Mulheres, Ressacas e Mosquitos (Segunda Parte)

(Primeira Parte http://www.recantodasletras.com.br/novelas/4942064 )

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Élida realmente trabalhava muito. Vivia cansada e quase não tinha tempo livre. Quando conseguia alguma folga, estava exausta demais para sair para algum lugar. Isso fez com que nossos encontros ocorressem principalmente em sua casa ou na minha. Quando não estava com ela, eu me ocupava das minhas aulas e do projeto para o curta-metragem. Vanessa Rodrigues tinha abandonado o barco, eu e Tiago teríamos que procurar outra pessoa para vender nossa idéia. Essa parte estava sendo mais complicada do que escrever todo o roteiro do filme.

Eu começava a me enfadar da vida de professor. O segundo semestre de aulas já me parecia algo difícil de encarar. Faziam três semanas que Lara tinha viajado para o Sul do país para visitar a mãe. Poucas vezes tinha me ligado nesse período. Eu já imaginava que havia algo de errado, mas resolvi esperar que ela voltasse para tentar entender o que era. A verdade é que aquilo quase me parecia apropriado. Eventualmente eu teria que enfrentar o fato de que não daria para ficar pulando entre Lara e Élida indefinidamente. Pelo menos não se eu fosse sincero. Em poucos dias eu estaria em uma verdadeira sinuca de bico. Para mim seria mais fácil largar meu único emprego do que largar uma das duas.

Cheguei na casa de Élida as 21h. Ela acabara de sair de um plantão e eu podia ver em seus olhos carregados de olheiras que estava completamente exausta. Comemos uma pizza. Ela bebeu uma taça de vinho e eu tomei uma dose de Uísque. Assistimos um episódio de seriado e ela apagou no meu colo. Levei-a para a cama e voltei para a sala. Liguei meu computador e escrevi algumas poesias melancólicas.

Continuei com o Uísque e com os versos até o sono me pegar. Acordei do meu cochilo com o choro de Élida.

- Você vai me deixar, não vai?

- Só se eu fosse um idiota eu deixaria.

- Algo me diz que você tem outra mulher na cabeça.

Por alguns segundos eu hesitei. Mas resolvi por tudo em ordem naquele momento.

- Não deixa de ser verdade. Mas estou com você, não estou?

- Quem é ela?

- Se chama Lara.

- Há quanto tempo você está com ela?

- Dois ou três meses. Mas faz três semanas que não a vejo.

Élida suspirou. Quase aliviada.

- É sua namorada?

- Não. Disse-lhe.

- O que é, então?

- Não sei. Ainda não sei o que pensar.

Élida me deixou sozinho e foi se trancar no quarto.

Recolhi minhas coisas, pedi um taxi e voltei para casa pensando que nada de bom dura muito tempo nessa vida.

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Ela me disse, por fim, laconicamente. - “Foi mal”... – me lembrei. Era tudo o que Lara tinha a me dizer depois do desaparecimento e do silêncio inquietante dos últimos dias. – Tinha retornado de sua viagem e não me procurou nem atendeu minhas ligações por mais de uma semana. Quando lhe questionei o motivo do sumiço, aquelas duas palavras tinham sido sua única resposta. Estávamos no piso térreo de seu prédio. Nem ao menos tinha me chamado para subir. Andei de um lado para o outro e Lara ainda assim não disse mais nada. Para onde tinha ido o encanto do mês passado? - Me fiz a pergunta mentalmente... Ia ser mais uma para o meu rol de perguntas sem respostas. Ouvir aquilo dela realmente não me fez bem. As mesmo tempo que as palavras fluíam de sua boca, me vieram à memória lembranças da mesma moça deitada em meu colo, assistindo um filme qualquer. Sorrindo, sem preocupações. Um abismo separava os dois momentos.

Aceitei tudo calado. Deixei-a sem dizer nada e segui sem rumo pela noite. Cheguei em casa embriagado, mal sabendo coordenar meus passos. Procurei ainda explicações por um tempo, mas terminei sem as respostas... Inquieto e angustiado. A mensagem dela era clara já há algum tempo, mas eu tinha resolvido fechar meus olhos. Cheguei à conclusão de que o laconismo em relacionamentos nunca prenunciou nada de bom. Por fim, adormeci.

...

Ok! Eu devo ser um otário. Ou pelo menos parecer um otário aos olhos de certas mulheres, pensei alto. Em cima de mim devia ter um sinal ou uma aura dizendo. “Olha aqui um cara legal para você fazer de trouxa”. Quando você acorda depois do meio dia, sem nada no estômago e sem a mínima vontade de comer, as tragédias tendem a adquirir um ar de engraçado, ou de irônico. Por isso, eu ria de mim mesmo.

