Eu e Lice: O chá burocrático (capítulo 12)

(Eu) Leitor, releia:

"(Lice) Vovó me soltou assustada.

- Seu Tito, fique com ela que eu vou fazer um chá para ela dormir. (Eu) A avó limpou as lágrimas.

(Lice) Vovó saiu, e eu ainda chorava. Seu Tito alisou minha perna, mas não tive coragem de me mover." - Capítulo 11

O que houve com Dona Rosa na cozinha? Por que ela demorou? As respostas não estavam tão longe.

A cozinha da avó de Lice era sempre organizada, embora simples. Havia uma pia de pedra, e acima desta, várias vasilhas e pratos. Haviam também panos. Estes panos, normalmente serviriam para se enxugar utensílios de cozinha, mas, especialmente naquele dia, enxugaram outra coisa.

Rosa limpou seus olhos ainda no quarto de Lice, numa tentativa de disfarçar sua fraqueza diante de Tito. Mal ao sair do quarto, um mar manchou o rosto da senhora, que não pôde se conter.

Lembranças de um passado distante, lembranças do filho perdido e da neta cega transbordaram em frente a ex-mãe e somente avó. Tudo isso veio em forma de água. Por vários minutos, o chá de Lice foi marcado apenas por lágrimas sobre lágrimas.

Cada rio que rasgava o rosto de Rosa contava uma história. O dia em que Victor nasceu; o dia em que ele se formou; o dia em que ele assumiu sua homossexualidade; o dia em que ela conheceu Álvaro; o dia em que eles - Victor e Álvaro - a apresentaram Analice, e momentos profundamente tristes, como o dia em que recebeu, ainda pela madrugada, um telefonema que, em algumas poucas horas, traduziria o fim de uma mãe e o despertar de uma verdadeira avó; o dia em que ficara sabendo da cegueira de Lice, o dia em que Lice recebera alta (finalmente, um feliz); o dia em que saíra sabe-se lá para onde, e que tudo aconteceu, entre outras marcas.

O sonho de sua neta havia provocado na avó com nome de flor uma reação de regresso ao passado e desentendimento com o presente. Tudo pareceu tão efêmero, tão passageiro... em alguns minutos, seu filho cresceu e morreu, e sua neta, por quem tanto dedicava amor, perdeu o pai, a visão e a inocência (isso na concepção da avó).

Para cada lembrança, uma lágrima. A primeira caçarola que Rosa tentou usar para fazer o tal chá ficou banhada pelas lágrimas. A segunda também. Várias assim foram, e muitos panos de cozinha foram usados para sanar o profundo "sangramento interno".

De alguma forma, ver a neta naquela situação provocou na avó tudo isso. Rosa nutria um amor tão grande por Lice que a dor de uma atingia a outra de forma quase que instantânea. Palavra alguma saía porque o mar de lembranças as havia afogado e um coração machucado as havia esmagado.

Algum tempo se passou e um fogo foi preciso para reacordar a senhora. Sem notar, Rosa acendeu a chama do fogão e colocou sobre ela uma caçarola vazia. De lágrimas sobre lágrimas, sua mão direita tocou repentinamente o metal, que já fervilhava. Um "ai" escapou ás lágrimas, e não tardou para o tal chá sair.