A AGONIA DO TRAIDOR DE TIRADENTES

“Melhor negócio de Judas

fazes tu, Joaquim Silvério:

que ele traiu Jesus Cristo,

tu trais um simples Alferes.

Recebeu trinta dinheiros...

-e tu muitas coisas pede:

pensão para toda a vida,

perdão para quanto deves,

comenda para o pescoço,

honras, glórias, privilégios.

E andas tão bem na cobrança

que quase tudo recebes”.

(“Romanceiro da Inconfidência”-Cecília Meireles)

Capitulo I

O apito do vapor avisava que dentro de pouco tempo ia zarpar com destino ao Rio. Os catraieiros recebiam as bagagens. Carruagens velozes chegavam ao porto trazendo passageiros retardatários. Algumas pessoas choravam. Escravos acompanhavam seus donos na viagem.

O coronel Joaquim Silvério dos Reis Montenegro observava o movimento do pé da rampa que dava para o Largo do Palácio. Ele teve vontade de viver no Rio outra vez. O cotidiano da ilha de São Luís era para ele acanhado e monótono.

Sentia-se como desterrado, longe dos acontecimentos que agitavam a Corte Real. Gostava de transitar em torno do poder. Desde moço acostumara-se a conviver com governadores, vice-reis e outras autoridades. Mas sua presença incômoda levara a Coroa a obrigá-lo a morar no Maranhão, pois, tornara-se figura indesejável nos meios palacianos de tanto pedir favores e mordomias e cometer falcatruas.

Chegara a escrever uma carta a Dom João VI, dizendo que fora injustiçado ao ser removido para o Maranhão. Logo ele que prestara um alto serviço à Rainha Dona Maria I, denunciando a Inconfidência Mineira. Nessa missiva, solicitou a Dom João VI que estudasse a possibilidade de determinar o seu retorno ao Rio.

O coronel ajeitou na cabeça o chapéu de feltro de cor marrom. Foi surpreendido com uma mão no seu ombro direito. Era o comandante Venâncio, do Quartel de Campo de Ourique. Ambos sempre conversavam horas a fio.

-O coronel se espantou?

-Não, comandante, disfarçou o coronel apontando para o vapor que apitou três vezes e partiu, singrando as águas do mar.

-O mar está bravio, comentou o comandante.

-E muito, disse o coronel, olhando-o fixamente.

-Você parece que anda desanimado ou é impressão minha? – O comandante indagou com gesto de preocupação, franzindo as sobrancelhas.

-É raiva de tanta injustiça contra mim.

-Cuidado, coronel, raiva mata. Tenho uma boa nova para você.

-O que é? – Quis saber o coronel, curioso.

-O governado Curuba é metido a besta. Quer ser sério, no entanto, faz cada uma que se Dom João VI soubesse mandaria ele para as profundas do inferno. Os magistrados não gostam dele, porque é falso. O povo detesta tanto ele que o chama de Curuba, devido àquelas sarnas nojentas que carrega no corpo.

O comandante ouviu em silêncio, gesticulando um não com a cabeça em sinal de desaprovação.

-Hoje, você está muito revoltado coronel. O governador é um homem bom e decente. O seu governo é um dos mais tranquilos dos últimos tempos. Essas brigas dos magistrados com ele é maldade desses privilégios absurdos.

-Não fez nada que preste até agora. Passa o tempo coçando as sarnas.

O comandante sorriu, dizendo que a doença de pele do governador estava desaparecendo com a vinda de um remédio da Inglaterra. E explicou que quanto a essa briga entre o governador e os magistrados estava do lado do governador. O comandante salientou que concordava com o mandatário quando dizia que a maldade e a intriga é obra dos magistrados e o povo é um bom vassalo.

O coronel mudou o tom da conversa, suavizando o seu temperamento irascível. Tinha a rara capacidade de passar da irritação à brandura, sobretudo quando pretendia se beneficiar de alguma coisa. Nesses momentos, ficava até gentil, porém, virava uma fera ao ter um interesse contrariado. Com humildade, ele pediu ao comandante.

-Veja se dar para o governador me arranjar umas sesmarias. Ele tem que saber agradar também a gente. Só a panelinha do palácio não pode.

-Vou falar com o governador na primeira oportunidade. – O comandante tinha um vozeirão próprio daqueles que dirigem tropas.

-Eu lhe agradeço muito se fizer isso para mim. Estou precisando de mais umas terrinhas. Só as que tenho no interior não dão.

-Está certo, coronel.

Com a mão no peito, o coronel justificou o pedido:

-Se não aproveitarmos as oportunidades da vida, se morre na miséria. Tem aquela história que se diz que a sorte é um cavalo que passa a galope em frente a nossa casa. Se você não saltar na sela do animal nunca mais tem outra chance. Aprendi essa lição muito cedo.

-Também acho.

O vapor desaparecia no horizonte. Mar e céu confundiam-se. As águas verdes do mar brilhavam como espelhos.

-Não tive sorte até agora. Estou velho e sem fortuna. Perdi o que tinha em Vila Rica. Tive fazendas e mais de 100 escravos. Hoje estou vivendo de soldos. O governador Visconde de Barbacena mandou sequestrar os meus bens por causa da dívida. Esse foi o prêmio que ganhei ao salvar a Coroa de uma conspiração.

-Coronel, você se queixa muito da vida. Pelo que sei a Rainha Dona Maria I lhe deu uma pensão, o Hábito de Cristo e o título de fidalgo em reconhecimento à sua atuação na Inconfidência Mineira. O comandante falava olhando para os cabelos grisalhos do coronel.

O rosto do coronel ficou vermelho diante da declaração do comandante. Irritado, com a mão direita levantada, disparou.

-Só isso não basta. Por que não devolveram os meus bens? São uns ingratos. Além disso, quase ia perdendo a vida. Depois que saí da prisão da Ilha das Cobras sofri um tiro de bacamarte que ainda me atingiu de raspão. Depois, como se fosse pouco, tentaram atar fogo na casa que estava morando.

-Quem que você acha que era? Indagou o comandante.

-Ora, era alguém ligado aos inconfidentes.

-Era mesmo. Era uma pessoa do movimento, concordou o comandante batendo a bota no chão. Como você foi tratado na prisão?

-Bem, de acordo com a minha patente de coronel. Fui preso para ser acareado como testemunha de acusação. Andava livremente na Ilha das Cobras. Os inconfidentes é que sofreram nas masmorras.

O comandante mostrava-se interessado no assunto.

-Depois, o coronel foi fazer o quê?

-Eu e meu sogro, que também era coronel, recebemos a missão de zelar pelos bens de um nobre em Campos, Estado do Rio de Janeiro.

-Coronel, pelo que soube lá você e seu sogro cometeram muitas arbitrariedades. Pessoas prejudicadas denunciaram à Corte graves atos que vocês praticaram;

O coronel irritou-se

-É mentira. Eu e meu sogro fomos vítimas de calúnias. Somente não permitimos que alguns escroques se apoderassem do patrimônio alheio.

-Mas, a Corte acreditou na versão dessas pessoas que se consideravam prejudicadas.

-Acreditou porque foi ludibriada com mentiras, disse o coronel com a voz alterada.

No porto, navios eram carregados de algodão que era exportado em grande quantidade para Portugal e Inglaterra. O comandante observava o vai e vem dos escravos que levavam nas costas o peso do algodão.

Enraivecido, o coronel retomou a conversa:

-Eram todos safados. Queriam ficar mamando nas tetas dos outros e não permitimos isso.

-De Campos você foi para o Rio de Janeiro?

-Eu e meu sogro demos as nossas explicações à Corte sobre os fatos que aconteceram em Campos. Em seguida, eu e minha mulher fomos a Portugal, ficando lá como hóspedes do Reino durante um bom tempo. Visitei a Freguesia da Sé na cidade de Leira, onde nasci. Se há uma coisa de que me arrependo é ter regressado para o Brasil. A minha mulher ficou insistindo em voltar por causa de sua família. Por isso, tive que regressar.

