Eu e Lice: Os mundos de Lice (capítulo 16)

(Eu) O dia do aniversário da pequena Lice realmente não tinha acabado. Um clima nada comum se espalhava pelo ambiente. Todos estavam num profundo e quase irreversível estado hipnótico gerado pelo que havia acontecido antes. Algo precisava quebrar isso, e Tito tratou de fazê-lo.

O senhor parou de relembrar a inusitada cena de momentos anteriores, foi até sua casa e voltou com um embrulho. Havia algo por lá. O quase avô da menina cega se sentou ao lado de Lice, que já havia calado, e a tocou por duas vezes. Não houve resposta alguma. Na terceira, algo ocorreu.

(Lice)

- Lice, querida?! (Eu: ele falou baixinho.)

- Hm?!

- Eu lhe trouxe um presente, meu amor. - fiquei em silêncio e ele insistiu - Lice, eu lhe trouxe um presente.

- O que é?

- Você vai descobrir. - Seu Tito rasgou um embrulho barulhento. Acho que devia ser um presente grande.

- Toque. - disse ele. Encostei as mãos, e havia algo grudento e molhado. Não me mexi e nem agradeci.

- O que é isso?

- Querida, passe isso em você. Não vai de fazer mal. Eu já fiz muitas vezes, é bom de brincar.

Levemente, eu passei aquilo por meu braço esquerdo. Foi quando descobri: era tinta.

- Tinta Seu Tito? - Como assim tinta?

- É menina! Não se pinta com os olhos. Se pinta com o coração. - ele riu - E, olhe só:trouxe três quadros também. Quando você quiser, esta tinta e estes quadros serão seus companheiros. Não deixe de usá-los, certo?

- Obrigado, Seu Tito. - Falei baixinho. Não sei se ele ouviu. O que importa, é que depois vovó guardou o presente e eu fui pro quarto. Lá, vocês já sabem.

(Eu) "Não se pinta com os olhos. Se pinta com o coração". O coração substitui nossos órgãos físicos? O que é mais importante na vida: a técnica ou a emoção? E quando as emoções movem uma vontade, e o mundo de alguém impede a vontade de ver e a vontade de criar nosso próprio mundo? E quando os outros criam seus mundos e cada mundo cria um mundo e o mundo de um vira o mundo do outro, e no final todos estão num só mundo, e quem fica de fora não tem seu mundo? E quando um mundo construído se transforma em ação, e a ação se transforma em emoção num mundo vindo de outro mundo tão distante do nosso mundo que apenas quem chega é o coração?! E quando...

Assim esteve a mente de Lice naquela noite.