Eu nunca fui bom com ironia. Nem no papel, nem na vida real. Isso por que ironia, para mim está intimamente ligada ao cinismo. Naquele ponto, não existia nada nesse mundo que me irritasse mais do que cinismo. Mas parecia que as mulheres que eu resolvia deixar entrar em minha vida eram sempre cínicas profissionais. Eram sempre muito interessantes, de palavras e de sorrisos doces. De muitas promessas e muitos amores. Mas uma hora ou outra eu sempre descobria alguma palhaçada. Às vezes nem era algo muito grande. Na maioria das vezes só o suficiente para eu me sentir um idiota.

Nessas situações só queria enxotá-las para fora da minha cabeça, dizer-lhes um ou dois palavrões e voltar ao marasmo solitário que precedera sua chegada na minha vida. Mas não, nada era fácil comigo.

Eram nessas situações que elas se entrincheiravam e declaravam que não iam atender a ordem de despejo. Se copiavam em minha carne como se fossem uma tatuagem, e eu tinha ainda que carregá-las comigo, em pensamento, por um bom tempo. Isso tinha acontecido já tantas vezes, que não conseguia não pensar, que eu devia ser mesmo, um grandessíssimo otário.

Era fim de semestre e havia muito trabalho a se fazer na faculdade. Aulas finais. Provas para corrigir e alunos chorando para não serem reprovados. Eu sentia vontade de descontar a minha frustração em todos eles. Para piorar tudo eu peguei uma virose pesada. Fiquei de cama alguns dias. Tive febre e confesso que em certa ocasião pensei que ia morrer. Ou pelo menos pedi que a morte viesse me buscar. Mas ela não veio e tive que me arrastar para faculdade ainda por uma semana.

Tudo transcorreu bem, e eu finalmente consegui tirar licença médica para me recuperar em casa. Estava magro, cansado e principalmente mal alimentado. Não tinha vontade de comer e às vezes vomitava o pouco que comia. Fui me recuperando e minha cabeça começou a voltar ao mundo real. Lara tentou me procurar ainda, mas eu não quis vê-la. Soube pouco tempo depois que não foi só a mãe que ela tinha ido visitar no Sul do país. Tinha arranjado alguém. Eu fora preterido.

Eu queria ter raiva dela por ser tão dissimulada. Na verdade, eu tinha raiva, mas não era exatamente dela. Era mais de mim mesmo, por me permitir esse tipo de coisa. Eu já devia saber que em 99,9% das vezes vai tudo dar em merda. Ainda mais quando se começa daquele jeito. Minha solução para o caso foi me manter em silêncio. Em uma ou duas semanas eu já terei arrumado algo novo para me preocupar e tirar meu sono. Resolvi me contentar com o silêncio mútuo.

Não havia nada de novo. Essas situações eram como um vício para mim. Eu entrava e saia delas com uma frequência que maior do que gostaria de entrar. Ficava remoendo as lembranças e novamente eu queria ter raiva dela. Queria chutar a porta do quarto, pegar o telefone e lhe cuspir alguns palavrões. Mas esse não era o meu tipo de reação. Não era assim que eu lidava com as coisas. Tinha certeza de que daqui a alguns dias estaria me perguntando a origem tanta comoção, como se tivesse acabado de sair de uma amnésia alcoólica.

Era bem isso. Naquele momento eu estava embriagado do que sentia por Lara.

Uma hora tudo ia passar.

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Não estava passando.

Eu queria saber o que tinha me feito cair por aquela mulher, e ter caído tão baixo e tão intensamente. Ok... Aquele era meu jeito. Eu tinha a tendência de cair de quatro por qualquer mulher que trouxesse algo de novo para minha vida. Era como uma droga que eu procurava em doses cada vez maiores. Às vezes elas se preocupavam comigo, mas a maioria não estava nem aí para como eu me sentia depois que deixávamos de nos ver. Talvez eu fosse demais para elas. Intenso demais. Para outras sinto que fui menos do que elas gostariam que eu fosse.

Nunca era algo equilibrado. Sempre tinha que ter alguém fingindo, ou alguém se mutilando para manter a relação. Em geral elas.