Apertando a mão o coronel, o comandante disso:

-Coronel, eu vou pegar a minha carruagem. Tenho que ir ao quartel. Se quiser lhe deixo em casa.

-Obrigado. Preciso caminhar para estirar as pernas. Não se esqueça das sesmarias, lembrou o coronel.

A carruagem andou célere. O vento soprava entre as folhagens das palmeiras. O coronel respirou fundo, caminhando cabisbaixo pelas ladeiras.

“Tenho que conseguir as sesmarias”, meditava o coronel. “O comandante Venâncio é a pessoa mais indicada para isso através do seu prestígio junto ao Curuba”.

Recentemente, o coronel estivera no interior e ficara entusiasmado com a plantação de algodão em suas terras. Estava lhe faltando mais dinheiro e terra para dedicar à lavoura e à criação de gado.

Entrou em casa. Dona Bernadina estava sentada numa cadeira de embalo na varanda. O filho Manuelzinho divertia-se perto dela.

-Agora, Montenegro? – Os olhos negros dela transmitiam pureza.

-Já lhe disse que não deve se preocupar comigo. Se demorei é porque estava fazendo alguma coisa.

Dona Bernadina Perguntou se o coronel queria almoçar. Ele respondeu que não estava com fome. Mais tarde, talvez, comesse.

Dona Bernadina foi à copa. O coronel olhava vagamente para as paredes de pedra e caldo sobrado em que morava.

-Ainda tem vinho, Bernadina? – O coronel tinha o habito de beber uma caneca de vinho por volta de meio-dia antes de almoçar.

Ela deu-lhe o vinho. O coronel sentou-se à mesa, olhou para a mulher e bebeu com vontade o primeiro gole.

-Bernadina, precisamos diminuir as despesas. Os meus soldos não aumentaram mais.

-Montenegro, tenho feito o possível para gastar menos. As despesas de uma casa são grandes.

-Eu tive uma notícia alvissareira hoje. O comandante Venâncio me falou que o governador Curuba vai distribuir sesmarias. Pedi ao comandante que me ajuda, conseguindo umas para mim. Amanhã vou ao quartel para lembra a ele sobre o meu pedido.

Entre uma frase e outra o coronel bebia o vinho. A bebida relaxava-o, deixando-o mais afetuoso. Manuelzinho olhava o pai sem entender direito o diálogo entre o coronel e a mãe. O coronel chamou-o para junto de si. Manuelzinho aproximou-se devagarinho, com preguiça.

-Vem cá meu filho – O coronel alisou os cabelos do menino.

-Montenegro, o Manuelzinho está gripado. Não fica muito perto dele.

-Gripe não mata. Manuelzinho, meu filho, eu quero que você seja um comerciante. Comércio é que dá dinheiro.

Dona Bernadina arrumava peças de ornamentação da cristaleira. O coronel tomou mais um gole de vinho, pensando nos negócios que poderia fazer caso ganhasse as sesmarias. Dona Bernadina virou-se para o coronel.

-Montenegro, cada dia que passa o Manuelzinho se parece mais contigo. Esse nariz grande não nega. Os cabelos nem se fala. Resta ver se vai ficar alto como tu.

-Os olhos dele é a cópia fiel dos teus, observou o coronel bebendo mais.

-O que o meu filho se parece comigo é o gênio tranquilo e pacato. É um menino educado de nascença, disse dona Bernadina com orgulho.

-Não gosto do jeito pomba mole dele. Prefiro que seja enérgico como eu. Nada de ser parecer com mulher. Homem é homem e mulher é mulher.

Dona Bernadina voltou a perguntar ao coronel se ele não queria almoçar o ensopado de bacalhau que estava gostoso.

-Mais tarde. Ainda não estou com fome.

-Montenegro, você está suando tanto que a camisa esta toda molhada. Que é isso?

-Não sei. De uns tempos para cá venho sentindo um mal estar como se fosse desmaiar.

-Você está um pouco pálido. Dona Bernadina enxugou o suor que gotejava da testa do marido.

A escrava Rosa apareceu dos fundos da casa. Os peitos duros da negra pareciam querer sair de dentro da blusa de chita. Dona Bernadina perguntou a Rosa se já tinha almoçado com o negro Domingos.

-Acabamos agorinha. Tava bom, dona Bernadina.

-O negro Domingos já fez a limpeza do quintal? Interrogou o coronel com rispidez.

-Fez. – Rosa respondeu timidamente, assemelhando-se a um animal amedrontado.

-Diga a ele que não quero serviço porco. Depois, vou olhar se a limpeza está parecendo com a cara dele. Esse negro Domingos só levando umas chicotadas. Quando comprei parecia esperto. Agora, está preguiçoso.

-Montenegro, eu vi o Domingos limpando o quintal. O serviço está bem feito.

-Bernadina, tu tens o mau costume de defender escravo como se fosse gente igual a nós. Escravo tem que ser tratado com taca no lombo.

O coronel falava irritado, a ponto de ficar com a veia do pescoço inchada e vermelha. Dona Bernadina notou a vermelhidão do marido.

-Montenegro, evita te irritar à toa. Cuidado com a saúde. Deixe as tarefas domésticas comigo.

-Qualquer hora dessa levo ele para o interior para trabalhar na roça. Estou precisando de mais negros lá. O cabra que toma conta de minha lavoura e de meu gado é mau para escravo. Escravo com ele é no chicote.

Domingos surgiu trazendo uma bacia cheia de juçaras. O caroços arroxeados da fruta chamam a atenção de dona Bernadina, que retirou um para admirar.

-Que coisa gostosa. Eu adoro essa fruta, vibrou dona Bernadina. Montenegro, você devia tomar uma juçara. Dizem que contém muito ferro e é boa para anemia.

-Não gosto. Vocês que apreciam que bebam.

-Juçara é bom como quê, exclamou Domingos, mostrando os dentes brancos e as gengivas roxas.

-Negro, não estou falando contigo. Conhece o teu lugar. Vai cuidar do meu cavalo que é melhor. Já deste ração para o Tróia? E o quintal foi bem limpo ou deixaste uma porcaria? Cuidado negro. Ajeita-te senão o chicote vai tinir em tuas costas. Sai daqui e vai logo dar um banho no Tróia.

Rosa e Domingos saíram silenciosos como cães enxotados. Por trás, salientavam-se os músculos dos braços e do tórax de Domingos. Estava vestido em um calção branco que cobria os joelhos.

O coronel ainda deu um berro para eles ouvirem:

-Negro aqui é no relho.

 

Capitulo II

O coronel estava na sala de espera do gabinete em que o comandante Venâncio despachava. Havia um entra e sai de militares. Os subordinados batiam continência para o coronel. Outros o cumprimentavam solenemente. Um oficial robusto quis saber do coronel se sua licença estava terminando. O coronel explicou que ia renová-la por motivos de saúde. Talvez, tão cedo não voltasse à ativa. O ajudante de ordens do comandante interrompeu-os, convidando o coronel para entrar.

-Seja bem vindo, coronel, saudou o comandante com seu porte marcial e o uniforme engalanado. Pode sentar-se.

-Comandante, o calor está sufocante. – O coronel puxou a cadeira, sentando-se

O gabinete do comandante era amplo, decorado com um grande crucifixo de Cristo e quadros de reis portugueses, tendo como destaque um Dom João VI. O comandante tirou do bolso o seu relógio de algibeira para conferir a hora.

-Até agora correu um vento. –A voz metálica do comandante ressoava no recinto.

-Melhorou um pouco. O calor esta insuportável. – O coronel suava.

-Ontem em casa estava me lembrando de uns documentos que li sobre a Inconfidência Mineira. O coronel se incomoda conversar sobre isso?

-Para mim nem fede nem cheira, disfarçou o coronel indiferença.

-Águas passadas não movem moinho, não é coronel? Posso lhe fazer uma pergunta?

-Pode. – O coronel olhou para o chão.

