Eu e Lice: O espetáculo de Lice (capítulo 15)

(Eu) Todas as ilusões fantasmagóricas apresentadas no capítulo anterior permearam a cabeça de Lice por alguns minutos. Vinte, no máximo. Quando a menina se concentrava em imaginar sua professora vistando suas tarefas, alguém bateu na porta.

- Analice, abra, meu amor. - a porta não estava trancada, mas Dona Rosa respeitou a menina, que, como sempre, não deu resposta - Meu anjo, perdão, desculpa a vovó. Eu te imploro, Lice, me desculpe.

Após o "toc toc" tradicional da bengala (que, aliás, estava todo o tempo ao lado de Lice), a porta se abriu.

(Lice) Sentei na cama e chorei.

- Meu amor, olhe só... a vovó foi boba, estava triste por causa de um telefonema, mas, já está tudo bem. Vamos arrumar de novo para o aniversário? - não disse nada, embora continuava sem querer festa. - A vovó já até fez outro bolo.

Ela me vestiu novamente, fez a maquiagem tudo de novo, e depois, saímos do quarto. Vovó me levou até a cozinha e sentei na mesa, em silêncio. Um tempinho passou e alguém chamou na porta.

(Eu) Era Fátima, mãe de Ângela, uma das melhores amigas de Lice.

A mulher entrou sem graça, sem saber como lidar com uma cega que usava bengala. Ângela logo a abraçou. A menina era morena, magra, de cabelos encaracolados e usava um vestido rosa reluzente.

O tempo passou, as meninas foram brincar, Fátima trocou poucas palavras com Rosa, e outros convidados chegaram, todos repetindo a mesma ritualística de estranhar Lice, sentar e ir conversar com a avó da menina. Isso, para os adultos. As crianças estavam do lado de fora da casa brincando próximas da residência de Tito.

(Lice) Quando eu já estava cansada e tinha comido três brigadeiros, vovó chamou:

- Vamos cantar parabéns! - como eu já conhecia o caminho, saí correndo. Seu Tito me levou até a mesa, me ajeitou atrás do bolo, eu acho, e começaram a cantar.

No dia antes daquilo acontecer, tinha ido com meus pais na festa da Ângela. Papai Victor tinha levado bolo de chocolate para casa, e estava muito gostoso.

No aniversário, a Ângela tinha me dado uma correntinha de ouro que ela tinha. Não me lembro qual era o símbolo. Eu tinha conversado com a Maria para ela ir em minha casa dois dias depois, e já tinha pedido a mãe dela.

Quando fui conversar com a mãe dela, a Rosângela, ela me beijou e disse que sim, que podia ir sim, mas que a Maria não poderia dormir comigo. Na hora, não gostei, porque queria que ela dormisse lá em casa, mas tive que aceitar, não tinha outra saída.

Na cozinha da casa da Ângela, nós brincamos de boneca. Eu tinha ficado com uma Bárbie, que era mãe das outras. Coloquei o nome na minha de Cristina. Não me lembro o motivo, mas foi este o nome.

Na hora do parabéns, eu soprei a vela da esquerda. Não foi difícil, mas eu quase babei no bolo. Tive que pedir desculpas a Ângela por isso. Comi só meio pedaço porque queria brincar, e se comesse

- Lice, Lice! Vamos Lice! (eu: uma voz gritada por um homem) - no outro dia, quando aconteceu aquilo, pai Álvaro também tinha gritado comigo.

- Ande logo, Analice! (eu: o mesmo homem) - quando gritaram naquele dia, eu corri, porque meus pais mandaram, mas Papai Victor mor..

- Pai! - eu gritei. - Eu quero meu Pai Victor! Vem cá, pai. É o meu aniversário, por que o senhor não está aqui? Olha meu bolo, papai, olha! Foi a vovó que fez. Nem precisamos de comprar bolo desta vez, está vendo? Deve ter ficado gostoso. A vovó é boa cozinheira. Ela até colocou...

(Eu) Todos da festa ouviam, em profundo silêncio, o espetáculo da menina cega. Ninguém se moveu, e as crianças se aglutinaram junto aos pais. Pareciam estar com medo de Lice. Não só pareciam, aliás. Ao decorrer da fala, a menina começou a derramar algumas lágrimas. A maquiagem estava ficando borrada novamente. Sem saber o que fazer, Rosa a segurou pelos braços, levando-a, ainda em estado de choque, para dentro.

Por dez, quinze minutos, Lice falou sem parar. Não ficou um convidado para contar história. Na cozinha, Rosa chorou novamente. Do lado de fora da casa, Tito relembrava a cena, e Zulu olhava para o nada.

Aquele dia havia chegado ao fim. Quase.