Arantes

I - O homem

A pior coisa é o medo de súbito. Vem assim de repente e instala-se em seu canto, e não arreda o pé, e não sai, e não se mexe, o diabo. Nisto o Arantes seguia à frente, a arma em riste, suas costas pareciam uma juba. De vez em quando parava, sua mão direita subia espalmada no ar, e punha-se a escutar qualquer coisa. Parava em um portão e lá ficava, à espreita. Não foram poucas as vezes que encontrara bandidos dos piores só assim, com o ouvido. Através de uma paleta de som inexplicável, sabia quais vozes eram suspeitas, quais conversas e palavras, ditas ao vento, eram matéria de investigação.

Todos o tinham como homem direito, inflexível ao errado, era correto, justo, sua figura impunha respeito onde quer que estivesse. Mesmo quando, de paisana, não estava metido em sua farda, agia à maneira militar. Na verdade, a farda lhe era como uma segunda alma.

- A guerra não para – havia dito um dia, de quando fomos à sua casa, em comemoração ao nascimento do seu segundo filho.

A mulher de Arantes sempre concordava com o marido. Dizia, de lá de onde estava sentada, apartada dos convivas:

- Aham.

Não, não eram as casas vermelhas. Não, em absoluto. Eu não ficaria com medo disto. Além do mais, estas casas eram algo natural como o azul do céu para mim, há trinta anos as via assim, sempre a mesma coisa, vermelhas com manchas escuras, o chão de barro e concreto.

A verdade é que o medo veio ter comigo sem motivo aparente: as costas do Arantes, os passos logo atrás de mim, que pareciam querer me devorar. Sem me deter, espiei de soslaio para trás, como fosse verificar algo, e lá estava o restante da guarnição, os olhos atentos, em formação. Diego sorriu para mim. Que presença de espírito tinha aquele rapaz.

Mas, não, eu tinha medo. Confesso. Desde que entrei na Corporação, sempre tive em mim a ideia de que, fosse o que fosse, teria medo. Medo do escuro, do céu, do Arantes, de mim mesmo. Eu me assustei a mim próprio certa vez. Foi quando estávamos em S..., onde fomos atacados por bandidos atocaiados. Vi, entre o fogo-fogo, uma silhueta: para atingi-la, derrubá-la, imobilizá-la foi rápido. Meus pés em cima da cara do malandro, que sangrava. Sem mais, atirei à queima roupa. Depois, me assustei comigo mesmo. Mas, na hora, naquele momento, era como se tivesse respirando, nada mais. Nos dias que se seguiram, me veio a imagem, como em um pesadelo. Quase um ano de terapia.

- Nada, Juca – disse Arantes, após investigar uma casa, e seguimos.

Entrei na Corporação aos vinte quatro, a contragosto de minha mãe, que descanse em paz, Deus o queira, amém. Um jovem em busca de estabilidade financeira a qualquer custo, para que mentir? Quando estudava, não pensava na profissão em si, isto me passava longe, embora, vez em vez, me surgia a remota possibilidade, mobilizava meus pensamentos, mas logo sumia-se e a necessidade se avizinhava. Eu pensava no dinheiro, na estabilidade, no sorriso dos parentes. Não andam dizendo por aí que quem estuda para concurso acaba esquecendo o fato de que, após aprovado, há trabalho? Pois, então. Estudei com afinco, passei maus bocados, minha namorada à época, muito chateada, me abandonou. O pretexto: eu não tinha tempo para mais nada. Imagine o espanto dela quando, no meio de T.., ela me viu de relance, subindo, meu corpo integrado à viatura, seus olhos me seguiram até onde puderam, e naquele momento pude ver o quão surpresa ela estava. Foi um desgosto que lhe vi passar à frente? Não tenho dúvida, arrependeu-se.

Seguíamos, quando, de uma viela, surgiu um rapazote. Ao nos perceber, ficou lívido de morte. Arantes, sem mais, disse-lhe duas palavras duras, mirando-lhe a testa. O infeliz se jogou, apavorado, na parede, tremendo como uma vara verde. Julguei que tinha se posto a rezar, vez que tartamudeava algo, aos soluços. Inflexível, Arantes exigiu silêncio, pegou-lhe pelo cangote para depois lançá-lo contra parede novamente. Em seguida, empregou toda sua experiência para imobilizá-lo: posicionado estrategicamente às costas do rapazote, Arantes pegou-lhe as duas mãos com uma das suas, ao passo que, com a outra, revistava. Ao mesmo tempo, fazia pressão com o joelho na coluna do rapazote, que arqueava. Pura técnica. Junto a Diego, posicionei-me na entrada da viela, enquanto que dois soldados tomaram a retaguarda.

- Onde é a boca, filho? – quis saber Arantes.

- Não sei, senhor, eu não sei.