-Você esteve ao lado dos inconfidentes?

-De início, aderi ao movimento. Quando percebi que não tinha pé nem cabeça, saltei fora.

O coronel baixou a cabeça para ocultar alguma coisa dentro de si. O comandante ergueu-se com o peito estufado e as mãos nos bolsos.

-Não fique melindrado comigo, mas dizem que o coronel denunciou os inconfidentes por interesses pessoais.

-Isso é injúria. – O coronel exaltou-se. – Denunciou os inconfidentes por interesses pessoais.

-Isso é injúria. – O coronel exaltou-se. – Denunciei os inconfidentes por lealdade à Coroa. Eu é quem saí levando a pior em toda essa história. – O coronel fingia com ar de vítima. – Não sou traidor como querem fazer crer. Os conjurados é que pretendiam trair a Coroa. Se não fosse eu estaríamos hoje escravizados pelo regime que iam implantar aqui.

-Não resta dúvida que você deu uma importância contribuição, ponderou o comandantes.

Colérico, o coronel falava, arregalando os olhos:

-Tenho sofrido mais que certos inconfidentes como Tomaz Antonio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Só foi a forca a Tiradentes, porque deu uma de herói. O Cláudio Manoel da Costa se matou por covardia.

-Nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira consta que todos eles procuraram salvar a pele, com exceção de Tiradentes.

O comandante voltou a tomar assento. O coronel levantou-se nervoso.

-Não fui eu apenas quem delatei. Também denunciaram os tenentes-coronéis Basílio Malheiro do Lago e Inácop Correia Pamplona. No entanto, a triste fama só pegou em mim.

Bem informado, o comandante tinha conhecimento de que o coronel entrara na Inconfidência Mineira na esperança de ter sua dívida perdoada junto a Fazenda Real, caso a revolução triunfasse. Porém, ao ser pressionado pelos credores, teve a ideia de delatar a sedição para o governador de Minas, Visconde de Barbacena.

A curiosidade do comandante crescia, à medida que o coronel contava qual tinha sido o seu papel na Inconfidência Mineira.

-Em Vila Rica havia grande insatisfação por parte do povo?

O coronel franziu a testa

-Era grande o descontentamento devido a cobrança da quinta parta do ouro extraído – a chamada Derrama. Nas casas de fundição o ouro era transformado em barras e em seguida carimbado como ouro quintado. A corte havia estabelecido uma cota mínima de 1.500 quilos, mesmo com a produção diminuindo em virtude da exaustão das minas. Ao saber da Inconfidência, o Visconde de Barbacena decidiu, por habilidade política, adiar a Derrama para enfraquecer a conspiração.

O comandante estimulava a conversa, perguntando ao coronel se esse havia seguido Tiradentes ao Rio Janeiro. O coronel disse que o Visconde de Barbacena exigira dele duas coisas: que fizesse do próprio punho a denúncia, para que pudesse processar os conjurados; segundo que seguisse Tiradentes no Rio e mantivesse contatos com o vice-rei com Luis de Vasconcelos, o informado sobre os passos de Tiradentes.

A pergunta do comandante se Tiradentes desconfiara, o coronel respondeu que não. Ao contrário, Tiradentes exultou de alegria ao se deparar com o coronel nas ruas do Rio.

-Tiradentes foi logo me dizendo que já tinha conseguido adesões de militares, e que muito em breve a revolução estaria vitoriosa. Tiradentes só desconfiou de mim no começo, quando o sargento-mor Luiz Vaz de Toledo me levou a uma reunião na casa do coronel Alvarenga Peixoto, apresentando-me como o mais novo simpatizante da causa. eu notei que ele não gostou da minha presença.

O ajudante de ordem entrou na sala para dizer ao comandante que uma autoridade do governo pretendia falar com ele. O comandante mandou que o ajudante de ordens solicitasse que a autoridade voltasse à tarde, se possível. O ajudante de ordens balançou a cabeça em sinal de acatamento e fechou a porta.

Confiando o espesso bigode, o comandante indagou:

-E o vice-rei Dom Luis de Vasconcelos como viu a conspiração?

-Ora, mandou militares vigiarem Tiradentes dia e noite. O vice-rei era severo. Não perdoava aos seus opositores.

O coronel sentiu-se em de certo instante como um réu interrogado por um juiz. Teve ímpetos de cortar o diálogo bruscamente. Conteve-se para evitar constrangimento.

-Há uma versão de que o vice-rei ameaçou-o quando Tiradentes desapareceu?

-Foi. Fiquei chateado. Tive pesadelos durante algumas noites, porque não localizava Tiradentes. No dia anterior ao desaparecimento dele, estivemos numa praça e ele chegou a me dizer que estava sendo seguido. No entanto, não me disse que ia se esconder. Só escapei da ameaça do vice-rei porque me encontrei com o padre Ignácio Rangel e ele sabia do endereço de Tiradentes. Mas o padre não quis me dizer o local em que Tiradentes havia se escondido. Aí fui ao vice-rei e contei-lhe do meu encontro com o padre. Raivoso, o vice-rei ordenou que militares buscassem o padre. Este, na presença do vice-rei, insistiu em não querer dar o paradeiro de Tiradentes. Esmurrando a mesa, dom Luis de Vasconcelos ameaçou colocá-lo na enxovia. Aí o padre se amedrontou e deu o endereço de Tiradentes.

O comandante disse que soubera que Tiradentes tentara resistir à prisão, no entanto, os militares terminaram rendendo-o com armas na mão. Enquanto isso, em Vila Rica os outros inconfidentes eram presos e levados para o presídio da Ilha das Cobras.

O coronel aparentava cansaço. Contudo, o comandante puxava mais coisas sobre a Inconfidência Mineira, procurando saber por que o movimento fracassara.

-Comandante, o senhor achaque revolução de poetas, padres e gente abastada vai para a frente ? Em Vila Rica, no começo, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, que comandava a tropa mais importante, deu apoio ao movimento. Mas, quando ele viu que a coisa começava a ficar seria, recuou e passou a adiar a deflagração da revolução. E depois de preso, contou tudo. Dessa forma aconteceu com todos os inconfidentes.

-Quer dizer que o único firme foi Tiradentes? –O comandante apertou o seu próprio punho para enfatizar a pergunta.

-Acho que foi um ingênuo, porque assumiu tudo para si, enquanto os outros procuraram se inocentar. Tiradentes deveria ter se calado e ter como os outros dado pouca importância ao movimento.

-Concordo, disse o comandante batendo na cadeira com suas botas lustrosas. –Tiradentes, coronel, era um agitador perigoso. Vivia pregando a revolução nas estalagens por onde passava. Um elemento desse tipo tem que ser eliminado do convívio social, pois é capaz de desagregar a sociedade. Além disso, a Coroa tinha que dar o exemplo, enforcando-o e esquartejando-o, para que outros pensassem duas vezes antes de ter essa ousadia.

O coronel tossiu e levantou-se para cuspir na escarradeira. O comandante especulava sobre a personalidade de Tiradentes. O coronel retornou, caminhando meio encurvado.

-Comandante, o senhor acha que não vão aparecer outros Tiradentes? – O coronel esperou a resposta com a mão no queixo.

-Aqui, no Maranhão, se surgir um Tiradentes, vai se dar mal. Tivemos o nosso Tiradentes e foi enforcado também.

-Quem era? – O coronel abriu os olhos com interesse.

-Foi Bequimão. Lutou contra o estanco. Se deu mal. Ele chegou a derrubar o governador da época e assumiu o poder político em São Luís. Só que El-Rei mandou tropas de Portugal para sufocar os rebeldes. Atualmente, não vejo sinais de revoltas aqui. São Luís é uma sociedade com maioria de portugueses. A dominação de Portugal é forte aqui. Mesmo que venha a surgir qualquer movimento de independência, estamos preparados para combatê-lo sem piedade. Para revolucionários temos forca e cadeia.

-Eu não pretendo mais entrar nessas coisas. Quero tranqüilidade, suspirou o coronel.

