amo, Lice, eu te amo, meu amor." - Nós dois estávamos chorando forte. "Porque papai? Por quê?!" - "Filha," - papai chorou mais forte ainda - "o papai não conseguiu ser o homem que eles gostariam que eu fosse.... filha, o papai falhou.... desculpa, meu anjo... desculpa... eu vou ficar bem... pequeno anjo... Lice,..., meu pequeno anjo,..., reza por mim... reza p..." - "Pai?!" - gritei mais alto que todas as vezes.

(Eu) Outra marca. Depois daquele momento, Lice chorou como nunca havia chorado antes. Mesmo com os olhos embaçados, a menina sentiu que algo havia acontecido. Seu coração, sua alma de pequeno anjo a disse isso. Deus não teve pena de Lice.