Arantes não estava de bom humor. Era como um pescador: se ia ao rio e voltasse de mãos vazias, chateava-se a valer. Seu sobrolho, suspenso, era um sinal. À medida que perguntava, Arantes alongava o rapaz, fazendo-o, com o corpo tísico, desenhar um arco.

- Esse pessoal só pensa em construir – me disse Diego, de repente, o que me fez esquecer Arantes. – Essas casas não demoram a cair e os filhos, não contentes com isso, fazem outras em cima. De que adiantar ter independência se sua mãe estiver no andar debaixo? Isto não é independência. Será a mesma coisa, ela continuará a te amofinar de qualquer jeito. Eu mesmo não, quero distância. Além do mais, a ausência estreita os laços, não é verdade? Minha mãe me ama loucamente desde que saí de casa. Acho que é meu quarto vazio que a faz me amar cada vez mais.

E pôs-se a rir. Eu, do meu lado, olhos pregados no final do beco, me mantinha sério, mas por vergonha do que qualquer coisa. Eu via Diego de soslaio, sua silhueta branca, mediana balançava-se, um sorriso de orelha a orelha.

- Você é vagabundo, rapaz, tem cara de bicho – ouvimos Arantes falar de lá.

Certa vez, quando estávamos no refeitório, bem à frente da moça do café, que sorria, Arantes me disse que, quando iniciou o curso de formação, à época cadete, deparou-se com um tipo que marcaria sua vida. Um professor de ética cuja origem pobre lhe fez perceber o quão somos diferentes, mas, ao mesmo tempo, como, em um movimento forte e ousado, que nascia do indivíduo e o transcendia, poderíamos ser iguais, nem que seja pela força. Aquele professor, vindo de não sei de onde, sem qualquer ajuda ou recurso, conseguira triunfar, estava lá, atrás da mesa, com toda a pompa de professor. Ele, e só ele, foi responsável pelo seu sucesso. Arantes tinha para si que haveria a possibilidade, totalmente exeqüível, de criarmos uma sociedade una, de valores homogêneos, sem espaço para dissidências. Só não vence quem não quer, ponto.

- Ele era pobre – tinha me dito Arantes, bem me lembro. – Veja você, agora professor.

Ao final, pensava Arantes que todos, indiscutivelmente, tinham as rédeas de seu futuro. O crime não passava de morbidez, preguiça, degeneração, doença das piores, e não haveria meios senão cortar o que estava doente do são. A sociedade era um organismo pulsante como qualquer um, e caberia a nós, a reificação da ordem, percebermos o que estava ruim e prontamente eliminá-lo, abafá-lo, prendê-lo, inutilizá-lo. Se parte da população não nos louvava, caberia a Deus fazê-lo, em algum momento de seu infinito. Arantes dizia sem voltar-se a nada, olhos sem brilho, colocados lá longe, sem se deter a coisa alguma, como que perdidos. Era como se não fosse ele que falasse, mas um segundo, poderoso, cheio de si, cônscio de seu poder, sobretudo na certeza do que era o errado e o correto.

O rapaz era marmiteiro. O cabo Emídio encontrou o documento que comprovava. O tipo trabalhava em uma grande rede de supermercados, das cinco em meia às quinze. Nenhuma entrada. Embora Arantes tivesse mal humorado, deu-lhe apenas alguns tabefes e um ponta pé. O tipo foi, comedido, e sumiu: devia ter sido a reza que o salvara de algo pior.

- Tudo de conluio com bandido – concluiu Arantes.

Arantes não era um sujeito que gostasse de machucar ninguém, todos o sabiam, mas era como se sentisse injustiçado. Por que nos matamos pela sociedade se a própria sociedade nos condena? Estamos na guerra, combatendo tudo do que há de ruim, e isto ninguém vê. Arantes, desde cedo, carregou consigo esta idéia: a sociedade não distingue o que é certo do que é errado. Os juízes, estes grão senhores, soltam os bandidos à larga, contrariando todos aqueles que trabalham, dão sua vida por uma sociedade onde o crime não tenha espaço. Como um corpo iria aceitar que parte sua estivesse doente sem tomar os devidos cuidados? Ao contrário, ao saber da doença, algum organismo trabalharia por espalhá-la pelo restante dos seus membros? Isto é um absurdo sem tamanho.

- São os próprios moradores que escondem eles – disse Arantes, quando voltávamos, a viatura sacolejando, o rosto virado para a janela. - Isto que é o pior, os próprios moradores ajudam bandidos. Aí quando mata, é aquela história, sempre a mesma coisa. Pois então, essas pessoas que ajudam bandidos são piores que bandidos. Aquelas senhorinhas – e pôs-se a rir a meia boca, nervoso – sim, aquelas senhorinhas, quando algum bandido é baleado, lavam o chão para que a gente não os persigam através do rastro de sangue. Dá para acreditar nisto? Como esse país vai pra frente se a população anda em conluio com bandidos? É a fórmula do fracasso e a gente fica pisando em caco de vidro.

