Eu e Lice: O(s) homem(ns) (capítulo 11)

(Eu) Alguns dias haviam se passado. A ideia de ter matado alguém mantinha-se viva dentro de Lice, que sempre evitava tocar no assunto. A estatuação da criança prolongava-se. Seu Tito a dava atenção, Dona Rosa a dava amor, mas num dia, a noite também resolveu presenteá-la.

(Lice) Eu já estava quase dormindo quando um homem entrou em meu quarto. Eu tinha voltado a ver. Eu tinha voltado a ver! Fiquei muito feliz, de verdade.

O homem era gordo, e meio alto. Ele começou a andar em minha direção. Tive medo. Ele não parava de andar... "vovó", eu chamei. O homem continuava a vir, cada vez mais, vestido de preto, cor do mal. "Vovó", eu gritei de novo.

Ela nem ninguém vinha me ajudar. Seu Tito estava dormindo na nossa casa, mas ele não aparecia. De repente, o homem passou a mão em minha coxa... doeu....

"Por favor, não... você vai me machucar"... eu chorava, chorava para alguém me ajudar, mas ninguém aparecia. O homem levantou minha coberta. "Para", eu gritei com toda força. Ele levou as mãos em minha calcinha, eu tentei chutar ele, mas...

- Analice, Analice!

- Para! Está doendo...

- Analice, é a vovó!

Calei. Depois chorei. Tudo voltava a ser escuro.

(Eu) A avó abraçou a neta e duas lágrimas desceram de seus olhos. Havia sido um pesadelo, e seu motivo era tudo isso: a morte de Victor, o coma de Álvaro, que, aliás, quis voltar a ser planta, o estupro, o assassinato, a cegueira. Tudo rodava como um redemoinho sem saída na cabeça da criança.

Lice não tinha experiência alguma para lidar com estes sentimentos. Jamais vivenciara algo parecido. Aquelas lágrimas nada eram além das primeiras exteriorizações de tudo o que carregava.

Dona Rosa permaneceu apertando o corpo da neta e pedindo para algum santo no céu a ajudar. "Lice, eu te amo, eu te amo muito", pensava a avó, mas não conseguia dizer. Seus lábios não estavam prontos.

A dor por sentir e não (conseguir) expressar fez mais algumas lágrimas descerem do rosto da senhora. Seu Tito adentrou no quarto e, ao observar a cena, sentou-se do lado das duas, despertando Rosa.

(Lice) Vovó me soltou assustada.

- Seu Tito, fique com ela que eu vou fazer um chá para ela dormir. (Eu) A avó limpou as lágrimas.

(Lice) Vovó saiu, e eu ainda chorava. Seu Tito alisou minha perna, mas não tive coragem de me mover.

Ficamos em silêncio. Tentava falar, mas não ia. Eu sou uma menina muito burra, pensei. Como posso me deixar levar por um sonho bobo?!...

Chorei.

Na verdade, eu acho que não sentia isso.

Queria chorar, e chorava sem parar. De repente, minha boca falou sozinha:

- Eu quero meu pai!

Seu Tito me alisou de novo.

- Cadê meu pai? Por que ele não está aqui? Cadê papai Victor? E papai Álvaro? - eu falava baixinho.

- Lice... deite em meu colo.

- Eu quero meu pai! - chorei.

- Lice, quando eu tinha sua idade, também queria meu pai. - Seu Tito me fez calar - eu nunca conheci meu pai, Analice. Sempre me faltou isso. Nunca eu tive uma noite em que alguém me desse um beijo e nunca eu tive alguém que sentasse do meu lado e me consolasse de noite. Eu também nunca tive pesadelos com meu pai, justamente por nunca o ter visto.

- Eu não sonhei com papai. - falei impaciente.

- Estamos quites, menininha. Eu também não disse que nunca havia sonhado com o meu?! - ele riu - Agora eu já sou velho... nem adianta sonhar. Fico pensando o que meu pai virou. Ele pode ter se tornado uma estrela, uma nota musical, uma flor, uma pedra, ou um colchão.

- Um colchão? - sem querer, eu ri.

- Talvez! Não falam por aí que pai e mãe sempre estão perto de nós? Pois é, quando eu cresci, a única coisa que eu tinha era um colchão. Meu pai pode muito bem ter virado este colchão para eu dormir, não acha?! Se ele me fizesse isso, já não estaria sendo um ótimo pai?! - eu ri de novo. De onde Seu Tito tirou isso?

Conversamos mais um pouco, dessa mesma forma. Depois, vovó chegou com o chá.

(Eu) Naquela noite, Lice dormiu no colo de seu grande amigo, um senhor irreverente que havia transformado todo um drama numa brincadeira divertida apenas com palavras, olhares e gestos.

O já velho Tito, não quis mexer a menina durante a noite, e no quarto ficou, numa posição quase estática, até o dia seguinte. Tudo aquilo havia sido uma terapia para aquele homem, e, quem sabe, também para Lice.

Em crianças, os efeitos de alguns tipos de sessão terapêutica costumam ser menos duradouros.

Infelizmente.