Eu era preguiçoso demais para conseguir fingir alguma coisa de uma forma crível. Fingir me cansava. A verdade é que a maioria das mulheres não está preparada para homens sinceros, e que nenhum homem está preparado para mulheres completamente sinceras. Se nós tivéssemos um aparelho que traduzisse o que as mulheres pensam, acho que a boa parte dos homens escolheria a castidade. Por isso, eu não fazia questão de saber o que passava na cabeça das mulheres que levava para a cama. Nem esperava que elas me dissessem sempre a verdade. Sempre achei que uma boa dose de omissão fizesse bem... Já as mentiras me eram desgastantes demais para serem toleráveis. Para mim, descobrir uma mentira era o suficiente para acabar com toda a harmonia. “Harmonia... Isso sim é importante.” Pensei.

Talvez eu tivesse encontrado harmonia com Élida. Pensei em procurá-la, mas logo mudei de idéia. Não encontraria saída daquele poço de bosta em que eu tinha me metido se continuasse procurando o que só ia me puxar mais para baixo. Além disso eu não queria que ela me visse naquele estado por causa de outra mulher. Eu só ia fazer mal a alguém que com certeza não merecia.

Estava fodido demais para a vida dela.

...

Eu queria entender o que estava se passando comigo. Eu quero dizer... queria achar um sentido para todo o ritual a qual eu vinha me submetendo sem nem mesmo perceber. Dormir tarde, acordar tarde, ler livros pela metade, encarar as paredes caindo aos pedaços e as aranhas criarem teias no teto. Beber cerveja. Sozinho ou com companheiros que sequer entendiam o que se passa na minha cabeça.

Eu tinha ido ao aniversario de Vicente no dia anterior.

Eu preferiria ter ficado em casa repetindo a rotina que me submetia desde que tinha entrado de férias e talvez escrever algo que preste.

Mas por apreço ao meu amigo, me forcei a tomar um banho e ir encontrá-lo em um bar próximo de sua casa. Estando lá, posso dizer que tive uma noite razoavelmente agradável, conversando generalidades entre uma bebida e outra. Sobre mulheres, boa parte do tempo, como era de costume entre nós. Aliás, nessas ocasiões sociais, eu sentia que encarnava um papel. Não sei explicar. É como se eu fosse outra pessoa. Totalmente apartada do rapaz que bebe sozinho no meio de semana e escreve poesia e contos de amor frustrado.

Será possível que eu seja duas pessoas? Pensei.

Era engraçado encarar essa perspectiva. A maior parte das pessoas que conviviam comigo não me conhecia de verdade. Boa parte das mulheres que estiveram comigo não me conheciam de verdade. Eu podia simplesmente viver a vida que as pessoas acham que é normal de se viver... Digo... Acordar cedo, ser responsável, assistir TV, consumir toda a bosta que tentam nos enfiar goela abaixo. Arrumar uma namorada, cortar o cabelo, manter a barba aparada. Arranjar um emprego numa repartição pública, ganhar um salário decente. Casar, quem sabe ter filhos, morar num apartamento e ter um carro na garagem... Como se tudo isso fosse uma vitória.

Enfrentar engarrafamento todos os dias. Ler os jornais, preencher palavras cruzadas. Ver futebol, torcer para um time qualquer, reclamar do juiz... Talvez ter uma amante ou duas. Ter algumas brigas sérias com a esposa. Dormir no sofá! Eu sentia que parte de mim tinha a necessidade de embarcar nesse trem e seguir o fluxo. Outra parte achava que nunca ia me ajustar a essa realidade. Provavelmente terminaria solteiro ou divorciado. Num apartamento claustrofóbico, bebendo uísque 12 anos as terças feiras e escrevendo poesia suja. Suburbano, desconhecido como poeta, com mais casos de amor e rompimentos do que eu poderia me lembrar... Envelheceria com um cachorro vira latas aos meus pés. Tão vira latas quanto eu.

Eu me via acordando um dia, numa poltrona desconfortável, moído de ressaca. Olhando para trás no meu passado, novamente dividido, e parte de mim agradeceria não ter entrado naquele trem. A outra parte, talvez se lamentasse, ou se questionasse como tudo poderia ter sido.

Com certeza, aquela madrugada não estava sendo boa para questionamentos filosóficos. Não havia comida na geladeira. Não por que me faltasse dinheiro para comprar. Mas pela minha preguiça de fazê-lo. Não havia bebida. Mas mesmo que houvesse, não me apetecia beber. Também não havia mulher em minha cama.

Só tédio. Tédio e mosquitos.

Naquela noite os tinha comigo em abundância.