-Está certo. Você já deu sua contribuição. Deixe isso para os mais novos. Voltando à Inconfidência: se eu fosse a Rainha Dona Maria I, teria enforcado mais uns dois. Não teria dado vida fácil para o desembargador Tomaz Antonio Gonzaga, que está numa boa em Moçambique e nem ao coronel Alvarenga Peixoto, que foi ainda muito benevolente.

O coronel lembrou ao comandante que a mulher de Alvarenga Peixoto, Barbara Heliodora, ficara louca em consequência do desterro do marido. Ela era poeta e contam que a loucura dela foi ficar recitando versos pelas ruas.

-Já me falaram dela. Era uma mulher bonita, e que incentivou muito o marido a não trair os companheiros. – O comandante esfregou os olhos.

-Eu acho que ela enlouqueceu também porque confiscaram todos os bens de Alvarenga Peixoto. Ele era um homem muito rico. Dono de fazendas minas de ouro e de escravos.

O comandante disse que pobre mesmo era Tiradentes, no entanto, era o único corajoso, enfrentara o patíbulo sem medo. Para ele, os outros inconfidentes eram covardes. O comandante encerrou a conversa dizendo que se tratava de um assunto importante a Inconfidência Mineira, principalmente para ele que era o responsável pela segurança da sociedade maranhense.

O coronel cumprimentou o comandante e saiu. No portão do quartel deparou-se com outros militares que fizeram questão de abordá-lo. Entre eles, o coronel era tido como um militar famoso pela sua participação na Conjuração Mineira.

A caminho de casa, o coronel se lembrou que esquecera de falar para o comandante tratar de seu pedido de sesmarias junto ao governador. A prosa entre eles tinha sido tão absorvente que se descuidara do mais importante.

Um negro gritava o seu pregão, chamando a atenção dos transeuntes para as vísceras que estava vendendo. Nas ruas, via-se mais gente negra. Uns levavam carroças d’água. Outros carregavam cestas vindas dos armazéns de secos e molhados. Outro português era visto com guarda-chuva, para proteger-se do sol escaldante.

O coronel parou cansado antes de chegar em casa. Até há pouco tempo andava com mais disposição. Era capaz de caminhar o dobro do percurso que acabara de fazer sem sentir-se mal. Caíram-lhe pelos pescoços gotas de suor. Os cabelos grisalhos estavam molhados.

Capitulo III

-Bernardina, de uns dias para cá, venho sentindo uma fraqueza no corpo.

-Montenegro, você tem que se descontrair.

-Estou necessitando de um tratamento para ver o que está acontecendo comigo. Deve ser a velhice. A velhice é mesmo a decadência. Tudo que é ruim aparece com ela.

O coronel falava lembrando dos seus tempos de mocidade em Vila Rica, quando começou a namorar dona Bernadina. Ele chamou a atenção da mulher para a diferença existente entre a juventude e a velhice, revelando certo desgosto no seu modo de falar.

-Montenegro, a gente tem que se conformar com essas coisas da vida. A bíblia diz que há tempos para tudo. Somente com a fé em Deus podemos compreender a nossa existência e ter uma velhice cheia de sabedoria. Sem religião não há salvação.

Dona Bernadina contemplou o teto do sobrado com seus olhos piedosos.

-Vou ter que me consultar com o médico do quartel. Talvez, ele descubra a causa dessa fraqueza. – O coronel estava preocupado.

-Não sei não. Mas acho que tudo isso é excesso de nervosismo.

-Até que não estou muito agitado.

-Agora que você está mais calmo, Montenegro. Você foi temperamental a vida inteira. Providencia ir logo ao médico. Se for alguma doença a gente fica sabendo. Vou fazer um chá para ti. Serve como calmante.

Dona Bernadina foi à cozinha. Mandou Rosa preparar o chá de erva. Vestida numa longa saia, batendo nas pernas, e blusa de mangas compridas, dona Bernadina retornou para a sala, atapetada e decorada com móveis de jacarandá. Ali, o coronel recepcionava os visitantes.

-Já mandei a Rosa fazer o chá. Você vai melhorar imediatamente. Quem me ensinou esse chá foi minha mãe, que dava sempre para o papai se acalmar quando ficava nervoso.

-Meu sogro se parecia muito comigo, pelo menos no temperamento. Em campos, quando passamos lá uma temporada, enfrentamos um pessoal que queria nos botar para trás. O diabo é que o vice-rei não nos apoiou.

-Naquele tempo, Montenegro, eu fiquei com medo deles matarem tu e papai. Eu não dormia de noite pensando que acontecesse o pior. Fiz muitas orações para Deus. Ele acolheu as minhas preces.

-Se eu e teu pai estivéssemos amolecido aquela corja tinha montado em cima de nós, Bernadina.

Dona Bernadina disse que bons tempos foram aqueles que ela e o coronel passaram em Portugal, sendo bem recebidos pela Corte.

-É pena que a Rainha Dona Maria I já estivesse enlouquecendo. Devíamos ter ficado em Portugal para sempre. Como o destino é imprevisível. Viemos terminar os nossos dias no Maranhão. –Dona Bernadina recordava com emoção.

-A culpa foi tua, Bernadina. É claro que eu gostaria de viver lá também ou então no Rio. O Maranhão é muito devagar para mim.

-Não faz muita diferença para mim, Montenegro. Eu quase não saio de casa. Tanto faz como tanto fez. Até que eu gosto dessa ilha. Faz calor, mas tem um agradável vento que vem do mar. Os sobrados se parecem com os de Portugal. Nesse ponto se parece com Vila Rica.

-É mesmo, disse o coronel abrindo a boca.

-No Maranhão, não tem aquelas intrigas políticas. É tranqüilo.

-Não tem? Você é que está por fora, Bernadina. O maranhão é terra de mexericos e de mentiras.

-É mesmo? Pois eu pensava o contrário. Então, eu prefiro ficar em paz na minha casa. Viver na rua só da confusão.

-Também não dá para se viver só enfurnado em casa.

-Vocês homens são mesmos rueiros. Só sabem viver na rua. Depois chegam em casa se queixando. E não se emendam. Meu filho Manuelzinho, não quero que fique perdido na rua. Quero que ele seja estudioso e goste de rezar.

Dona Bernadina beijou as faces rosadas do filho, que estava se agarrando nas pernas dela. Rosa chegou com uma chávena numa bandeja de prata.

-Ta quentinho, seu Montenegro, estendeu Rosa a chávena para o coronel.

-Rosa tu não trouxeste para mim, reclamou dona Bernadina com sua polidez.

-Ô, dona Bernadina, Lamentou Rosa botando a mão na cabeça.

-Traz um pouquinho minha negra.

-Está tão quente que pelou minha língua, exclamou o coronel fazendo uma careta.

-Montenegro, o Manuelzinho brinca sozinho. Às vezes fico com pena do meu filho não ter uma companhia para brincar. Seja feita a vontade de Deus que não quis que nascesse outro para fazer companhia a ele. A providência Divina só nos deu ele e assim mesmo já tarde. Já estamos velhos e ele ainda é criança. Meu filho qual foi o exercício que a professora passou para você?

Dona Bernadina tratava o garoto com mimo extremado. Manuelzinho mostrou-lhe o caderno de Português. O menino deixava-se afagar com prazer. Tanta era a ternura da mãe. Como dona Bernadina, ele era um criatura meiga, muito diferente do tipo rude do pai.

Manuelzinho pouco se comunicava com o pai. Tomava-lhe a bênção e nada mais. Dona Bernadina é que era o seu grande ídolo. Tinha um profundo amor por ela. Jamais dona Bernadina o tratou com rispidez. No máximo, fazia-lhe carinhosas advertências.

O menino era inteligente. Aprendia com facilidade as lições da escola e da vida que dona Bernadina lhe ministrava.

