Eu e Lice: O bolo de aniversário (capítulo 14)

(Lice) Era o dia do meu aniversário. Estava tão animada com tudo aquilo que pedi a vovó que usasse o vestido que papai tinha dado de presente a ela no dia daquilo.

Segundo vovó, ela tinha colocado balões rosa na parede, feito algodão doce e picolé caseiro. Além do bolo, claro. Eu escolhi de cenoura. Seu Tito estava arrumando a área onde ficaria a mesa, e eu até o ajudei a colocar o forro. Na verdade, nem sei se ajudei. Ouvi o barulho dele arrumando várias vezes o forro. Desculpe, Seu Tito. Ri baixinho.

Quando voltei para a cozinha, não percebi que a mesa do bolo estava em minha frente. Tropecei e caí.

- Lice, o que foi isso? - não dei resposta.

Ouvi o barulho de vovó chegando.

- Preste atenção menina! Use a bengala para andar dentro de casa. Agora, além de eu ter que fazer este bolo de novo, vou ter que limpar isso. Vá para o seu quarto.

Vovó nunca tinha falado assim comigo.

Ninguém nunca tinha falado assim comigo.

(Eu) O relógio marcava 16:20. Ás 17:00, os convidados começariam a chegar. No quarto, Lice se ajeitou num canto, puxou para si os cobertores e por fim, chorou.

Rosa, sempre tão carinhosa, havia mostrado seus espinhos. A senhora vinha de seu quarto, onde havia conversado com alguém no telefone. Alguém misterioso. Uma história misteriosa.

Uma raiva consumiu a menina.

(Lice) Eu não ia voltar para aquela festa. Não ia! Nunca fiz nada de errado para vovó brigar comigo. Nenhum de meus pais nunca havia falado assim comigo. Minha vó tinha que entender que eu não era mais a Lice que ela conhecia só daquelas visitas.

Eu era outra Lice, uma Lice cega. Cega, vó! Eu sou cega! Não vi aquele bolo maldito. Não queria mais aniversário. Ela devia jogar aquilo tudo fora e dispensar os convidados.

(Eu) Lice começou a desmanchar os coques e tirar a roupa.

(Lice - chorando e se descabelando) Eu vou contar pro meu pai.

Minha vó vai ver.

Ele é forte, e me defenderá. Porque ele me ama de verdade.

Vou amanhã mesmo contar tudo isso para ele, e ele vai brigar com ela. Brigar muito, muito. Vai me levar para nossa casa, e eu vou voltar a morar junto com Pai Victor e Pai Álvaro.

Eles me amam. Pai Victor vai me levar no circo semana que vem. E vai comprar outros livros para mim também. Pai Álvaro vai me levar no concerto de sexta. Sexta tem concerto e papai vai tocar. Eles devem tocar Mozart, tenho certeza. Eles sempre tocam Mozart. Eu amo Mozart.

Pai Victor vai me levar para a escola e Professor Cássio vai me dar aula de pintura. Vou levar a boneca da Mari, que esqueci de devolver. Ela não vai brigar comigo. Vou comprar balinha de menta na cantina e dar duas pro Gustavo. Ele em ajudou na prova de história.

Nós vamos adotar outro irmãozinho. Quero que seja um menino. Tomara que venha bebê. Papai Victor já tinha me contado isso. Vamos amanhã mesmo no orfanato olhar os bebês. Vou escolher o mais lindo, e eles vão levá-lo. Eu vou ter meu irmão, e quando ele ficar maior, vou levá-lo na escola.

A professora Ana vai vistar minha tarefa de português. Vou explicar a ela por que faltei aula naquele di...

(Eu) Lice explodiu. Chorou alto. Não, Victor não ia levá-la ao cinema. Na sexta não teria concerto. Seu pai não tocaria Mozart. Mari não receberia a boneca. Gustavo não receberia as balinhas. Eles não iriam adotar um irmãozinho. Ele não seria menino. Ele não seria lindo. A professora Ana não iria vistar a tarefa de português. Lice não iria explicar a ela por que faltou aquele dia.

Tudo isso era ilusão.

Tudo.

Victor tinha morrido. Ele fora assassinato por não conseguir ser o "homem que os outros queriam". O concerto fora adiado para sábado, porque não tinham mais o primeiro violoncelista da orquestra de sopros (que, inusitadamente, tinha um violoncelista. Tinha). Gustavo não se lembrava mais de Lice. Não como ela pensava. Não havia um menininho, bebezinho e lindo no orfanato. Um homem e uma mulher o haviam adotado. Ana já havia zerado as tarefas de Lice, e sabia por que ela tinha faltado naquele dia e o motivo de não ir mais nas aulas.

Todos sabiam. Todos estavam cansados de saber.

Apesar de saber, alguns esquecem. Alguns esqueceriam.