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Eu não tinha inspiração para escrever nada diferente. Estava de novo deitado num colchão, com dois ventiladores ligados em cima de mim, tentando fugir de um enxame assassino de mosquitos que se infiltrou no meu quarto. Os miseráveis pareciam ser imunes ao inseticida que eu tinha comigo. Deviam estar usando a porcaria como perfume antes de sair para acasalar e sugar meu sangue. Pois bem. Estava ali, deitado, como de costume em alta madrugada. Eu devia estar dormindo, se quisesse acordar às 7 da manhã para trabalhar segunda feira, mas já havia me conformado em ter apenas umas 4 horas de sono naquele dia. Me sentia angustiado com algumas idéias pipocando na cabeça e não conseguia colocar nada no papel. Era uma sensação daquelas, quando se tem uma palavra na ponta da língua, mas não se consegue lembrar exatamente qual.

...

Uma coisa sobre mim é que boa parte do que eu produzia em texto, seja verso ou prosa, estava ligado a minha situação com alguma mulher.

Bem ou mal eu só escrevia quando estava apaixonado ou na fossa (ou no meio termo entre as duas coisas). Naquele exato momento eu não estava em lugar nenhum entre esses dois extremos. Estava vazio e me sentia bem por isso.

Meu envolvimento com Lara tinha sido fatal nesse ponto. Há uns seis meses que não a via e que não experimentava algo realmente intenso com uma mulher. Parte de mim estava grato com essa nova fase, mas a outra parte não sabia o que fazer. Tantas coisas estavam acontecendo no mundo naquele período. Instabilidade política na Criméia e como bônus uma chance de uma terceira guerra mundial. Conflito nuclear et cetera e tal.

Protestos pelo país inteiro, escândalos de corrupção sem fim, reacionários pedindo volta da ditadura militar. Jornalista inflamando o povo a fazer justiça com as próprias mãos em plena rede nacional.

Avião sumindo dos radares, gente falando em sequestro, terrorismo e até em abdução por ETs. Aulas e mais aulas para preparar. Necessidade de juntar algum dinheiro... Tudo isso me preocupava menos do que meu período de vacas magras de escrita.

Eu tinha algo como um egocentrismo literário.

Só conseguia falar de mim. De como me sentia, como pensava, como via um relacionamento ou uma mulher. TUDO girava ao redor daquela temática. Me tirando isso não sobrava nada.

Tire a droga de um viciado e o deixe em isolamento. Com certeza o coitado vai pirar. Ainda mais se for viciado há muitos anos, como eu era...

Eu não me via enlouquecendo, mas me via amargando como um vinho que se deixa aberto e em pouco tempo vira vinagre.

Eu era vinagre naqueles dias... Afogado em cerveja e preguiça.

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Resolvi enfim sair do ninho. Não tinha muito entusiasmo. Mas achava que era uma necessidade. Tomei algumas cervejas com Vicente e Ayres antes que suas respectivas mulheres começassem a ligar e chamá-los para casa. Me deixaram sozinho depois de 1 da madrugada, no mesmo bar onde eu tinha conhecido Élida. Estava lotado.

Me sentei na mesa de um conhecido. Um anarquista malucão que fumava um cigarro a cada dez minutos. Se chamava Carlos. Gostava de arranjar brigas. Quebrar coisas e eu tinha impressão que até batia em suas mulheres. Mas nunca estava sozinho.

Ele estava na mesa com duas moças que prontamente me apresentou. Quando foram no banheiro, disse-me que eu podia escolher qualquer uma delas. Tanto fazia para ele.

“Passo”, Eu lhe disse. Não estava afim de uma transa casual.

As duas voltaram sorrindo. Carla e Gabriela... A menor delas. Carla, resolveu que devia sentar-se do meu lado, bem próxima a mim e começou a beber do meu copo de cerveja. Era uma morena de uns 1.60. Aparentava não ter mais de 20 anos. Usava um batom vermelho vulgar e tinha os olhos arregalados de quem havia tomado anfetaminas. Falava sobre filmes que eu nunca tinha visto. Bandas tão recentes que eu nunca tinha escutado. Se não estivesse tão louca talvez tivesse sido mais interessante.

Depois de um tempo de conversa, Carlos se levantou, pagou a conta e me disse.

- Vem comigo. Eu e as meninas vamos dar um passeio.

Pensei em negar... mas naquela altura do campeonato, tudo o que me viesse seria lucro. Até um acidente fatal de carro.

Fomos até a lata velha que Carlos dirigia. Um Chevette 1992. Nos aboletamos todos dentro daquela bagunça de veículo e seguimos em direção ao norte. Carlos parou numa praia de dificílimo acesso. Passamos por dentro de uma favela e por uns caminhos de barro. O lugar se chamava Praia del chifre. Ficava num lugar que poucas pessoas iam. Uma praia urbana que quase ninguém sabia que existia.