Certa vez dona Bernadina fora repreendida pelo coronel. Manuelzinho chorou solidário com a mãe. Naquele instante, teve vontade de ser adulto para enfrentar o pai de homem para homem. Se fosse grande não permitiria o tratamento rude que o coronel dera a mãe. Apesar do gênio pacífico, Manuelzinho não tolerava qualquer ofensa à dona Bernadina.

O sol declinava no poente. A tarde começava a ficar amena. O coronel tinha adormecido depois do chá. Dona Bernadina saiu na ponta do pés para não acordá-lo. Pediu a Manuelzinho para não fazer barulho.

Quando o coronel dormia reinava tranqüilidade na casa. Havia um silêncio de convento. Somente o coronel com sua voz alta e gestos autoritários quebrava a paz do lar. Os escravos sentiam-se aliviados.

Enquanto o coronel roncava, Domingos fumava um cigarro de palha. Dava cada baforada que a fumaça fazia uma densa espiral. Deitado no quarto dos escravos que dava para o quintal, Domingos passava a mão na barriga rija. Tinha os músculos avantajados e o maxilar anguloso. A sua tez era tão escura que brilhava.

Rosa era uma negra jovem como Domingos. Tinha o corpo bem detalhado. Pernas torneadas e cintura de violão. Aproveitando o sono do coronel, Domingos e Rosa ficavam juntos. Ela consertava roupas. Ambos odiavam o coronel. Mas, sentiam uma estima por dona Bernadina. Se dependesse do coronel, os pretos teriam vida igual a dos cães. Dona Bernardina era quem amenizava a situação deles, proporcionando-lhes alimentação, vestuário e teto decente. Se não fora como ocorria constantemente nas casas de fidalgos que castigavam demais os seus escravos.

Domingos sempre teve ímpetos de fugir toda vez que era humilhado pelo coronel. Rosa era quem o dissuadia a ficar, advertindo-o para as conseqüências de uma fuga. No auge da indignação, Domingos dizia que era melhor ser livre por um dia do que ser escravo a vida inteira.

-Calma Domingos, falava Rosa acariciando o negro.

-Não agüento mais. – Domingos desabafava cheio de ódio.

-Tem paciência.

-Só tu, Rosa, para me amansar.

Domingos ficava mais quieto com as ponderações de Rosa. Ele dizia:

-O coronel é mau.

-Todos eles são maus. Aqui, tem a vantagem de dona Bernadina ser uma pessoa boa. Nas outras casa não é assim. É pior.

-É... Se não fosse dona Bernadina, nós seríamos açoitados todos os dias. E só não nos ferraram no peito quando o coronel nos comprou porque dona Bernadina não deixou. Os outros escravos são ferrados como se faz com animais.

-Então é melhor ficar por aqui.

-Rosa, eu já ouvi falar que no interior tem quilombos onde a gente pode viver sem ser escravo de ninguém.

-Será que é verdade, Domingos?

-É sim. Há escravos que foram embora para lá e não voltaram mais.

-E como tem uns que voltam para a casa do senhor?

-Esses fugiram sem destino certo como merda n’água. Aí são pegos pelo capitão do mato. Quem vai direto para o quilombo nunca mais retorna.

Rosa dirigiu-se para a varanda onde dona Bernadina preenchia o tempo fazendo crochê. Com as mãos ágeis, ela tecia um guardanapo mais ou menos em um mês.

-A senhora quer alguma coisa, dona Bernadina? A escrava perguntou com as mãos nos quadris.

-Não. Agora não. – Dona Bernadina respondeu sem tirar a vista do crochê.

-Seu Montenegro acordou, disse Rosa.

Dona Bernadina olhou para o lado. O coronel estava enxugando o rosto numa toalha.

-Até que dormi bem. – O coronel mostrava-se tranqüilo.

-Viu, Montenegro, como o chá é bom?

Nuvens negras acumulavam-se no céu. Trovões e relâmpagos explodiam à distância.

-Bernadina, eu não vou mais sair hoje. Vai chover muito.

-Tomara, estamos precisando de chuva. Tão dizendo que o Rio Bacanga está secando por falta de chuva,

-Me lembrei agora de Vila Rica no inverno.

-E eu.

-Vila Rica não será mais aquela terra próspera como dantes. –Dona Bernadina voltou ao crochê.

-Será terra maldita e nada mais, - O coronel falava com mágoa.

-Tudo o que aconteceu lá parece um pesadelo. Muito ouro, muita opulência para terminar em nada. O dinheiro é mesmo coisa do demônio.

-Dinheiro, Bernadina, é a mola do mundo. Dinheiro é bom e eu gosto. Dinheiro é a minha paixão.

-Montenegro, para onde foi aquele ouro todo de Vila Rica?

-Ora, para Portugal.

-Aqui, no Maranhão, tem ouro? – Dona Bernadina tecia o crochê.

-Diziam que tem. O maranhão tem futuro. É uma terra rica. Vila Rica só tinha ouro.

-Pelo menos, Montenegro, nós estamos livres daquelas coisas ruins de Vila Rica.

-É o lado bom daqui. Vila Rica de triste memória, disse o coronel angustiado.

-O negócio, Montenegro, é não te envolveres mais em política.

-Tens razão. Política é a arte do diabo. Meu projeto é ganhar umas sesmarias e plantar cana de açúcar, algodão, arroz e criar boi.

Dona Bernadina parou o crochê. Ajeitou-se na cadeira para dar prosseguimento ao seu passatempo. O coronel disse que tinha ainda que trabalhar bastante para fazer fortuna e esquecer os acontecimento desagradáveis do passado. Indagado por dona Bernadina se não pretendia voltar para o quartel, o coronel falou que não tinha mais vontade de retornar à caserna, e que seu objetivo era dentro de algum tempo requerer a sua ida para a reserva. 

Capitulo IV

O coronel andava à toa pelas ruas estreitas, subindo e descendo ladeiras, com passos vacilantes. Às vezes parava na Fonte do Ribeirão para admirar a beleza daquele monumento, um dos mais antigos da cidade. Ficava olhando a água jorrar das carrancas da Fonte. Escravos passavam para apanhar água.

Depois, seguiu para a praça de maior movimento comercial, onde os leiloeiros chamavam pessoas para comprarem as mercadorias. A mercadoria mais valiosa era o escravo. Os interessados na compra dos negros revistavam os dentes, os pés e as virilhas dos escravos, avaliando a força física deles.

Ele se entreteve por algum tempo com o pregão dos leiloeiros. Quase oferecia um lance para comprar um escravo que lhe interessou pela estatura muito alta, com fisionomia semelhante a um negro que possuirá em Minas. Desistiu ao constatar que o dinheiro a ser pago pelo escravo ia lhe fazer falta.

O coronel resolveu sentar-se num banco do logradouro público, arborizado com pés de amendoeiras. Nessas andanças, usava chapei que o tornava menos reconhecível.

Comerciantes, caixeiros e simples curiosos faziam comentários sobre o coronel.

-Aquele ali é o Silvério dos Reis, dizia um deles.

Um sujeito metido a sabichão perguntou:

-Você não sabe quem é?

-Não, respondeu um caixeiro.

-Ele traiu Tiradentes.

-Foi mesmo? Admirou-se um homem que fumava um charuto.

-Não é possível, duvidou outro elemento.

-Não é possível? Ora, exclamou um comerciante.

-Um traidor desse merece ser morto, sentenciou um sujeito de barba.

-Para mim é um leproso.

-É um aborto da natureza.

O bate-papo ficou exaltado. As vozes dos populares cresciam, levando um português barrigudo a pedir mais silêncio, porque a conversa estava atrapalhando o atendimento aos fregueses. No entanto, a discussão continuou caótica. Todos querendo falar de uma só vez.

-Ah, se aparecesse um cabra para matar este peste, desejou um rapaz.

-O outro também foi um tolo.

-Quem?

-O Tiradentes.

-Por quê?

-Não vale a pena morrer por um povo ordinário desse, disse o velho indignado.

-Tá certo, mais esse Silvério dos Reis é um vil traidor.

-Deve estar bem de vida. É fidalgo. Tá com o bolso cheio de dinheiro.

