AS TRÊS MARIAS - capítulo 18 - NORBERTO E A FOSFOETANOLAMINA

Em menos de um mês Hermínia já estava andando, comendo, regularmente, fazendo as lições, que sua professora teve o cuidado de lhe enviar, evitando que perdesse o ano, evitando também apontar suas faltas. Os exames apontavam recuperação significativa de seu nível de imunidade, a febre não a acometia há mais de quinze dias e sua disposição só melhorava.

Paralelamente, Lázaro e Cíntia pareciam dois pombinhos saídos dos contos de fadas. Seu Alonso os observava com extremado interesse, pois via nas atitudes dos dois uma materialização do amor-fantasia, que sempre era exibido nos filmes de sua época, quando não era permitido mostrar nada que sugerisse sexo ou algo mais carnal. Era incomum e bonito. Foi durante uma ocasião em que notava o jeito do casal, que externou sua opinião a respeito.

- Nesta família aprendi a respeitar as diferenças, entender que tudo tem um lado bom, desde que propósitos e procedimentos sejam positivos. Apesar disso, achei, em meu precário entendimento, que seria difícil ver Cíntia realizada, no campo afetivo, porque sua característica maneira de ser é mais rara que todas as outras que conheci ou de que ouvi falar. Hoje sinto que tudo é possível, que não temos como prever nada, além daquilo que é mais simples, pois o ser humano é tão complexo, tão diverso, que suas possibilidades são, praticamente, ilimitadas.

Diz-se, comumente, que este é um mundo de expiação, de sofrimento, em que para cada dia de felicidade ou contentamento, temos meses ou anos de tristeza e padecimento. Não sei se há correspondência em tal afirmação, mas é notório que vemos muita coisa ruim ocorrer à nossa volta, e quando queremos comemorar algo, é preciso fechar os olhos, por momentos, às desgraças que acometem a maioria da humanidade, para poder sorrir e festejar. Triste!

Acredito que temos de encarar os problemas que surgem; principalmente, os derivados da maldade humana, direta ou indiretamente, tentar resolvê-los ou contribuir, até o limite de nossa possibilidade para tal, a fim de que, ao menos, consigamos amenizá-los e sentir no íntimo alguma satisfação, mesmo que mínima, por lutar em prol do que é correto e benéfico.

Alguns dias mais tarde, quando Lucélia, uma funcionária da Casa Assistencial, chegou para trabalhar (ela é quem abria a casa, todas as manhãs), encontrou uma caixa de papelão no jardim de entrada, e ao tentar retirá-la, encontrou dentro um garoto, de seus cinco anos de idade, vestido apenas com short e camiseta, tremendo de frio e todo enrolado. Apavorada, chamou Berta e Sal, que ainda dormiam nos aposentos dos fundos. Ingrid e Celeste, que já estavam acordadas, mas em seus aposentos também, foram ver o que ocorria, assustadas com a gritaria. Quando deram com a cena, levaram-no para dentro, rapidamente, e viram que ardia em febre. Sua pele apresentava feridas, estava muito sujo e parecia não entender nada.

Deram-lhe um banho morno, vestiram-no e o puseram na cama, bem coberto. Em seguida, chamaram Lázaro, para que os orientasse sobre como agir. O rapaz veio depressa e, após exame superficial, levou-o em seu próprio carro para o hospital, providenciou múltiplos exames e avisou a polícia, para que tudo fosse feito da maneira correta. Enquanto policiais e a assistente social cadastravam a ocorrência e tentavam se comunicar, sem êxito, com o menino, foi possível diagnosticar maus tratos e uma doença principal: câncer.

Mesmo sem conseguir extrair do garoto alguma informação, dava para imaginar que fora largado por pais ou parentes por causa da doença, que já estava em fase avançada, tomando conta de alguns órgãos e restringindo boa parte de sua capacidade motora. A assistente social pediu que a Casa Assistencial cuidasse do menino, enquanto verificava a possibilidade de interná-lo em alguma instituição adequada. Lázaro levou-o de volta e, ao mesmo tempo em que explicou a situação, avisou que não poderia iniciar a necessária quimioterapia, porque ele estava muito fraco. Seria preciso fortalecê-lo, rapidamente. Sugeriu o mesmo tipo de dieta que era fornecido a Hermínia, pois havia um estudo, que apontava a impossibilidade de o câncer evoluir num meio sanguíneo alcalino. Valia a pena tentar.

Na manhã seguinte, Cíntia apareceu para conhecer o garoto e trouxe uma reportagem, que falava de uma substância que estava curando e melhorando a saúde de muita gente, e que tinha sido desenvolvida numa faculdade do interior de São Paulo: a fosfoetanolamina. No entanto, apesar de centenas de pessoas já curadas, ela tinha sido proibida, e só poderia ser conseguida através de recurso jurídico. Imediatamente, as iniciais providências foram tomadas.

- Sou médico e me envergonho de colegas, que preferem tomar atitudes formais, ao invés de privilegiar o que é palpável, concreto. A morte não espera pela frieza da burocracia.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 10/07/2016
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