Cortando Cebolas ou A Hora do Jantar 

(Capítulo I)

Salsa

Discou para a polícia:

 

- Por favor, venham buscar meu marido.

- Onde mora?

- Rua Benjamim Constant, Bairro da Glória.

- Número?

- 134, apartamento 302.

- Qual o fato, minha senhora?

- Eu fui agredida. Por favor, venham rápido. Eu não agüento mais. Ele vai me matar...

 

A atendente, que era uma velha senhora, já recebera tantas outras ligações do mesmo tipo, mas nunca houvera registro neste endereço. A voz de Liz era trêmula e nervosa. Rapidamente, como que por intuição, a atendente avisou às viaturas:

 

- Atenção viatura mais próxima! Mulher agredida no Bairro da Glória. Rua Benjamim Constant, 134/302. Atenção viatura mais próxima...

 

Liz desligara o telefone e chorava sobre a cadeira. Alvarenga entrara neste momento e parou na porta. Charuto nos lábios, retirou o cinto... e partiu.

 

- Não, por favor, Alvarenga eu te imploro.

 

- Vagabunda!

 

E bateu em Liz enquanto ela se esquivava caindo sobre os móveis. Uma vizinha do lado de fora parou indignada diante da porta.

 

Uma semana antes: Coentro

 

A mesa do café estava posta. Alvarenga lia o jornal e fumava seu charuto. Ante ele estava uma xícara de café que vez por outra tomava.

 

- Estão aqui suas torradas. Quer presunto?

- Não.

- Vou colocar umas frutas pra que coma no trabalho. Você anda muito pálido. Precisa cuidar melhor dessa úlcera.

- Hum...

- Nada de muito cítrico, vou colocar só duas maçãs. Você quer papaia?

 

E colocou-as num saco de pão. Já que o mesmo não havia respondido, tomou sua falta de resposta como sim, já que teoricamente quem cala consente. Para disfarçar a gravidade da situação que no casamento se instaurava, ela pergunta:

 

- Querido, a que horas retorna?

- Por que a pergunta?

- Não é por nada. Eu só queria ir à manicura.

- E pra que manicura?

- Minhas mãos estão horrorosas.

- E pra que precisam estar bonitas?

 

Com carinho...

 

- Ora, pra que... Pra você.

- Não precisa. Prefiro-as assim, horrorosas.

- Mas querido...

- Por que se enfeita?

- Coisa de mulher, Alvarenga. Toda mulher gosta de ficar mais bonita, cheirosa.

- Mulher que faz isso pra mim é puta.

- Alvarenga!

- Mulher que é minha não se enfeita. Pra que esta loucura?

- Quer que as pessoas me vejam feia?

- E pra quê que têm que vê-la bonita?

- Quer dizer que me prefere feia? Horrorosa?

- Prefiro. Você é mais bonita assim... Horrorosa.

- Sou mais bonita horrorosa?

- Pra que andar se exibindo?

- Alvarenga... Eu me sinto um trapo. Sabe há quanto tempo não visto uma roupa nova?

- Sei. E o que tem isto?

- O que tem? O que tem?

- Vai usar roupa nova pra pilotar fogão? Não vai... Então pronto. Use as velhas.

- Alvarenga!

- Sem mais... Não quero roupas novas, e nem vestidos, nem nada. Esqueça manicura, cabeleireira, massagista, esqueça tudo. A partir de hoje é isto. Se quiser bem, se não quiser, até logo.

 

E sai... Bate a porta...

 

Liz ficara horrorizada. A cada dia Alvarenga lhe aparecia com uma nova. O casamento já não ia como antes e o ato sexual era quase animal. Não era amor, era uma cópula. E ela se sentia ferida, desarmada, inibida, cada dia mais na posição de Amélia, de Aurora. Algumas vezes pensara em deixá-lo, mas não tinha coragem suficiente.

 

Tinham dois filhos e, além disso, não possuía nenhuma fonte de renda. E era unicamente por este motivo que ainda não tinha batido aquela porta. A porta que olhara fixamente com vontade de atravessá-la e não mais voltar.