Carlos desceu do carro e correu em direção ao mar, tirando a roupa pelo meio do caminho. Gabriela já havia se despido antes mesmo de descer do veículo.

Fiquei sentado com Carla ao meu lado.

Parecia que as anfetaminas começaram a perder o efeito e ela estava ficando melancólica.

Se aninhou no meu colo e me ofereceu os lábios para que eu lhe beijasse. Segui o fluxo. Não tinha nada a perder.

Ouvia os gritos insanos de Carlos e Gabriela na beira da praia. Risos e xingamentos contra os três poderes, contra o sistema capitalista e as grandes corporações. No fim, nem Jesus escapou.

Carla adormeceu. Estava gelada.

Tomei seu pulso e percebi que estava bastante lento.

Tinha as pupilas dilatadas e a respiração pesada.

Achei que estava no meio de uma emergência médica.

Quase me desesperei... Quando estava pronto a me levantar para chamar Carlos, senti que ela começava a se mover.

Meteu a mão no zíper da minha calça e começou a me tocar.

Eu tive vontade de rir naquele momento.

Tentei tirar a mão dela de lá, mas ela estava obstinada.

Finalmente resolvi deixar que fizesse o que queria.

Não fomos muito longe naquela noite.

Dormimos os quatro dentro do carro. Eu e Carla atrás e Carlos e Gabriela nos bancos da frente.

Acordei com o sol na cara e com o calor abafado que fazia.

Tinha uma ressaca tremenda. Mas estava de bom humor.

Tomamos todos um banho de mar antes de ir embora. Carlos me deixou no meu apartamento e depois de muito tempo me senti bem naquele ambiente.

Achei que estivesse finalmente curado.

18

Resolvi deixar de trabalhar na faculdade ao fim do segundo semestre de aulas. A rotina daquele emprego vinha me corroendo cada vez mais a cada dia. Eu tinha economizado bastante dinheiro para passar algum tempo desempregado, e conseguia também algum extra fazendo revisão de textos acadêmicos. Os meses foram passando e eu fiquei cada vez mais isolado do mundo fora do meu apartamento. Eu dormia, bebia e escrevia. Era a mesma coisa praticamente todos os dias. Apesar de tudo, me sentia em paz.

Foi nesse tempo que conheci Maysa. Nos encontramos pela internet, onde ela tinha lido um de meus textos. Conversávamos todos os dias por horas seguidas. Ela também era escritora. Se expressava como poucos. Mas o que mais me espantava era a forma que seus textos eram capazes de me tocar e me puxar para fora uma torrente de sentimentos misturados que em geral eu escondia muito bem durante no dia a dia. Maysa então se fez cada vez mais presente em minha vida e ocupou minhas madrugadas com conversas e poesia. Sempre que amanhecia, eu procurava seus versos publicados online. Versos carregados de desejo, mistério, angústia e temores. Cheios de amor e frustração.

Seu versos, de certa forma, soavam aos meus ouvidos, tão familiares quantos os meus. Talvez porque ela me lembrasse de mim mesmo, antes que eu me tornasse tão amargo. Por um tempo, fiquei com tudo isso na cabeça, sem saber ao certo o significado dessa empatia e ignorante quanto aos sentimentos dela.

Até que numa tarde de sexta feira, ela apareceu em minha porta. Com uma mala e uma mochila nas costas.

Entrou em minha vida, povoando meus sonhos intranquilos com toda sua intensidade. Me puxou do fundo do poço, que com tanta insistência eu vinha cavando. Me tirou do marasmo, jogou meu pessimismo fora,

Me fez sorrir um tipo de sorriso que eu tinha esquecido que existia.

Ela me fez calcular possibilidades e me trouxe de volta aquele frio invulgar nos intestinos.

(...)

19

Havia livros espalhados por todo o quarto, junto com nossas roupas e algumas latas vazias de cerveja. Em cima da minha escrivaninha, que Maysa prontamente se apropriou desde que chegou de visita, estava uma garrafa de vinho tinto e uma taça cheia pela metade, ainda marcada com o batom vermelho que estava nos seus lábios no começo da noite.

Ela estava no banho já há algum tempo e eu me mantinha deitado na borda da minha cama pensando se haveria alguma comida na geladeira. Devia passar das quatro da madrugada e não teria onde comprar até que fosse de manhã. Me levantei e fui até a radiola que eu havia comprado num arroubo de nostalgia. Quase não se encontrava vinis em bom estado de conservação naquele tempo, mas eu gostava da atmosfera que eles criavam. Como eu tinha conseguido comprar alguns de Rock clássico e de MPB dos anos 60 e 70, no fim, eu não me arrependera.