- Não se lembra da história do bandido Lucena? – entrou na conversa Diego, que há algum tempo me mantinha sob seu olhar, escrutinando-me sem saber motivo. E dizia, me olhando. - É notório que os moradores de S... revezavam em qual casa poderia escondê-lo. Não faltou casa para o bandido. Só foi pego porque você, Arantes, escutou-lhe a voz, e foi tiro e queda. Invadimos a casa e lá estava o safado, no bem e bom, comendo e bebendo à vontade com a benevolência dos moradores da casa. Lá achamos, lá ficou.

Não se sabia o que pensava Arantes a respeito, se tinha orgulho ou não de quando falavam dos seus feitos. Olhei, rapidamente, sua feição, em busca de qualquer coisa, mas se mantinha como dantes: sério, os olhos perdidos, seus lábios desenhavam uma curva oblíqua. Diego, pródigo como de ordinário, contou mais dois relatos em que Arantes era o personagem principal. Nas histórias, tudo orbitava em torno da figura de Arantes, como se ele tivesse um poder magnético sobre si, círculos concêntricos que, à medida que se propagavam, retornavam a ele como narrativas fantásticas.

Sentia-me angustiado naquela noite. A luz amarela dos postes iluminava a rua. A janela da viatura é a marca do tempo: tudo se inicia de um antes, que mantém a coerência das figuras do presente, que aparecem para logo sumir, indo e indo, sem fim, indo e indo, em um futuro interminável e fugidio. Céu azul escuro, esta noite chove, certeza.

...

O Hospital Geral era um prédio sem brilho, feio até, localizado em um bairro silencioso, espaçoso e bem iluminado. Cheguei por volta das dez, ainda com a farda, após um dia difícil. As ruas contíguas estavam desertas, não se via uma alma viva. Estava nervoso e queria um desfecho qualquer. Pensei em Arantes, o que me confrangeu o coração. Em tempo, veio-me uma raiva tremenda, e gostaria de encontrar algo ou alguém para desafogar uma dor pungente que me confrontava a alma. Fiz das tripas coração, saí do carro, sem não antes passar todo o perímetro em revista. Na minha cintura, bem ao alcance da mão, minha pistola descansava, sempre às minhas ordens. Nunca lhe dei muita importância, mas hoje era como se ela tivesse crescido ante a mim, de modo que me parecia um membro do meu corpo alterado, rígido, sem paciência.

Quando me aproximei do prédio do Hospital, percebi o cabo Emídio em um dos acessos ao rol de entrada, escorado a um canto, fumando. Assim que me avistou, meneou a cabeça, condescendente. Cumprimentei-lhe, quando me abraçou.

- Está sedado – disse-me ao ouvido.

A recepção estava repleta de pessoas, algumas sentadas, outra, sem sorte, em pé, fazendo das paredes cama. Chegamos e vimos Diego, inclinado ao balcão, que discutia com um dos recepcionistas a pleno pulmões. Ao seu redor, um grupo de policiais o assistia.

- Como um por vez? Ora, não me venha com essa, queremos entrar todos!

- Senhor, eu só estou obedecendo a ordens.

- Ao diabo, nós somos a ordem, vamos entrar e queremos ver o tenente Arantes. A Corporação exige que estes que aqui estão – e virou-se, apontado os policiais que ali estavam, quando me viu, seus olhos detiveram-se em mim e depois retomaram rumo, reflexivos. – tenham acesso ao quarto do paciente Arantes. É uma exceção e urgência. Não fará mal a ninguém.

- Mas senhor, já tem uma pessoa no...

- Entraremos, não tem jeito.

Um homem de jaleco aproximou-se, tinha escutado o barulho desde a enfermaria, ao que parecia superior de alguma coisa. Segredou algo e liberou o acesso, com a condição de que aquilo não passasse além.

Entramos, como em uma coreografia, Diego ia à frente, afastando, quando necessário, pessoas do meio do caminho, inspecionando as portas em busca do número do quarto onde estava nosso amigo Arantes. Era um burburinho sem fim, pessoas estavam deitadas em macas no corredor, o prontuário jogado a um lado, outras, de idade, dormitavam nos bancos de madeira. Um cheiro de mercúrio impregnava todo ambiente, decididamente um local desagradável. Não que não fôssemos ali com certa freqüência, íamos lá, vez ou outra, em busca de bandidos que, sortudos, escapavam do primeiro assédio, mas se rendiam aos hospitais, em busca de atendimento. Íamos ter com eles, geralmente, na maca, baleados, quando mentiam à vontade, dizendo que se tratava de bala perdida, um caso qualquer, vítimas do acaso e da violência diária da periferia. Arantes, no entanto, não concebia mentiras, tampouco as compreendia.

