Eu e Lice: Uma pausa, explicações (capítulo 17)

(Eu, eu mesmo mesmo)

Leitor, hoje você não lerá aqui a história de Lice, e o eu que vos escreve realmente sou eu, mentalidade superior por trás de Lice, Dona Rosa, Seu Tito, e todos os outros personagens desta trama.

Na busca por viver algo que a realidade não me trazia, decidi escrever um drama. Matei mais de uma pessoa, desgracei a vida de uma criança, e o leitor, sempre no seu mísero papel de se emocionar a cada decisão outorgada de minha mente. Fui ditador severo, inescrupuloso, próximo a Hitler, Mussolini, Stalin e dos que o Brasil governaram durante a ditadura militar. Fui um ditador de emoções, e meus súditos, como já evidenciei, foram todos os que leram, até o presente momento esta história.

Eu agradeço profundamente por isso, mas, na busca de viver nas palavras fortes emoções, a vida tratou de me presenciar, na mais cara realidade, com um drama que em muito transcendeu as lágrimas de Rosa, de Tito e de Lice...

O último capítulo da presente novela foi publicado em agosto. Meses antes, precisamente, dois meses antes, ingressei, meio sem querer, em uma aventura juvenil que se transformou em um sentimento diferente.

Lembro-me até hoje de ter assistido, durante o almoço, ao jornal da Rede Globo, no qual fora narrada a história de vida de uma criança, de uma Princesa. A vida desta Princesa, antes dos "dramas" (que sempre pedi, mesmo que inconscientemente, para vivenciar), era perfeita, como fora a de Lice antes do acontecido com seus pais.

Era uma história linda, de amor e afeto. A Princesa, de 6 anos, nascida no Ceará, fora adotada, ainda bebê, por um casal goiano, o Rei e a Rainha. Como irmão, também adotivo, a Princesa tinha um Príncipe, Príncipe este aliás, que se destacou, ainda em tenra idade, como primoroso escritor capaz de passar para o papel as impressões mais profundas de seu jovem coração.

Este Príncipe, há pouco mais de um ano atrás, ficou conhecido nacionalmente por escrever um livrinho chamado "A Princesa que usa Óculos". O enredo da obra se baseia na irmã do garotinho. A Princesa, que sempre gostou muito de histórias de outras princesas, como faz Lice ou qualquer outra criança de sua idade, mas, um diagnóstico pesado de astigmatismo a abateu, ainda pequenina, obrigando-a a usar óculos, ideia inicialmente rejeitada, pois, afinal, não existia princesa de óculos.

O Príncipe a criou. O livro se transformou em um livrão, na mais filosófica, romântica e interiorista compreensão da palavra. A obra conseguiu fazer a Princesa usar óculos, e, como não podia deixar de ser, a história logo ganhou repercussão nacional.

O Príncipe escreveu mais três obras após a primeira, e tudo era tão perfeito, tão perfeito, que, como num mito antigo, numa parábola sábia, num encanto quebrado,..., tudo de fato de quebrou.

Na passagem de abril para maio de 2014,o Rei, a Rainha e o Príncipe descobriram Princesa não estava tão bem como antes. Metaforizando uma Doutora Luzia aos avessos, a vida tratou de atirar uma leucemia a frente dos pais da Princesa,..., a frente da Princesa.

Para deixar a história trágica, a leucemia da Princesa era causada por uma mutação genética, o que complicava ainda mais seu caso. Para aumentar a tragédia, ela precisaria de um transplante de medula óssea. Para aumentar ainda mais esta profunda tragédia, a família da Princesa, por a terem adotado, não encontraram nenhum familiar biológico compatível com sua filha, o que os obrigaram a procurar na sociedade um doador de medula óssea que pudesse salvar a vida da Princesa. As chances, para deixar tudo ainda mais trágico, eram de uma em cem mil, podendo chegar a ser de uma em um milhão.

Isso significava que os pais da Princesa podiam ter o dinheiro que fosse, podiam propiciar o melhor tratamento de leucemia para a Princesa, mas se não encontrassem um doador para sua Princesa, tal esforço em nada adiantaria.

Assim se iniciou uma luta, da qual eu participei de perto, e com orgulho. Nossa missão era convencer o máximo de pessoas possíveis a doarem 5 ml de sangue, se cadastrando como doadoras de medula óssea.

Daqui faço uma pausa.

Leitor, obrigado por acompanhar Eu e Lice e por ler este texto até aqui, mas neste momento quero lhe chamar de covarde. Certamente você está com pena da Princesa, está comovido com a história dela, mas, daqui a pouco, irás esquecer tudo isso que leu aqui.

