O FATOR CAOS capítulo 6 - A aliança sagrada

CAPÍTULO 6

A ALIANÇA SAGRADA


Os jornais de domingo vinham repletos de manchetes garrafais sobre os trágicos acontecimentos da véspera. Chovia torrencialmente e Andrômeda, fechada em seus aposentos secretos, recusava-se a atender a criadagem apesar dos apelos para resolver alguns problemas domésticos. Ela já olhava alguns jornais que assinava (os jornais de papel sobreviviam apenas em assinatura) e os diários da Cosmonet. As manchetes de Lorena concentravam-se num único acontecimento:

“ÂNDRÔMEDA DESTRÓI A TORRE DO PRAZER”
“ATENTADO EM LORENA. FORA-DA-LEI MASCARADA ATACA E DESTRÓI PALÁCIO DO SEXO”
“MORTE E DESTRUIÇÃO EM CAMACHO. A SERPENTE ESCAPA”
“PREFEITO PEDE INTERVENÇÃO FEDERAL. ANDRÔMEDA SERÁ CAÇADA”
“PRESIDENTE MANGABA DECLARA GUERRA A ANDRÔMEDA. ELA SERÁ PUNIDA”
“ESQUELETOS CARCOMIDOS PELAS CHAMAS NAS RUÍNAS DA TORRE DO PRAZER”
“FÚRIA MORALISTA DESTRÓI A TORRE DA SERPENTE. ESCALADA FASCISTA NO BRASIL?”


No Pontual, que Sonia recebia em papel, uma manchete um tanto diferente:

“UMA PERGUNTA NECESSÁRIA: POR QUE?”

E os subtítulos:


“O QUE LEVOU ANDRÔMEDA A FAZER ISSO?”
“O PREFEITO TAURUS JURA VINGANÇA”
“LUANA POMERANIA AMEAÇA PROCESSAR A PREFEITURA POR NÃO LHE DAR PROTEÇÃO”


Para Sonia, o dedo de Mário estava ali. Ao questionar os seus motivos, Mário acenava a possibilidade de uma justificativa.
Andrômeda foi se servindo das torradas com manteiga de Petrópolis, dos brioches, dos cubos de queijo provolone, do suco de camu-camu, do ovomaltine e da omelete. Ela apreciava tomar um desjejum caprichado, pois suas constantes ocupações tornavam incertas suas outras refeições.
Leiber, sentado numa cadeira de bronze, observou:
— Sabe que eu tenho inveja de você, Andrômeda? Quando eu a vejo comer com tanto gosto... queria muito conhecer esse tipo de prazer, saber o que é o sentido da gustação...
— Você teria que ter papilas gustativas, Leiber. E para isso precisaria de uma língua. Mas você não tem estômago e nem aparelho digestivo, e nem precisa disso. Aconselho-o a se conformar com a sua sorte e natureza.
E Andrômeda cortou uma fatia de bolo de fubá.
— Você ontem foi longe demais. E se nos descobrirem?
— O meu aparelho de hologramas alternativos e de deflexão radascópica é tão aperfeiçoado que torna impossível o rastreamento de Liz. Porque a verdade é essa: Liz é a última palavra em tecnologia de ponta para veículos ecléticos: ela é carro, avião, barco e nave espacial e pode repelir qualquer onda rastreadora. Portanto, ninguém pôde nos seguir.
— A próxima vez que Liz for avistada, será simplesmente bombardeada — observou Salk. — E nós não avançamos em nossa missão. Os seqüestrados continuam seqüestrados.
Sonia molhou uma torrada no ovomaltine e refletiu:
“Não posso continuar com isso sozinha... ou só com máquinas. Por mais que eu deteste admitir... preciso de ajuda.”

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O Padre Cristiano Oronte, subindo com seu maciço corpo a escadaria de pedra, ia dizendo a Salustiano:
— Pois é. O Ofício Divino, como eu dizia, é importante porque nos lembra diariamente o dever de louvar a Deus e agradecer as suas graças. É um ótimo lenitivo para os corações cansados das ingratidões humanas e um meio de manter o espírito elevado, fora do alcance das tentações que nos cercam.
— E não é só isso, padre. Quando entoado em coro e nesse milenar gregoriano... é divino mesmo. É de uma beleza sem par...
— É por isso que a Igreja Católica sobrevive, Salustiano. Nela se encontra uma verdade que cala fundo... penetra na alma.
Eles se separaram e o Padre Oronte seguiu para o seu quarto. Entrou e acendeu a luz.
Uma figura de preto e mascarada aguardava-o numa poltrona.
— Bem-vindo, Padre Oronte. Ainda bem que o senhor dorme cedo.
— Andrômeda!
— Preciso falar com o senhor... com a maior urgência.
— Como você entrou aqui?
— Padre, eu tenho os meus segredos e os meus macetes... por favor, não dê importância a esses detalhes. Preciso conversar com o senhor e é coisa importante e urgente.
— Você está sendo procurada pela polícia.
— Eu sempre fui procurada, e até aqui o senhor tem sido meu amigo.
— Mas agora a própria Cosmopol irá caçá-la.
Ela sorriu.
— Américo Mangaba já me declarou a Inimiga Pública no. 1. Isso porque eu destruí a Torre do Prazer. E apesar de toda a corrupção que há no Congresso, na mídia, no empresariado e no governo...
— Entendo o que você quer dizer, mas isso não justifica o seu ato. Pessoas inocentes morreram. Você derramou sangue, fez justiça com as próprias mãos.
— Padre, eu lhe imploro: sente-se para nós conversarmos. Eu lhe contarei o que está acontecendo, e porque eu fiz o que fiz. Eu preciso da sua ajuda.
— Para que, Andrômeda? Para escapar da Justiça?
— Não, Padre. Para proteger a Humanidade.
— Como pode ser isso? Você me contará tudo?
— Sim, Padre Oronte. Eu contarei tudo... em confissão.
— Em confissão! Percebo! Para que eu não conte a ninguém!...
— Não pode recusar a me atender em confissão, Padre Oronte.
— Está bem. Vamos em frente.