 

Tinha poucas amigas. A bem da verdade tinha uma: Gumercinda, que morava ao lado. Era a única em quem confiava e conversando revelava:

 

- Eu não tenho mais marido. Alvarenga, nem pra meu amigo me serve. E ele era tão diferente... De uns tempos pra cá é que passou a agir assim, dessa forma. Outro dia ele me xingou de prostituta, chamou meu pai de pederasta, e minha mãe de bueiro da central. Eu fiquei indignada com isto. Como podia me xingar assim? E pior... Minha mãe, minha mãezinha... Bueiro da Central? O meu pai eu até entendo. Nunca se deram... Mas minha mãe? Nunca fez nada pra ele. Era tão boa... Tão boa... E o infeliz disse isso com ela em cima de uma cama. Estou desentendida do que venha a ser carinho, palavras de amor. Só as escutei antes de casar. Sim, porque era minha flor, meu amor, até rosa de primavera... Escultura de Deus... Hoje me chama de caldeirão do inferno, de enviada do Demo. Gumercinda, eu não agüento mais. E tem mais: Estou desconfiada de que tem outra. Foi tudo tão assim... De repente. Num dia estava tudo ótimo e no seguinte já mudou. Só pode ser mulher!

 

- Liz, mas você me deixa abismada...

 

- Isso não é nada. Você não sabe um terço dos horrores. É que tem coisas que eu sinto vergonha de contar... Vergonha... Na cama me obriga a fazer coisas horríveis que eu nunca pensei. Outro dia me propôs uma coisa absurda: Estávamos deitados e no meio do ato sexual ele me disse que eu não estava dando conta e que seria ótimo se eu aceitasse mais uma mulher. E falou assim, natural. Ai, meu Deus, eu não sei onde eu estava com a cabeça. Eu devia ter escutado meu pai. Ele me disse que Alvarenga era vigarista. Mas não, fui tola... Tola demais... Agora estou aí, presa a ele. Dois filhos, Gumercinda... Dois filhos... Você me entende?

 

- Eu entendo. Quer dizer... Eu acho que entendo... Ou melhor... Eu não sei de nada! Se fosse eu já tinha saído de casa. (num relance) Ameaça, já tentou?!

- Eu já fiz.

- E ele?

- Disse que me mata.

 

Alho

Liz caíra por cima dos móveis e quebrara vários cristais do bufê.

 

- Levanta, sua puta!

 

E a levantou pelos cabelos.

 

- Agora repete o que vou dizer: Minha vagina fede! Eu sou imunda!

 

Chorando...

 

- Não, por favor...

 

Gritando...

 

- Diz! Anda fala! Me diz!

 

Não consegue e chora. Alvarenga a levanta pelo pescoço.

 

- Diz sua imunda, diz!

 

Desatada...

 

- Minha vagina fede... Eu sou imunda...

 

- Puta!

 

Seis dias antes: Cuminho

Alvarenga, Seu irmão Gervásio, Das Flores e Peixoto, os amigos, estavam juntos bebendo e fumando. Abriam uma vasta gargalhada. Peixoto dava um riso desconfiado.

 

DAS FLORES

Alvarenga, mas isto é hilário...

 

ALVARENGA

Eu me divirto... (gargalha) Antes eu nunca tinha visto um marmanjo urinar-se assim diante do chefe.

 

GERVÁSIO

Tudo isto porque não havia chegado na hora.

 

ALVARENGA (Gargalhando)

Foi...

 

GERVÁSIO

Isso não tem graça!

 

ALVARENGA (Ainda gargalhando)

Ora tem... Imagine um marmanjo, na frente da repartição inteira, tapando a urina nas calças com uma pasta!!!

 

Todos se divertem.

 

GERVÁSIO

Você é doente, Alvarenga... Todos vocês... Doentes!

 

Alvarenga desfez o riso até ficar parcialmente sério e olhou pra Gervásio que o encarou e saiu.

 

ALVARENGA

É um tolo!

 

Das flores gargalhou novamente e Alvarenga sorriu enquanto bebia e pensava na atitude do irmão...

 

(Continua...)

 

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Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 19/08/2007
Reeditado em 14/12/2023
Código do texto: T614596
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