-Não interessa ganhar dinheiro dessa maneira, afirmou um moço irritado.

-Essa figura me enoja, me causa asco. O homem cuspiu de nojo.

-É um asqueroso.

-Ele caminha encurvado como se carregasse um peso nas costas.

-É o peso da consciência que dói.

-Qual é a profissão dele?

-Traidor.

-Não, ele serviu à Coroa, interveio um português.

-E o que é a Coroa senão traidora do nosso povo? Leva nossas riquezas, nos escraviza, nos prende e mata.

-Nisso aí eu concordo com você.

-Tiradentes tinha razão.

Houve um silêncio. Uns disseram que era melhor acabar com a conversa: Outros argumentaram que o assunto estava bom e palpitante. Por isso, preferiam continuar falando.

-Tiradentes foi um trouxa. Deveria estar vivo para continuar lutando. Era só ter pedido clemência à Rainha Dona Maria I.

-Como?

-Os outros fizeram isso. Tiradentes deveria ter fingido estar arrependido.

-Tiradentes era homem de fibra. Morreu com dignidade, passando para a história. É herói e mártir. O frei Raimundo Penaforte que confessou Tiradentes antes de morrer, disse esta sobre ele: “-É um daqueles indivíduos da espécie humana que colocam em espantos a própria natureza”.

-Tiradentes morreu pela boca igual a peixe. Os entendidos dizem que era linguarudo, comentou um cidadão com aparência de letrado.

-Se ele assumisse ou não a responsabilidade pela Inconfidência daria no mesmo. Seria enforcado do mesmo jeito.

-Que nada. Bastava ele pedir perdão como fizeram os outros.

-Você está enganado. A Coroa tinha que sacrificar um. E esse tinha de ser Tiradentes, porque era o mais pobre.

-Isso não me convence.

-Você parece que é do lado do Silvério dos Reis, dirigiu-se um jovem para um português.

-Sou e daí, retrucou o português com raiva.

-Olha aí, ele é igual ao traidor, gracejou o rapaz.

-Fala baixo que pode estar nos escutando.

-Será que se julgar um traidor?

-Claro. Essa traição vai segui-lo pelo resto da vida.

-Todo traidor se arrepende. Aqui, no Maranhão, o Lázaro de Mello que traiu Bequimão, terminou se enforcando.

-O Silvério dos Reis não se matou porque é mau caráter.

-No caso dele, o suicídio não tem sentido. Não vive jogado fora. Parece até um homem de bem.

-Parece mais não é. Por dentro está pobre.

-Ele não foi o único traidor. Houve outros.

-O Silvério dos Reis foi o traidor mais sórdido.

-Uma coisa é você falar alguma coisa por medo de morrer como Tomaz Antonio Gonzaga e o Alvarenga Peixoto e outros. Outra é trair para tirar proveito como o Silvério dos Reis.

-Tu sabes de uma coisa. Eu acho que o Silvério dos Reis não traiu coisa alguma. Ele defendeu a Coroa, pois estava do lado dos poderosos.

-Será que o Silvério dos Reis ainda tem coragem de trair alguém?

-Eu que não boto a minha mão no fogo.

-Por dinheiro ele é capaz de tudo.

-Dinheiro compra tudo.

-Compra quem não tem caráter.

-Cedo ou tarde ele vai pagar pelo que fez.

-Vai demorar muito. Nesse tempo ele já estará debaixo da terra.

-Os ideais de Tiradentes estão florescendo novamente. A luta contra o jugo português continua.

-O povo não suporta a Coroa. E o enforcamento de Tiradentes ficou gravado na consciência do povo.

O coronel notou que estavam falando de sua pessoa. E tratava-se de seu papel na Inconfidência Mineira. Essa não foi a primeira vez que chegou a ouvir comentários sobre sua pessoa. Ocorreu numa de suas caminhadas ter sido molestado por alguém que o chamou de traidor da sacada de um sobrado. Sentiu um ligeiro calafrio pela espinha dorsal.

Nos últimos tempos, estavam aumentando as críticas contra ele, ouvia sussurros sobre ele por todos os lugares que passava. Agora o clima estava ficando insuportável. Teria que evitar andar nesses locais de muita aglomeração. Aliás, o comandante Venâncio advertiu-o um dia para não se expor ao público.

Erguendo-se bruscamente do banco da praça, o coronel deu as costas aos curiosos e tomou o rumo de casa. Ia pensando como falara aquele povo sobre sua participação na Inconfidência Mineira. Sem perceber, o coronel atravessava as ruas, a ponto de topar numa preta velha que carregava na cabeça um tabuleiro de mingau. Ela aborreceu-se e gritou:

-Que diacho...

-Desculpe, rogou o coronel.

A preta velha seguiu o seu caminho, apregoando a venda do mingau. O coronel caminhou apressado, olhando para frente para não provocar outro incidente.

Espantou-se ao ouvir passos de gente como se estivesse em seu encalço. O coroção palpitou. Virou-se para trás. Não era nada. Desde que sofrera um atentado ficou com esse trauma.

Uma carruagem parou perto dele. Era comandante Venâncio que da janela da carruagem cumprimentou:

-Como vai coronel?

-Estou escapando.

-Estou indo ao porto receber uns familiares da minha mulher que estão chegando do Rio. Depois, vamos conversar melhor. Dê minhas recomendações a dona Bernadina.

-Igualmente, comandante, dê lembranças para sua esposa.

A carruagem partiu com velocidade. O cocheiro, um negro ainda moço, tangia os animais com a habilidade de quem era adestrado no ofício. O comandante bateu com a mão para o coronel. Confortado com a gentileza do comandante, o coronel tece mais forças para subir uma ladeira tão alta que do topo via-se parte da orla marítima. Dalí, São Luís exibia toa a beleza dos casarões cobertos de azulejos.

 

Capitulo V

A igreja de São João foi construída para os militares em 1665 pelo então governador Ruy Vaz de Siqueira. Aos Domingos, eles iam com suas famílias assistir à missa.

Os sinos da igreja repicavam, chamando os fiéis para a missa dominical. A manhã esta resplandecente com o firmamento límpido e iluminado pelos raios solares.

O coronel, dona Bernadina e Manuelzinho iam a caminho da igreja. Dona Bernadina trajava um longo vestido de cambraia que lhe realçava bem. Com pouco mais de cinqüenta anos, ela ainda estava conservada para a idade. Era delgada sem ser esquelética. A pele branca de neve e o semblante de religiosa, quase angelical o coronel estava velho para ela. Sexagenário, ainda tinha para envelhecê-lo todas as peripécias da vida.

O padre, gordo e de meia idade, iniciou a santa missa. A igreja estava repleta de militares, mulheres e filhos. Todos se sentavam e ajoelhavam-se, segundo o ritual do ato religioso. Cada um dos fiéis mostrava um ar grave e contrito. O coronel rezava para deus lhe restituir a saúde.

A hora do sermão. O padre falou, com voz pausada, que os cristãos devem valorizar a vida, porque ela é um dom de Deus. “mas não devemos no apegar à vida somente pelos bens materiais que são passageiros. O importante é viver segundo os mandamentos divinos para se alcançar a felicidade na vida eterna. A fortuna não leva ao céu”, pregou o sacerdote.

As palavras do padre repercutiram no íntimo do coronel. Dona Bernadina compreendeu os conflitos do marido, ao vê-lo empalidecer. O coronel se apoiou em dona Bernadina como se fosse desmaiar.

Trajando paramentos de cores brancas e verde o padre continuou afirmando que dinheiro não é a salvação da humanidade. E que a fraternidade entre os homens é a única via de salvação e de felicidade. E com os braços entendido falou: “A riqueza, ao invés de ajudar, pode é levar o cristão para o caminho do mal, porque torna os homens prepotentes como se fossem donos do mundo”.

O padre concluiu: “Caros irmão, ide para casa cheios de esperança na vida que Deus vou deu. Viver com Deus e a para Deus é o supremo ato de fé e de amor. Sede humildes como foi Jesus Cristo”.