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Andrômeda fitou o belo quadro a óleo na parede, “Taba dos Guaicurus”, por Leonardo Estrela, pintor do século XXIII. Sentado em sua melhor poltrona, as mãos espalmadas — dedos contra dedos, pelas pontas — uma na outra, o clérigo refletia em voz alta:
— Tudo o que você me contou é estranho... é incrível...
— Eu lhe contei a verdade e lhe apresentei provas.
— Sim, até o filme que o seu carro fez dos esqueletos móveis, mas pode ser uma hábil trucagem.
— Não é trucagem, padre. Não crê mais em mim? O senhor me deu a absolvição, logo aceitou a minha confissão.
— Você conhece muito da religião católica...
— Mas eu sou católica e sempre fui — ela se voltou para ele, o lindo rosto sem máscara, e com a expressão imensamente suavizada em comparação com as cenas anteriores. — Já sabe quem sou eu. Deve se lembrar que eu já era sua amiga... como Sonia e como Andrômeda. Eu não sou uma criminosa. Eu sou Robin Hood, e preciso de um Frei Tuck.
— E quem será João Pequeno?
— O vulcaniano, é claro. Já lhe disse que preciso do vulcano e do repórter.
— Eles deverão saber quem você é?
— Não há necessidade disso. Basta o senhor. Eu estou protegida por mais de dois mil anos de sigilo confessional. Para um sacerdote como o senhor, é impossível quebrar o segredo do confessionário. Da sua boca ninguém saberá que Sonia Maria Sagres e Andrômeda são a mesma pessoa.
— E o que você acha que eu poderei fazer para ajudá-la?
— Nós teremos que agir no plano espiritual e no plano científico. Glikus pode tratar dessa última parte. Agora como impedir que Lúpus utilize os rituais sacrílegos do Necronomicon para puxar os Antigos de volta ao nosso universo?
O sacerdote, sentindo a garganta irritada, abriu uma gaveta de sua mesa de cabeceira, pegou uma latinha, abriu-a e pegou uma pastilha de menta. Ofereceu a Andrômeda, mas esta recusou:
— Obrigada, mas detesto isso.
— Bem... esse assunto envolve a manipulação de energia. Acreditamos que a energia das estrelas, que praticamente sustenta o universo, é extremamente econômica. No interior de nosso sol, por exemplo, a vinte milhões de graus centígrados, os núcleos de átomos de hidrogênio penetram nos núcleos de carbônio, mudando-o para nitrogênio sobrecarregado. Por estar quimicamente sobrecarregado esse átomo de nitrogênio emite um elétron e passa a ser um isótopo pesado de carbônio, de símbolo atômico 6C7. Após várias outras transformações, que podem levar milhares de anos, volta-se à forma original de carbônio 6C6, com o desmembramento de um núcleo de hélio, fórmula 2He2. Como vê, a fonte de energia das estrelas é algo incrivelmente simples e de fácil compreensão.
Andrômeda não fez comentários. O Padre prosseguiu:
— Num buraco negro, porém, atua um outro tipo de força, uma singularidade, onde as leis habituais parecem falhar. Tudo indica tratar-se de um colapsar, embora seja estranho que esse mencionado ciclo do carbônio ou carbono possa chegar a um fim, ao esgotamento. Mas, desde o momento em que se forma um horizonte de eventos, pode estar certa de que agora estamos diante de um dos mais trevosos enigmas do universo: o abismo negro. Seria como um ralo no espaço. Uma voragem, um maellstrom espacial, que atrai tudo, e do qual nem a luz pode escapar... agora imagine uma inversão desse efeito... imagine todo o caos do outro lado nos invadindo.
— Padre... não poderemos especular muito. Os escritos de Lúpus falam de seres horrendos como Tsathoggua, Yog-Sothot e Cthulhu... eu não quero saber dessas coisas em nosso universo.
— E como você poderá impedir?
— Se não puder deter Lúpus aqui na Terra... vamos até lá. Reúna Glikus e Mário Vicunha, que eu os quero na equipe. E agora eu vou ter que ir. Não devo sumir por muito tempo.
— Diga, Sonia... como é que os seus empregados não fazem relações... não descobrem que você é Andrômeda?
— Eu os selecionei com rigorosos testes de inteligência, padre.
— E mesmo assim...
— Eu escolhi os mais idiotas.
Esquecendo-se da sua austeridade sacerdotal, Oronte riu às gargalhadas.