Eu e Lice: O dia em que a santa falhou (capítulo 03)

(Eu) Sim. As vossas expectativas não estavam erradas. Pai Victor não estava dizendo outra coisa. Sua fala pausada no "p" era seu fim, literalmente.

O grande conselheiro de Lice deixava o material para habitar no íntimo da menina. Suas lições não seriam esquecidas, e aquela realidade, movida por aquele momento inoportuno, se transformara em um amargo pesar. Os psicólogos chamam isso de trauma.

Lice tomava diariamente a condição de acordar naquele hospital, cada vez com as vistas mais embaçadas, tendo que se submeter sempre a mesma rotina. Seu pai Álvaro também não ia visitá-la. Ele havia se tornado uma planta cujas raízes eram fios e tubos que nada faziam além de o manter "vivo". Diziam os médicos que estava em coma.

Tudo era sem graça na vida da menina. Sua Vó Rosa, alguns colegas de escola e outros amigos da família iam visitá-la sem muitas novidades. A avó era a grande companhia da menina. Apesar de chorar pela morte do filho, não abandonou a neta. Estava lá, diariamente, com uma rigidez descomunal, atendendo a menina sempre que necessário, contando-lhe histórias e tentando, mesmo que sem sucesso algum, animar a criança.

O grande problema que impedia Rosa de levar a Lice a alegria que pretendia, não era a morte de Victor, mas sim algo que ela sabia e que, quando sua neta dormia, a fazia cair em lágrimas e orações especialmente dedicadas a Santa Luzia.

Chegou um dia em que a santa falhou.

(Lice) Acordei como sempre: minha vó e alguma enfermeira no meu quarto conversando algo que eu nunca sabia o que era. O impressionante daquele dia foi que, quando acordei, eu na verdade, não acordei.

Não havia nada perto de mim. Apenas sons - as vozes e os barulhos de hospital. Nada além disso. Parecia que estava sem olhos, literalmente, sem olhos. Nem a claridade do dia eu percebia.

"Vó, cadê a senhora? Eu não estou vendo nada!" - minha vó não respondeu. Só pude ouvir um choro, um berro. "Vó, o que foi? O que está acontecendo?" Ela me abraçou. Senti seus braços me apertarem, mas seu choro não tinha fim.

"Lice, a vovó está aqui." - Vovó disse isso, mas o certo é que ainda não entendia nada. "Lice, você está me vendo?" - a voz era da enfermeira. "Não, não estou vendo nada." - respondi inquieta. Aquilo era péssimo. Tinham que resolver logo. Vovó continuava a chorar, mas minha resposta a fizera berrar outra vez.

(Eu) O mundo mágico, perfeito de Lice, tinha ido embora. Nada restava daquela grande fortaleza física e emocional que rodeava a garota. Sua doçura, sua pureza, parecia dar lugar a uma frieza e rispidez: uma forma inconsciente de fugir da realidade. Todos chamavam isso de mal humor.

De algum modo, os pesadelos com seu pai Victor (que aliás, eram contínuos), e toda aquela rotina monótona configuravam um descontentamento sem tamanho para a menina. A saudade de Álvaro também contribuía para isso.

Saudade, revolta, estresse: se tudo isso era tido como impalpável, invisível, podendo apenas ser captado pelo "sentir", tudo, literalmente tudo, estava agora em par de igualdade com a nova Lice.