Eu e Lice: A estátua: do começo ao (quase) fim (capítulo 10)

(Eu) É bem simples para que eu narre o que houve com Lice. É tão simples quanto simples é um vizinho noticiando ao outro o estupro de uma criança "qualquer". "Qualquer", por não ser parente. "Qualquer", por dar uma pena momentânea, mas, no fundo, não modificar a vida de ninguém. "Qualquer", pois, para o distante, a violência sexual contra uma criança não passa de manchete televisiva útil para se dizer "coitadinha". Sim, "qualquer", pois este que disse "coitadinha", vai dizer aqui, mas vai gritar com uma criança daqui um tempo, se importando consigo, mas sem qualquer sensibilidade com os sentimentos alheios.

Assim é com tudo: é bom apreciar o sofrimento alheio. No fundo, é! Se não fosse, as novelas não teriam audiência e não haveria um mísero leitor se prostando a ler o que escrevo conto.

Percebeu que eu parei a história e não estou dizendo o que houve com Lice? É de propósito! Arte não devia ser algo a se contemplar, e sim, a motivar, a impulsionar mudanças. Se o senhor, ou a senhora, lê o que há aqui e nada modificas, agradeço-lhe pelos capítulos anteriores, mas não preciso de leitores sem ação. A violência contra a criança não é uma ficção. A homofobia também não é uma ficção. Seria lindo se fosse e criativo seria quem as tivesse inventado.

É... e a recuperação de Analice também foi linda. Entre aspas, é claro.

(Lice) Quando acontece o que aconteceu naquele dia, é tipo assim, você fica calada no começo, porque eu acho que é mais fácil assim. Eu não tive medo nos primeiros dias. Era como se estivesse num mundo novo, em algo totalmente diferente do que a casa da vovó.

Era, como tudo vinha sendo, uma novidade. Não havia caído em mim, e isso era muito confortável. Minha mente não pensava no que havia acontecido, eu não tinha a dimensão do que era, e, vivia numa fantasia legal, com vovó todos os dias a me ver, e, durante o período em que passamos no hospital, diversos médicos a me examinarem e uns psicólogos a conversarem comigo, o que passei a achar meio inútil.

Nos primeiros dias, quando voltei para a casa de vovó, também estava sem noção de nada, apesar de não estar indo mais na casa de Seu Tito, como antes. Agora, era ele que vinha me visitar.

Tinha tarde em que ficávamos horas e horas conversando. Ele me contava de suas pinturas, e do que estava nelas. Minha vó fazia bolo de cenoura, de chocolate, de formigueiro, e outros que não lembro.

Tudo era parado, sem ação... não tinha motivos para rir, para chorar, ou se quer para ter medo. Não sabia o que pensar.... isso era chato... queria me motivar, de alguma forma... na verdade, passei a querer isso depois de algum tempo sem fazer nada.

(Eu) Desde o tal ocorrido, duas semanas haviam se passado e Lice tinha ficado no hospital por cinco dias.

Num dia, logo pela manhã, eu comecei a me motivar, e foi uma das sensações mais confusas que tive. Alguém bateu a porta, e minha vó estava em casa, por isso não senti nada.

Lá do quarto, melhor, da cama, pois tinha acabado de acordar, eu ouvi.

- Dona Rosa, a situação de Sérgio no Hospital de São Cipriano agravou bastante nesta última noite, e..., perdão por noticiar isso, mas, ele veio a falecer.

Fiquei parada, quieta, calada... não sabia o que poderia fazer.

Alguns minutos depois, eu levantei da cama, fui para a cozinha, tomei café, com vovó ainda calada. Quando levei um suco - (eu) de morango, totalmente vermelho - (Lice) à boca, eu entendi: um homem me estuprou, e eu matei ele.