Você vai parar esta leitura, vai assistir TV, usar a internet, trabalhar, ir a igreja, e a história da Princesa terá sido só um momento em sua vida. Isso não aconteceria se ela, a pequena Princesa, fosse SUA filha.

Se a Princesa do Rei e da Rainha desta história fosse SUA filha, você estaria chorando neste momento, estaria em desespero, e jamais diria: "coitadinha, é muito difícil achar um doador", ou "todo mundo que tem leucemia morre".

Se a Princesa fosse sua filha, você estaria agora trabalhando em prol de encontrar um doador compatível para ela. Trabalhando incessantemente, sem parar, desesperadamente. Ora, e sabe por qual motivo não está?

Porque se a Princesa morrer, nenhuma falta ela fará na tua vida. Você só vai ler, ou ver na televisão que ela partiu deste mundo e dizer "coitadinha", oi ainda “Oh, meu Deus...” fazendo cara de piedade. Depois disso, tudo continuará do mesmo jeitinho. Tudo. Absolutamente tudo.

Você vai continuar indo a igreja, defendendo o “amar ao próximo como a si mesmo”, continuará contando piada aos domingos, abraçando quem ama, brigando com quem odeia, e lendo historinhas emocionantes de passatempo de menininhos de 17 anos por aí. Leitor, não seja covarde novamente em negar isso. É a mais pura verdade. A Princesa não lhe faz falta. Não adianta dizer o contrário. Serão só palavras jogadas ao vento. Não adianta falar que você ama a Princesa, porque você NÃO ama a Princesa. Não se iluda, viva o real, o presente (ao menos uma vez na vida eu tinha que pedir isso a você).

Agora falo de mim. Eu amo a Princesa? Posso lhe confessar que estou aprendendo.

No começo, tudo isso não passava de uma aventura de adolescente, de um motivo para sair de carro, para me encontrar com os amigos. No fundo, era isso. Vi gente entrar conosco nesta campanha e declarar amor incondicional a Princesa.

Este amor incondicional só durou 15 dias. Nada além disso. Vi muitos serem chamados para ingressar nesta aventura e poucos quererem (de fato quererem). Vi muita falsidade, muita individualidade, muitas “dades” ao longo desta caminhada. Entre essas, vi muita humildade vinda do Rei e da Rainha e talvez tenha sido isso o que me convenceu a embarcar de cabeça nesta aventura que se transformou em luta.

Leitor, eu escrevo por defender uma sociedade onde um se preocupe com o outro, onde um dê de si para ajudar ao outro, em especial, as crianças, pois se elas aprenderem isso, teremos um futuro mais próspero. Defendo uma sociedade em que o coração das pessoas não se encerre em seu lar, em que as pessoas não deixem de doar medula óssea porque seus pais, ou seus avós não deixaram. Defendo uma sociedade em que o coletivo fale mais alto que o privado, em que amor e bondade não possuem limites, em que ninguém segure a luz que existe dentro de si, em que cada um faça pelo outro o que faria por um filho seu, em que a noção tradicional de família seja dilacerada, em que cada um possa, por garantia do estado, desenvolver seus reais potenciais. Numa sociedade assim, não haverá fome, pois quem tem, por amor, compartilhará sua comida com quem não tem. Numa sociedade assim, não haverá tristeza, pois a quem sofre haverá sempre um ombro a consolar e duas pernas para agir. Defendo uma sociedade em que haja comunhão, em que haja socialização de sentimentos, socialização de amor e, para ficar mais claro, socialização de apego a vidas também. Sim, leitor, defendo uma sociedade comum, igualitária, fraterna. Defendo uma sociedade, na mais profunda concepção dos termos que se seguem, solidarista, coletivista, cooperativista, ou seja,..., comunista.

Impossível? Utopia? É claro que sim! Nada do eu defendo se tornará realidade enquanto você continuará a viver para seu trabalho, para sua família, para o que te importa. Nada disso acontecerá enquanto você não amar a Princesa a ponto de dizer “eu vou achar um doador para a Princesa, custe o que custar”. Infelizmente eu defendo algo que depende dos outros, que depende da boa vontade de cada um, ou melhor, da ação de cada um em prol de todos.

Ah, leitor... e lembra da Princesa? De repente, de um dia para outro, para você, caro leitor, ela se transformou em duas, três, quatro, milhares de Princesas... nossa Princesa inicial encontrou seus doadores e está muito bem hoje.

Se ao saber disso, você disse “Graças a Deus”, se sentindo simplesmente aliviado, desculpe-me... você não aprendeu nada do que leu aqui.

Hoje alguém irá me procurar,

e me perguntar..

como se escreve um romance

por linhas tortas.