O coronel teve a impressão de que as imagens do altar vinham em sua direção. Dona Bernadina fazia sua última prece com o rosário entre os dedos.

Terminada a missa. Os fiéis levantaram-se como se estivessem em estado de graça. No pátio da igreja, os militares e seus familiares se cumprimentavam. O coronel evitou prolongar a conversa com seus companheiros de quartel. Manuelzinho olhava com curiosidade os garotos de sua idade, desejando brincar com eles.

-Montenegro está te sentindo mal? – Dona Bernadina tirou o véu da cabeça.

O coronel fitou o campanário da igreja, onde os pombos faziam acrobacias em revoadas. Com acontecia com os outro militares, o coronel imaginou seu corpo sendo sepultado naquela igreja. Dona Bernadina voltou a perguntar se o coronel não passava bem.

-Já passou, Bernadina. Minha saúde é que não boa. Tudo me atinge. Ando com os nervos em frangalhos.

-Eu sei disso, Montenegro, temos que rezar muito para vencer esse sofrimento. Vou fazer uma promessa a São João Batista para você melhorar. São João é um santo milagroso.

-Fui a missa para me aliviar e o resultado foi pior. Tenho que permanecer dentro de casa. Se saio sinto um mal estar. Então é melhor não sair.

-Você precisa se recolher em casa por um bom tempo. Depois que estiver melhor pode dar suas caminhadas. Quando chegar em casa vou manda a Rosa preparar outro chá para você.

Dona Bernadina andava de braços dados com o coronel. Do outro lado pegava a mão de Manuelzinho, que em seu mundo de fantasia absorvia pouco o drama do pai. Percebia, contudo, que a situação do coronel não era boa. Admirava a mãe com suas atitudes equilibradas como se fosse uma santa.

Com o tom baixo, muito diferente de até pouco tempo, o coronel segredou a dona Bernadina.

-Além da fraqueza, ultimamente, venho me lembrando daquela desgraça de Vila Rica. Agora mesmo parece que vi Tiradentes na minha frente, como estivesse me ameaçando. Depois, ele sumiu e ficou apenas sua cabeça decapitada.

Dona Bernadina sentiu um choque com a revelação do marido. Puxou manuelzinho para junto de si e implorou, ali mesmo, que Deus tivesse piedade do coronel. Refeita da emoção dona Bernadina Disse:

-Montenegro, política é coisa do demônio. Só termina em tragédia. Nem a Cristo eles respeitaram. Cristo foi para a cruz por causa dos políticos. No caso de Cristo, a missão dele era aquela que Deus Pai lhe deu. Nós, pobres mortais , devemos ficar somente cuidando de nossa família e rezando para tornar a humanidade menos ambiciosa e má.

-Não é bem isso bernadina. Eu não me arrependo do que fiz. Livrei o reino de Portugal de um regime monstruoso que queriam implantar no Brasil. Tiradentes não era tão bonzinho como se pensa. Sabe qual era o plano dos inconfidentes? Ah, se está for fora. Depois da derrama, eles combinaram que Tiradentes iria ao palácio, prenderia o Visconde de Barbacena e expulsaria do Brasil.

-Iche. Que plano diabólico. – Dona bernadina colocou a mão no coração assustada.

-Por aí você pode ver como era uma coisa cruel. Queriam ainda ficar livres da tutela da Coroa, fundar fábricas e universidades e mudar a capital para São João Del rei que tal uma coisa dessas?

-Bernadina, tu não sabes da melhor. Os inconfidentes queriam mudar a bandeira. Se fossem vitoriosos, a bandeira teria a cor branca com um triângulo azul, branco e vermelho em cujo centro ficaria a figura de um índio quebrando os grilhões. E como lema teria essa frase do poeta romano Virgílio: “Liberdade ainda que tardia”.

Dona Bernadina ficou assustada.

-Montenegro, você nunca me disse nada sobre a Inconfidência Mineira. Eu sabia alguma coisa por alto, quando algumas vezes ouvi tu e papai conversando sobre isso. Pensava que era uma desavença entre gentes grande.

-Bernadina, se não fosse eu, estaríamos todos mortos ou prisioneiros do Inconfidente. Seríamos hoje governados pelos nativos. Como te disse, nunca vou me arrepender do que fiz. Cada dia que me passa orgulho disso. O que não estou gostando é dessa fraqueza que sinto no corpo e na mente.

-Com isso, não se preocupe, que você vai ficar bom e logo. Se Deus quiser. Vou rezar todos os dias. Quem tem fé em Deus não cai. Deus é grande e não fala.

O medo de dona Bernadina era o de que o coronel viesse a morrer. Ela gostava do marido. Mesmo que falassem mal dele. Entretanto, era um ser humano como os outros. Defeitos todos têm. Para ela, o que aconteceu de pior foi ter se envolvido na Inconfidência Mineira. Dona Bernadina odiava política. Não sabia nem queria entender. Política no seu pensamento só fazia arruinar a vida das pessoas. De que adiantou fidalgo como Alvarenga Peixoto, Tomaz Antonio Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa e até os padres Calos Correia de Toledo de Melo e Oliveira Rolim terem se rebelado contra Portugal? Dona Bernadina especulava ao mesmo tempo em que acariciava os cabelos de Manuelzinho. Jamais poderia entra na cabeça de dona Bernadina que os homens fossem capaz de ser matar pelo poder.

-Montenegro, como começou tudo isso? – Dona Bernadina quis saber curiosa.

-Dizem que em Vila Rica, naquela época, chegou o Dr. Álvares Maciel, um jovem letrado, trazendo da Europa idéias de liberdade. Falam que teria sido ele quem influenciou Tiradentes. Já tinha aquelas idéias. Há quem diga que antes dele conhecer o Dr. Álvares Maciel, Tiradentes já andava com a Constituição dos Estados Unidos no bolso, fazendo suas pregações pelas cidades e povoados.

-Tiradentes não era fidalgo?

-Que nada. Ele era um revoltado porque era pobre. Foi alferes da Sexta Campanhia dos Dragões da Capitania de Minas. Depois, pediu licença e foi extrair dentes para sobreviver e pregar a revolução. Praticava também a Medicina, da qual aprendeu alguns rudimentos com o padrinho que o educou após ficar órfão aos 11 anos de idade. Foi tropeiro e não sei mais o que. Era esse homem que queria se rebelar contra Portugal.

-Como é que homens letrados e fidalgos entraram na conversa de Tiradentes? – Dona Bernadina demonstrava um interesse jamais visto pelo assunto.

-É porque estavam descontentes com a cobrança de impostos. Achava uma injustiça mandar toneladas de ouro para El-Rei. Foi isso que os levou a conspirar contra Portugal.

Capitulo VI

A sineta tocou. Dona Bernadina foi ver quem era. Ao abrir a porta, deparou-se com o comandante Venâncio. Vestido em roupa civil, o comandante sorriu ao cumprimentar dona Bernadina e perguntou pelo coronel.

-Seja bem vindo, comandante. O Montenegro está aqui.

-Como vai ele?

-Meio adoentado. – Enquanto conduzia o comandante para a sala de visitars, dona Bernadina falava-lhe da saúde do esposo.

-O coronel está precisando é de respirar novos ares. Não tem doença grava. É só um ligeiro desânimo. Depois volta ao normal.

O coronel convidou o comandante para sentar-se

- Coronel, você nunca mais apareceu no quartel? – O comandante sentou-se a vontade na cadeira.

-Ando abatido. Não sei o que está acontecendo comigo. Será alguma moléstia?

-Anime-se homem. Temos muitos anos de vida ainda pela frente. Homens como nós não podem morrer cedo. Nascemos para viver muito. A vida é boa,

-Mas tem hora que ela é cruel, falou o coronel cruzando as pernas.

Dona Bernadina ofereceu ao comandante um cafezinho ou um cálice de licor. Ele agradeceu dizendo que não queria nenhuma das duas coisa.