Abri mais uma lata de cerveja e tentei dar um jeito na bagunça. Eu era certamente mais desorganizado do que seria aceitável para a maioria das pessoas, e Maysa apesar de não me dizer nada, devia se sentir incomodada. Tomei um gole da bebida e me postei na janela, vendo o horizonte clarear. Maysa saiu finalmente do banheiro. Seminua, vestindo apenas uma calcinha branca, daqueles tipos bem comportados. Ela havia tomado banho e secado os cabelos, por isso a demora. Trazia-os presos num rabo de cavalo ou algo parecido. Me deu um beijo, tomou um gole da minha cerveja e sentou-se na cama. Acendeu um cigarro e depois, um pouco envergonhada, perguntou se eu me importava que ela fumasse.

Eu disse-lhe que não. Afinal, ela passaria quatro dias comigo. Seria cruel de minha parte privar-lhe do vício. Por mais que aquilo realmente me incomodasse.

Aproveitei que ela fumava, distraída, e fui ao banheiro. Tomei um banho rápido, ouvindo-a cantarolar junto com a radiola...

Aquilo era mais do que eu queria para mim naqueles tempos. Mais do que eu podia esperar da vida. Havia meses que eu nadava num mar de bosta e tédio. Sem dinheiro, sem mulheres, sem inspiração para escrever sequer uma lista de compras de supermercado.

Eu continuava sem dinheiro... ou pelo menos com menos do que eu poderia ter. Mulheres não faltariam se quisesse buscá-las por aí. Eram tantas vagando pelas ruas e querendo sentir algo que qualquer idiota que soubesse soletrar o próprio nome sem gaguejar poderia arranjar algumas. Mas eu não queria aquele tipo de coisa. Eu queria uma mulher que trouxesse consigo algum significado, algum mistério insolúvel ou que fosse capaz de mudar alguns dos meus pontos de vista. Maysa tinha tudo aquilo e um pouco mais. Isso somado a dificuldade de vivermos em cidades diferentes, tornava a visita dela o ponto alto das últimas semanas.

A presença dela de certa forma dificultava a minha rotina de beber, escrever e dormir. Mas eu tinha produzido muito mais do que estava acostumado, desde que a conhecera e começamos a nos corresponder. Aquela mulher realmente tinha mudado algo em mim. Tinha jogado palha seca numa brasa que vinha quase se apagando. Por aquilo eu lhe era imensamente grato. Voltei ao quarto e ela já dormia. Como fazia muito calor, ela dispensara os lençóis e eu podia ver seu corpo iluminado pela fraca luz da lamparina da minha cabeceira. Seus seios, que eu tanto gostava, subiam e desciam ao ritmo de sua respiração pesada. Aquela mulher tinha os seios mais belos que eu já vira. Eu poderia passar um dia inteiro só olhando para eles. Eu gostava da extraordinária sensibilidade que ela tinha nessa região. Bastava um toque meu que seus mamilos enrijeciam e assumiam uma cor rósea escura. Suspirei, e tive vontade de acordá-la para fazer amor novamente. Mas logo desisti. Ela havia enfrentado umas 6 horas de viagem para vir me ver. De ônibus e depois avião. Devia estar exausta...

De repente, ouvi um barulho na porta.

Abri e vi o gato, carregando um pardal na boca.

Deixei-o entrar e ele largou o bicho morto, provavelmente apanhado no ninho quando se preparava para o primeiro vôo do dia. Afaguei-lhe a cabeça e joguei o passarinho no lixo

O bicho estranhou a presença de Maysa na casa. Cheirou-lhe todas as coisas, tentou subir na cama para cheirá-la também, mas não o permiti. Deu voltas pelo quarto e quando percebi, tentava dar uma mijada na mala que ela deixara ao lado da escrivaninha. Joguei uma sandália em sua direção e o gato correu e foi se deitar em seu ninho, na cozinha.

Fechei a porta para que ele não viesse ao quarto enquanto eu dormia, e me postei ao lado de Maysa.

Não lembro de ter sonhado aquela noite.

20

Peguei um carro emprestado com Vicente e levei Maysa à praia no dia seguinte. Depois de 50 km de viagem, estávamos diante do mar.

Maysa nadava feliz, pela água quente do mês de novembro. Deslumbrada com o sol e os peixes ao seu redor. Eu a olhava de uma certa distância, preocupado também com nossas coisas na mesa do bar. Ela logo voltou com um sorriso de orelha a orelha. Me beijou e me abraçou, toda molhada. Uma das coisas que eu mais gostava nela era a energia que me passava. Algo quase adolescente. Uma meninice que me entesava e me deixava frequentemente sem palavras.

