7 - O Tempo Passa Rápido - Filhos da Terra

O sonho de Eló de sair da camisa-de-foça da mídia empresarial se desmoronou. Acabou por assimilar essa realidade e seguir em frente, tentando driblar as armadilhas ideológicas dominantes, no esforço de manter-se coerente. Felizmente sedimentara uma relação de confiança com as lideranças dos movimentos sociais, importantes fontes de suas reportagens, embora elas continuassem passando pelo crivo do chefe de redação. Acreditava estar cumprindo um importante papel na divulgação correta dos fatos produzidos pelos dois mundos antagônicos da sociedade, o de poucos que muito possuem e os de muitos que pouco ou nada possuem. Sentia-se feliz com o trabalho desenvolvido na comunidade. O jornal da associação era uma ferramenta importante na organização das lutas pelas melhorias do bairro e na integração dos moradores; a sua contribuição fora decisiva. Agora raramente pediam-lhe ajuda, pois caminhavam com as próprias pernas. A amizade com os vizinhos solidificara-se, gostavam dele sinceramente e conversavam de igual para igual. Alguns não conseguiam romper com o servilismo, outros continuavam desconfiados, mas no geral, era bom. "Paciência revolucionária, ensinou Lênin", dizia para si. Quase dois anos se passaram e não tinha planos de sair do bairro operário. Muita coisa mudara: umas para melhor, outras para pior. Embora menos assíduo, continuava frequentando a casa de Dona Sônia. Zenaide estava a cada dia mais linda, desfilara no Minas Mostra Mulher; Edileuza abandonara a igreja e frequentava o forró da associação, quase sempre acompanhada de Tenório. Estava mais bonita, pois se livrara da rigidez da doutrina religiosa. Tão ou mais bela que, a irmã, mulher no melhor sentido da palavra. Tinha por volta de vinte e cinco anos de idade, continuava responsável e sedutora. Marcelo não tinha jeito: a cachaça o estava destruindo. Dona Sônia continuava a mãezona de sempre, vigilante, uma matriarca liberal. A nota triste era Wallace. Transformara-se em menor infrator e com fortes indícios de que fora cooptado por narcotraficantes. Tinha dúvidas quanto ao futuro de Zenaide. Primeiro por causa da realidade social; segundo por não levar a sério os estudos, vivendo no mundo da lua, sonhando com a fama e se dedicando pouco de realizá-lo. Ultimamente andava enrabichada com alguns homens bem mais velhos. Iria completar quinze anos e ele queria ir à festa de aniversário. "Meu Deus", pensava Elói, "não sou nenhum salvador da pátria, mas como quero tanto que esta menina não sucumba, quero ajudá-la e não sei como. Vou conversar mais com ela, intimá-la a dar um rumo. Não pode se perder...".

Pousou o copo de uísque sobre a mesa ao ouvir a batida na porta. Reconheceu o toque de Zenaide e correu para abrir. Assustou-se ao vê-la em prantos: - Oi, o que aconteceu? Pegou água com açúcar e ela bebeu, com as lágrimas caindo dentro do copo. Após conduzi-la até a sala, deitou-a na poltrona, com a cabeça em seu colo. Acariciou seus cabelos com ternura e cantou uma canção até ela adormecer.

Olhando-a em seu sono inocente, o jornalista começou a pensar sobre a juventude atual e a comparar com a sua geração. Aos treze anos participava ativamente da luta pela redemocratização do país, pelo socialismo e continuava engajado por transformações sociais. Entretanto, apesar de continuar acreditando que o melhor modelo de organização social ainda fosse o socialismo, via-o como algo distante. Estudou com afinco a ascensão do neoliberalismo no mundo, desde Margareth Teacher e Ronald Reagan na década de setenta do século 20 até a sua introdução tardia na América Latina. Acompanhou, confuso, a queda do socialismo no leste europeu e do muro de Berlim; não se julgava herói da resistência, mas contribuíra para pôr abaixo a ditadura militar brasileira, quando ela dava sinais de esgotamento, durante o governo do ditador Ernesto Geisel e ouviu João Batista de Figueiredo dizer que daria um tiro no coco se ganhasse um salário mínimo; sentiu na pele como é duro viver sob as botas do autoritarismo, sem liberdade de expressão e organização; chorou a morte de Henfil e foi testemunha ocular da proliferação da AIDS; lembrou-se das manifestações estudantis e operárias, com as ruas e praças tomadas pelo povo, exigindo diretas-já. Fora protagonista de alguns momentos históricos. Participou ativamente da primeira eleição presidencial, depois dos longos anos de ditadura; carregou faixas, fez passeatas, organizou comitês eleitorais, colocou adesivos e botons do seu candidato em todo o corpo, transformando-se em um outdoor móvel; viu o seu candidato ser batido por um jovem oriundo da elite; assistiu ao seu impeachment e a eleição e reeleição de um ex-professor, intelectual sofista; acompanhou, pela imprensa, com indignação, jovens da classe média de Brasília incendiar o índio Gaudino. Na esfera internacional, aplaudiu a eleição de candidatos de esquerda na América Latina; a resistência do povo cubano; viu pela tv a guerra imperialista estadunidense no Golfo Pérsico; a humilhação imposta pelos sionistas de Israel ao líder palestino Yasser Arafat; o eterno conflito entre judeus e palestinos; o desmoronamento das torres gêmeas em onze de setembro; a invasão do Afeganistão e do Iraque; os ataques na Faixa de Gaza; o aumento da poluição e do aquecimento global; das desigualdades sociais; do terrorismo e do narcotráfico.

Observando a garota mais linda do bairro dormindo na poltrona, perguntava sobre os sonhos da juventude atual. Concluiu que a ditadura militar fora substituída pela ditadura econômica; a censura governamental da ditadura sobre os veículos de comunicação dera lugar à censura patronal e a autocensura; uma parcela de bons e aguerridos companheiros de lutas por transformações sociais ocupavam cargos no primeiro escalão do novo governo. O metalúrgico Luis Inácio Lula da Silva, após três derrotas, finalmente chegara à Presidência. Participara dessa eleição, sem o entusiasmo das anteriores. Depois da publicação da Carta aos Brasileiros, tinha dúvidas sobre os rumos do governo que ajudara a se eleger e de como a população, especialmente a jovem se comportaria diante da nova conjuntura. De qualquer maneira, um operário no governo federal e a elite em polvorosa significava um avanço. Pensava no futuro daquela garota pobre e bonita, dormindo um sono profundo no sofá. O novo governo conseguiria promover as mudanças necessárias, para transformar esta realidade cruel, que exclui milhões de cidadãos a uma vida digna? Nessas horas a figura patética de Lech Valessa, esperança dos trabalhadores poloneses surgia, como um fantasma em seu imaginário.

Suas reflexões foram interrompidas quando Zenaide acordou. Olhou para ela com carinho e perguntou: - Quer fazer um lanche? Como uma criança que para de chorar e se distrai com um brinquedo, ela acenou que sim, com um sorriso devastador.

- Pois então, vamos preparar um sanduíche da hora e depois quero que me conte as novidades, porque estava chorando...

Próximo capítulo:

8 - O Meu Guri

Rapidinho:

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.

Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição

Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.

www.jestanislaufilho.blogspot.com Contos, crônicas, poesias e artigos diversos. De minha autoria e de outros e outras. Convido você a participar com texto de sua autoria. Será um prazer publicar.

#LulaLivre Doravante esta hashtag estará em minhas publicações enquanto não apresentarem as provas contra Lula