-Quero que o coronel se restabeleça. Ia passando por perto daqui e aí me lembrei dele.

-Obrigado pela lembrança.

O comandante começou a olhar os quadros de batalhas portuguesas, de reis e rainhas que decoravam a sala.

São belos esses quadros, admirou o comandante.

-Portugal é uma terra de grandes artistas. – O coronel tinha os olhos pregados nos quadros.

-Esse da Rainha Dona Maria I é uma obra prima, disse o comandante.

-Eu trouxe uns de Portugal e outros do Rio. – O coronel explicou como adquiriu os quadros.

-Comandante, eu admiro muito essa Rainha. Foi a única pessoa que soube dar valor a mim quando tomei parte daqueles acontecimentos em Vila Rica. Mas, aquele filho dela, Dom João VI, não reconhece o meu trabalho de como salvei a Coroa de um golpe sangrento.

-De fato, Dona Maria I foi uma mulher inteligente e muito sensível. Comentam que ela enlouqueceu porque reinava sozinha, não tinha quem a ajudasse. – O comandante acendeu um charuto.

-Também pudera. Contar com aquele filho dela só daria nisso. Dom João VI é mole. Não tem fibra de rei. Correu com medo de Napoleão, mesmo tendo mais soldados que o inimigo. Desculpe-me, comandante, Dom João VI é um frouxo. Nisso a Rainha não teve sorte. Teria que ter um filho macho, de espírito conquistador e guerreiro.

O comandante escutava o comentário do coronel que falava com a veia do pescoço crescida. Dona Bernadina beijava com sofreguidão o filho, pouco atenta à conversa.

-Comandante, tem momento que eu fico com tanta raiva de Dom João VI que ficaria alegre se Napoleão tivesse tomado Portugal. Se não fora a Inglaterra, ele seria hoje prisioneiro de Napoleão. Não gosto dele. Escrevi-lhe uma carta e ele não deu a devida atenção. Ainda concordou que me desterrasse para o Maranhão, lugar onde o diabo perdeu as botas.

-Dom João VI, coronel, é um homem de qualidades. Tem cultura e preparo político.

-Porque ele não enfrentou Napoleão, se tinha tropas suficientes para derrotar os franceses. Acovardou-se fugiu para o Brasil. O coronel manifestava-se indignado.

-Ele não sabia. Imaginou que Napoleão vinha invadir Portugal com forças superiores as dele.

-Dom João VI fugiu de medroso.

-Coronel, não há mal que não traga um bem, observou o comandante apagando o charuto. A vinda da família real para o Brasil foi benéfica para nós. Deixamos de ser colônia. Temos uma escola de medicina, Banco do Brasil e até jornal.

-O Brasil não merece ser mais do que colônia. Esse povinho não pode ser independente. Além disso, estou sabendo que a Corte vive nababescamente. Dom João VI, pelo que falam, só vive bebendo e comendo.

-Isso é boato. Os adversários sempre inventam mentiras para desmoralizar a Coroa. – O comandante defendeu a família real com firmeza.

-Que adversário? Os que tinham já foram para o inferno. Não resta mais nem a semente deles.

-Aí o coronel se engana. Ainda existem oposicionistas com os mesmo ideais de Tiradentes. Eles agem nas caladas da noite. Se vestem de cordeiros, mas na verdade são lobos. No Maranhão, não dar para se ver isso. Só no Rio.

-Ainda existe essa gente por aí? – O coronel ficou pálido.

- Coronel, isso não se acaba. Eles não desistem. Morrem uns e aparecem outros. É uma guerra sem fim. Só que estamos preparados para metê-los na cadeia ou levá-los para a forca.

-Dessa vez, o Montenegro não deve se envolver em política. A saúde dele está precária por isso. Poderia estar melhor de vida fora de política. – Dona Bernadina aparteou, ainda mimando Manuelzinho.

O comandante apaziguou dona Bernadina:

-Fique tranqüila. A senhora não verá mais o coronel metido em lutar políticas. Disse-lhe uma vez que ela já cumpriu o seu papel de militar fiel a Portugal. Merece daqui para a frente viver em paz.

-Que Deus ouça o comandante. Só eu sei o que estamos sofrendo com a saúde do Montenegro debilitada. O caso dele não é somente físico. É também mental. Sente-se depressivo. Anda vendo fantasmas em pleno dia.

-Está assim coronel? – O comandante surpreendeu-se

-Não sei explicar bem o que venho sentindo. Faltam-me energias. Aquele vigor vem desaparecendo cada dia. Sinto também fraqueza.

-Vá ao médico do nosso quartel. É já que ele faz o diagnóstico do seu problema. Não deixe para depois. Doença se cura é no início, recomendou o comandante, passando a mão no nariz.

-Farei isso brevemente, prometeu o coronel com olhar vago.

-Vamos amanhã, Montenegro. – Dona Bernadina aconchegou-se ao marido, dando leves palmadas na barriga dele.

-Se tiver melhor, irei.

-Repouse bastante, coronel. Coma pouco e não se irrite. Não sou médico, porém, conheço algumas regras que devemos obedecer nas doenças. – O comandante apertou a mão do coronel e de dona Bernadina, despedindo-se.

-Obrigado pela visita. Não se esqueça das sesmarias, disse o coronel

-Não me esqueci.

Sempre mau humorado, o coronel passou o restante do dia reclamando da sorte. Dona Bernadina procurava confortá-lo, invocando a Deus. No entanto, o coronel considerava-se um desafortunado na face da terra. Achava-se uma vítima de tudo e de todos.

À tardinha, quis passear pelas ruas. Dona Bernadina advertiu que não era recomendável ela sair por aí, já que suas pernas estavam sem firmeza, caminhava tropeçando. Ela mesma se espantava como tão rapidamente o marido caiu nessa fraqueza. Até recentemente, era lépido, decidido e enérgico.

Alimentava-se muito bem, comendo com gula fora do comum. Demorava-se à mesa, deliciando-se com as mais variadas iguarias. O prato que mais gostava era peixe frito e camarões. Apreciava igualmente o frango assado. Comia mais do que dona Bernadina e os outros juntos. O apetite desenfreado do coronel era motivo de preocupação para dona Bernadina. Sempre o advertia para não se exceder em comida, principalmente à noite. Ela dizia que no jantar se deveria ser mais sóbrio. Uma sopa era a refeição ideal para os mais velhos. Nenhuma atenção o coronel lhe dava. Comia até ficar com a barriga prestes a espocar. Bebia água em grande quantidade. Mastigava pouco e engolia rápido. Dona Bernadina repetia, mais para educar o Manuelzinho, que se devia comer para viver e não viver para comer.

Terminada a refeição, o coronel não fazia a digestão em pé. Da copa ia direto para sua preguiçosa na varanda. Com a doença foi que começou a dar razão a dona Bernadina. Comia pouco. Beliscava um pedaço de carne e logo se enfastiava. Tomava mais sopa. Estava comendo mais verduras e frutas. Tinha uma predileção por atas. Os doces de banana e coco preparados por dona Bernadina eram as sobremesas com que mais amenizava as amarguras que o incomodava nos últimos tempos.

Tão estranho estava o coronel que não andava mais pelo quintal. Antes de adoecer ia duas vezes ver o seu cavalo Tróia. Andar de cavalo deixara há meses, desde que começara a se queixar de dores de hérnia. Percorria léguas inteira montado no Tróia, exibindo sua destreza na arte da equitação. Aos domingos, ia aos sítios dos amigos a cavalo. Tróia era um cavalo fogoso, quando montado pelo coronel. A uma pequena fustigada da espora, o cavalo agilizava as patas em trotes cadenciados e ritmados. Ao final da jornada, o animal estava espumado e banhado de suor. Tróia era resistente, porque era bem tratado. Nisso, o coronel era impecável. Tratava o cavalo melhor que os seus escravos.

samuel filho
Enviado por samuel filho em 04/11/2014
Reeditado em 04/11/2014
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