Recolhi nossas coisas na mesinha de plástico sobre a areia da praia. Paguei a conta ao vendedor e peguei-a pela mão.

-Vamos dar uma volta, você precisa conhecer alguns outros lugares ainda.

Ela me sorriu e concordou com a cabeça.

Andamos de mãos dadas por um quilômetro e pouco. Subimos uma pequena montanha à beira do mar. De lá podíamos ver todos os arredores e o mar azul, se esverdeando a medida que se aproximava da costa.

Então ela me perguntou.

-Você tem alguma outra mulher. Alguém que se importaria por você estar aqui comigo?

A pergunta me pegou um pouco de surpresa, mas eu não tinha por que não lhe responder. Então lhe falei.

- Existe uma ou duas que dificilmente gostariam de saber que estou aqui com você. Ou de saber o que você significa para mim. Mas isso não importa, importa?

Ela, sem se desfazer do sorriso que trazia consigo desde o início manhã, se resumiu a concordar com a cabeça e me beijar longamente em seguida.

- Vamos comer alguma coisa. E não falemos mais sobre esse assunto, ok? Não quero saber de tuas amantes, contanto que não dê de cara com alguma por aí.

Eu tive que concordar com ela, pelo seu jeito tão natural de lidar comigo. Eu não tinha como ir contra aquilo.

Fomos a um restaurante próximo e comemos um ensopado de peixe, com pirão e arroz.

Desde criança eu adorava aquele lugar, aquele tipo de comida, a visão da praia dali de cima do morro. Sempre foi meu programa preferido.

Eu não havia levado nenhuma das minhas amantes, ou mesmo namoradas àquele lugar. O fato de eu tê-la levado devia significar alguma coisa, eu pensava. Eu estava ferrado, provavelmente.

Passamos o resto da tarde naquela praia e depois pegamos a estrada de volta para casa.

Maysa dormiu boa parte do caminho de volta. Ao chegarmos, fui até a cozinha, abri uma cerveja e botei alguma música para animar o ambiente.

O gato dormia sobre a cama.

Maysa se despiu e entrou no banheiro, deixando a porta aberta. Enxotei o gato e procurei alguma roupa limpa dentro do armário logo ao lado da cama. O sal sobre minha pele me incomodava e eu fui até o banheiro. Maysa tomava um banho gelado. Ao me ver, abriu a porta do Box e me convidou para lhe acompanhar. Tirei a roupa e entrei debaixo d’água. Foi um banho rápido, apesar da minha vontade de fazê-lo um pouco mais demorado. Ela saiu logo e se enxugou com minha toalha, cantarolando. Me retive um pouco ali, enquanto ela saia e procurava uma camiseta dentro de sua mala.

Quando saí, ela fumava um cigarro na janela, e o gato ronronava e se esfregava em seus pés, querendo carinho.

Me deitei e recostei a cabeça no travesseiro, ainda um pouco molhado, como era meu costume. Ela largou o cigarro, e sentou-se ao meu lado.

Bebeu um gole de vinho e disse ao meu pé do ouvido.

-Me absorva.

Apagou a luz, montou sobre mim, e descendo a cabeça devagar, beijou-me e tapou completamente minha visão com seus cabelos.

21

Maysa tinha um gosto esquisito por dramas e tragédias. Ela achava que finais felizes tinham algo de irritante ou de clichê. Eu achava que era por que ela não queria esperar finais felizes para as coisas que fazia na vida. Para mim ela só tinha medo de se decepcionar e de ter expectativas frustradas. Então, mantinha aquela aparência de pessimismo quase conformista. Na verdade ela gostava de parecer imediatista. O agora era tudo para ela. Ou era isso que ela fazia questão de demonstrar. Eu já tinha pensado mais de cem vezes sobre o que fazer com nós dois depois que ela fosse embora. Mas eu não tinha coragem de abordar o assunto com ela. Provavelmente estragaria nosso feriado. Eu a conhecia o suficiente para não entrar em assuntos desagradáveis nos momentos errados. Para mim, no entanto, aquele era um assunto que cedo ou tarde teria que ser abordado. Eu me sentia confortável com a presença dela em minha vida, mas ambos sabíamos que para fazer daquilo algo permanente ou pelo menos duradouro, um dos dois teria que se mover e abdicar de várias coisas. No momento aquilo era impossível. Se não era impossível, era complicado demais para pensar, sem que houvesse realmente uma vontade de tornar tudo real.

