Eu e Lice: Se Santa Luzia não faz, Doutora Luzia faz (capítulo 04)

(Eu) A santa falhou e Lice estava completamente no escuro. Vosso trabalho ficará difícil: não será fácil entender uma menina cega, e ainda mais... bem, não é hora. Vamos deixar isso para depois.

Os dias no hospital passavam e para a felicidade geral dos "liceanos" de plantão, a garota conseguida desenvolver alguns sorrisos aqui, outros ali. A avó já não chorava mais, até porque não adiantaria. Lice já tinha se acostumado com as recepções dos enfermeiros ao acordar e aquela lhe parecia uma nova casa.

De algum modo a menina parecia sedada: não conseguia sentir nem ódio, nem raiva, nem saudade: algo a hipnotizara. Parece que após algum tempo de revolta, alguns tendem a se cansar desta ou dar continuidade com cada vez mais afinco, chegando a pontos horríveis. Lice ficou com a primeira opção.

Não, Álvaro não havia acordado ainda. Continuava no seu estado de planta, sendo visitado diariamente por sua única filha, que assim fazia logo depois de acordar.

O que incomodava a criança era a comida do hospital: horrível. Uma salada fria, com um pedaço de carne "babado" - segundo ela - e uma sopa que mais lhe parecia suco de abacate sem coar.

Também sem coar estaria Lice em pouco tempo. Sem coar quer dizer: num estado profundo, ou de felicidade ou de tristeza, sem nada a atrapalhar. Nada mesmo.

(Lice) Acordei de novo. Doutora Luzia entrou no quarto. Já estava acostumado com o som de seu tamanco que me acordava diariamente.

- Analice? Dona Rosa? - Ela nos chamou. Passei uma mão para o lado e dei dois tapinhas em minha avó, que parecia ainda estar dormindo.

- O que foi Doutora? - minha vó disse primeiro que eu.

- Como você está, Analice?

- Ótima - respondi - Consegui dormir bem a noite. Já posso ir visitar meu pai?

- Acho que não vai querer isso agora. - A doutora fez um suspense que nunca me agradava.

- Como assim, doutora? O que aconteceu? - minha vó falou o que eu queria dizer.

- Analice, nós estamos acompanhando seu caso nos últimos tempos e você apresentou um grande progresso. O que temos que cuidar agora é só desta visão. Você ainda precisará se adaptar a bengala, ela será importante daqui para frente. Nem sempre você terá uma vovó dessas para te conduzir para onde precisar. - eu sabia disso.

- Eu sei, doutora.

- Pois é, garotinha. Arrume suas coisas. Hoje foi seu último dia conosco! Lice, estou lhe dando alta. - Alta?! Eu podia ir embora?! Não acreditei!

- Vó, vó?! A senhora ouviu isso?

- Ouvi, meu amor. Senti um abraço forte me apertando. Sorri como não fazia a dias.

- É, Analice, mas nós... - o que era agora?

- Diga, doutora!

- Nós ficaremos com saudades. Você virou uma menina muito querida por todos deste hospital. Venha nos visitar quando puder.

- Venho sim. - Doutora Luzia havia sido uma grande amiga. Não iria esquecê-la.

- Não esquece?

- Não! Eu venho sim! - Senti outro abraço, agora, de alguém com jaleco.

- Doutora... muito obrigado! A senhora nos ajudou muito. Tem recomendações para Lice daqui para frente? - minha vó sempre antecipando as coisas. Eu ri.

- Tenho sim. Saia com ela para passear, para que se acostume com a bengala. Divirta-se com essa menina e não a retorne para o colégio antes de se sentir bem e suficiente pronta para andar. - sentiria falta de meus colegas, mas... - Ah, e não se esqueça: venha aqui nos ver!!

Rimos todos.

(Eu) Até que enfim. A menina Lice se sentiu renovada. Mesmo tendo que andar amparada pela avó, a garotinha saiu sorridente daquele hospital. A despedida dos outros pacientes e do pai tiveram algum grau de emotividade.

Um "eu venho te ver" Lice deixou para Álvaro. Ela acreditava que o pai a ouvia. E quem sabe não estivesse certa?! Mas o mais certo de tudo era uma coisinha só: as aventuras estariam só começando.