Do lado da porta 12, sentada, os olhos fitos no chão, estava a mulher de Arantes, amparada por uma senhora de idade, que dizia, quando chegamos:

- Suzana, por favor, tenha calma, pense nos seus filhos. O medico me assegurou que ele sobreviverá, ele é forte, sempre foi forte. Arantes nunca se deixaria derrotar, você bem sabe disso. Agora tenha calma, tudo dará certo. Tenha fé em Deus, ele está no controle de tudo.

Paramos, atônitos. Após quase um quarto de hora assim, parados defronte à mulher de Arantes, Diego interveio, meio sem jeito, receoso de qualquer coisa:

- Olá, Suzana, sou o Diego, queria, primeiramente, lhe oferecer meus sentimentos pelo acontecido, algo inaceitável, ainda mais com uma pessoa tão próxima e correta como o seu esposo. Todos que aqui estamos trabalham com ele e, indignados, viemos vê-lo e prestar nossa solidariedade à família. Quem fez isso terá que pagar, nem que seja prestar contas a Deus.

Assustada, Suzana levantou mecanicamente o rosto maltratado. Há muito havia perdido o senso de espacialidade, esquecera de tudo o mais. Pensava estar ali só, aos cuidados da velha que a amparava, decerto sua mãe. Pálida como um fantasma, Suzana custava entender do que se tratava aquelas pessoas à sua frente. Ao que tudo indica, aos poucos, a farda que vestíamos lhe fez lembrar-se do marido, pelo que se pôs a chorar francamente.

A velha levantou-se e chamou Diego a um canto:

- Meu jovem, ela não está bem. Arantes está no quarto, desacordado, mas boas energias são sempre bem vindas. Podem entrar, eu fico com ela.

Já na soleira, Diego entrou, seguindo de todo o resto, exceto a mim, que estanquei na entrada, os pés fincados na soleira da porta, de onde via, bem à frente, um ambiente azul recortado por uma cortina, macas espalhadas pelo espaço, em desordem. Olhei para a Suzana nos braços de sua pretensa mãe, que dizia coisas calmas ao ouvido da moça que chorava de tremer. Seria o amor que a fazia chorar daquela maneira? Arantes ficaria aliviado ao constatar que era adorado em sua ausência. A ausência... Mas, ao final, como sempre acontece, se ele viesse, por desgraça, a morrer, ela o esqueceria. Não há pessoa insubstituível neste mundo, que precisa girar, com quem quer que seja.

Me matinha na porta. O fato era que temia ver Arantes com os olhos fechados. Quando criança, temia o sono como a morte. Acreditava que, se fechasse os olhos, jamais os abriria novamente. Quando, à medida que o sono ganhava terreno, a consciência ia se despindo, vinha-me um terror indizível. O sono era um engodo da morte. Ficava horas a fio sem pregar os olhos, mas era uma luta desigual. Não demorava e eu era vencido, dormia, dormia. Acordava aliviado: não havia sido daquela vez que o sono se havia transformado em morte. Noite e mais noite, o mesmo medo, o mesmo alívio pela manhã, em um vai e vem interminável: nós não sonhamos, estamos no sonho.

Quando, finalmente, decidi-me por entrar, Diego já saia:

- Venha, preciso lhe falar. – disse-me.

Ao seu encalço, todos os outros saíram, com as feições a fazer. Ouvi o cabo Emídio imprecar:

- Bandidos!

Naquela noite, tudo seguiu aos atropelos. Pessoa ousava dizer qualquer coisa. Após muito custo, Diego avisou que, em tempo, mandaria uma mensagem a todos, acertando dia, hora e local para uma reunião, quando seriam tomadas decisões importantes sobre o justo revide. Ao final, Diego fez uma espécie de discurso, no estacionamento do hospital, que quase me fez ir às lágrimas:

- Arantes somos nós. O que fizeram com este homem nos fere frontalmente. Os bandidos que assim o fizeram nos atacaram, a nós, que tanto trabalhamos para defender esta sociedade suja e ingrata. Senhores, eu repito, Arantes somos nós. Estamos, agora, sedados, em uma maca de hospital, mortalmente feridos, três tiros nos forçam para fora da vida, nossos olhos, antes abertos, percebiam o mundo, estão fechados. Se abrirão novamente? Nossas esposas e filhos choram e sofrem por nós, enquanto que para sociedade somos apenas um número entre tantos. Mas não somos números, somos homens, temos sentimentos, sonhos, medos, alegrias e desgraças. Mostraremos que, assim como Arantes, insistimos em ficar vivos. Mostraremos que o sopro da vida custa sair de nós porque o prendemos com uma das mãos. Venceremos.

...