Eu via que Maysa já colocava nossa história no rol de dramas e tragédias amorosas de sua vida e eu tinha uma opinião diferente. Apesar de ter na minha cabeça que termos uma relação perene naquele momento não era algo pratico e factível, não desconsiderava a possibilidade de que fossemos fazer isso algum dia.

Talvez fosse diferença entre nossas idades, ou simplesmente as cabeças diferentes. Esse pensamento tinha me vindo quando ela me deixou sozinho e foi ao mercado comprar cigarros e mais vinho.

Eu já começava a me angustiar com toda aquela possibilidade de drama, quando ouvi o barulho de chaves girando na porta. Ela largou as compras na cozinha, correu até a cama e me disse de sopetão.

-Quero um dos teus originais. Quero algo de ti, que se brigarmos, eu possa rasgar ou tocar fogo. Algo que teu que eu possa destruir.

-Por que isso tudo agora, mulher?

-Eu não tenho nada teu. Quero um pedaço de ti. Algo insubstituível. Algo que se perderes, seria uma perda irreparável. Podes me dar algo assim?

Pensei por alguns segundos, me levantei e peguei um maço de papel dentro de uma gaveta.

Dentro havia um conto que era quase um romance. Eu me debruçara sobre ele por várias semanas, mas nunca consegui concluir a contento. Mesmo assim tinha-lhe um grande apreço. Queria terminar um dia, mas não sabia quando seria possível. Me faltava algo para isso.

Entreguei-lhe o maço e falei.

- É seu. Não tem nome ainda. Não tem fim. É bem antigo. Não o tenho mais no computador. Um dia, talvez, eu o termine. Então trate de não queimá-lo. Disse finalmente.

Maysa sorriu e folheou o bolo de papéis.

Acho que a primeira página lhe agradou. Pois logo depois de ler, se levantou e disse tirando a camisa.

-É só você não me deixar.

Fizemos amor ali mesmo, sobre as folhas do meu romance inacabado.

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Eu era só mais uma criatura atordoada pelo amor, pensei. Mais uma de tantas referências a obra de Charles Bukowski em minha vida. Eu ia continuar bebendo, escrevendo e dormindo depois que ela fosse embora, mas tudo seria diferente, eu sabia. Iria dormir com uma angústia quase doce, noite após noite. Com saudade do retrogosto de cigarro nos beijos dela. Do cheiro de Xampu que invadia meu quarto depois dos longos banhos gelados que tomava. Da ordem que ela punha na minha bagunça. Eu via que até o gato ia sentir sua falta.

Faltava pouco para a hora de entrar no carro e levá-la no aeroporto. Maysa, no entanto, dormia a sono solto. Tinha arrumado as malas previamente. Era muito mais organizada do que eu, que deixava sempre tudo para a última hora. Enterrei minha cabeça nos cabelos dela e pedi que o tempo passasse um pouco mais devagar, mas logo o despertador tocou e ela levantou sobressaltada. Deu um sorriso amarelo e um curto beijo em meus lábios. Se levantou sem dizer nada e eu fingi que olhava algo no celular. Não queria que me olhasse e visse a vermelhidão nos meus olhos. Não havia dormido nada, ansioso com sua viagem.

Ela pôs tudo em ordem e veio até mim.

- Vamos. Já é hora. Não posso perder o vôo.

Eu me levantei, fingindo um sorriso e peguei as chaves do carro.

Ela conversou alegremente sobre o que iria fazer quando chegasse em casa. Disse que ligaria assim que pudesse. Falou que gostaria que eu lhe visitasse em breve.

Eu assenti com a cabeça e tentei me concentrar no caminho até o aeroporto. Ela continuou a tagarelar. Estacionei o carro, retirei a mala e fomos até o guichê de sua companhia aérea.

Ela despachou a bagagem e fomos até o portão de embarque.

Nos despedimos sem muita conversa e ela seguiu pela entrada. Me retive ali ainda por um tempo, um pouco atordoado e só depois que não restava mais ninguém do lado de fora da ala de embarque eu me virei e voltei para o carro.

Liguei o rádio numa estação qualquer e tomei o caminho de volta.

Em casa, o gato estava sobre a cama, deitado no lado em que ela dormira. Deixei-o quieto.

Sentei-me a escrivaninha e abri o computador. Eu logo voltaria a minha rotina de beber, escrever e dormir... Mas não havia nada para agora.

Caí na cama pensando em como seriam as coisas daqui para frente.

Fim

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 29/08/2014
Reeditado em 31/08/2014
Código do texto: T4942067
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