22 - Encontro Marcado - Filhos da Terra

A desordem invadiu as emoções de Elói, deixando-o em dúvidas quanto ao encontro com Zenaide. Brincar com os sentimentos nunca fora o seu forte e se preocupava mais com o dos outros que com os seus. Não queria ser severo consigo, porém a auto-crítica implacável o perseguia. Questionava se era influenciado por ideias egoístas, individualistas, que nos últimos anos iam se tornando hegemônicas, ele um adepto da solidariedade e de projetos coletivos. Sempre tivera amores rápidos, pois prezava a liberdade. Estava consciente de se relacionar com uma garota de programa soropositivo, entretanto uma força interior o impelia. Atração? De qualquer forma seria apenas um encontro, embora intuísse que a chance de ir para a cama fosse grande. Inconscientemente elaborava uma estratégia de conquista: surpreendê-la num restaurante acolhedor, com música ao vivo. Tomariam vinho fino, em seguida a convidaria para uma dança. Imaginava o brilho nos olhos da garota, a alegria. Iria sussurrar palavras de amor em seu ouvido. Nem ao menos se lembrava que ela vivia um drama pessoal, tampouco que a idade abrira um fosso entre eles. Mas o desejo de vê-la se manifestava de forma avassaladora, assim como o impulso de tê-la nua na cama num lençol branco e perfumado, amando sem medo. Esse mesmo medo que o assaltava quando saía da ilusão com a realidade chicoteando impiedosamente seu coração e mente. Queria ser compensado e recompensado por tudo que passara entre eles. Serem felizes. Ambos conquistaram esse direito, nada mais justo. "Ora ora - dizia para si -, até quando deixarei escapar um momento de prazer? Passarei a vida inteira me punindo? Elói, preste atenção, o único obstáculo é ela não querer, fora isso, não tem nada a temer. Ela sofrer, não, já está sofrendo, mas é justo aí que está o obstáculo. Assim não pode. No fundo eu quero aliviar o seu sofrimento, fazê-la feliz. Mas temos como fazer alguém feliz? A felicidade não está na pessoa? É subjetiva? É possível ser feliz levando uma vida precária, sem perspectivas de mudança?". Pegou o celular e ligou pra Zenaide, mas a ligação caiu na caixa postal. Não deixou recado. "Caramba, ela não atendeu!". A dúvida de que ela desejava ir ao seu encontro brotou lá no fundo. Esse sentimento de rejeição o incomodava. Esperou um tempo e ligou novamente. O telefone tocou, tocou até se desligar abruptamente. "Porque ela não atende?". Andou de um lado a outro, achou melhor esperar que ela retornasse a ligação. Olhou e relógio e optou por esperar uns dez minutos. O tempo não passava. E Zenaide não retornava a ligação. Esgotado o tempo, ligou de novo e de novo caixa postal. Sentiu-se ridículo. Saiu do apartamento, pegou o elevador e foi pra Cantina do Lucas. Pediu o de sempre. Depois da segunda dose, não resistiu e tornou a ligar. Zenaide atendeu e explicou que Vitória caíra da cama, tivera de levá-la ao pronto-socorro. Acabara de chegar em casa. Perdeu a coragem de convidá-la e a conversa se limitou à saúde da criança. Quando a conversa caminhava para as despedidas, Zenaide disse que gostaria de vê-lo. Combinaram o encontro para o dia seguinte às dezessete horas no Itaú Power Center. Sentiu-se aliviado. Voltou ao apartamento, ligou o computador e começou a escrever um artigo em defesa do governo Lula, a pedido de um parlamentar do PT. Depois de terminar o artigo, enviou-ou pelo correio eletrônico. Passava das duas da madrugada quando fora se deitar. Foi um sono agitado. Ao se levantar surpreendeu-se com o horário. Estava atrasado para o trabalho.

Entrou no escritório e como de costume foi direto tomar o cafezinho. Colocou meia xícara e levou a Renato Matos. Todos pareciam tensos na redação. Renato fez um sinal pedindo-lhe silêncio, em seguida convidou-o a saírem, com a desculpa de comprar cigarro. Enquanto caminhavam até a lanchonete, Elói perguntou "e aí, o que está pegando?". Renato olhou-o de esguelha "calma, nada fora do normal, as perseguições de sempre". Sentaram-se em um canto isolado e Barros colocou-o à par dos acontecimentos. Manuela, recentemente promovida a chefe de redação, fora chamada à sala da presidência e em pouco tempo voltara com ordens explícitas de que nenhuma matéria sobre o envolvimento do ex-governador tucano com o valerioduto fosse divulgada. Nenhuma matéria com interpretações ambíguas sobre Aécio Neves serão admitidas, ao contrário, focar nas qualidades pessoais do governador, o choque de gestão. Para Elói isso não era uma novidade, "nada de novo na frente de batalha, mas se um grampeador sumir no Palácio do Planalto deve ser manchete de capa". Renato colocou o indicador nos lábios, como sempre fazia quando tinha algo importante pra dizer. "Conheço bem esta expressão, desembucha, Renato, não é só isso", disse Elói olhando no fundo dos olhos do colega. Após alguns segundos, vendo as horas no relógio de bolso, Renato abriu o bico: "É o seguinte, Elói, depois da demissão de vários colegas por não se enquadrarem nas ordens do governador, a caça as bruxas está de volta. Você é a bola da vez. A Manuela você conhece, não põe em risco o emprego dela, obedece, apesar de gostar da gente. Ela segura até certo ponto". Elói fez um gesto de indignação e respondeu: "O que os donos do jornal querem mais? Não basta a omissão? Por estas e outras a imprensa vem perdendo a credibilidade. Os leitores não são imbecis. As tiragens estão caindo tanto e não me surpreenderá se o Diário de Todos sair de circulação. Por que não limitam suas opiniões nos editoriais? Além de não podermos noticiar os fatos relevantes ainda temos de encher a bola de quem nos persegue... Quanto a mim, não sei o que querem mais! Suportar a Andrea na redação, selecionando imagens do irmão, definindo manchetes, porra, cara!". Retribuindo o olhar fixo de Elói, Renato disse "veja bem, meu caro, quanto a sua situação, estou falando como porta-voz. É para alertá-lo. Manuela não quer te perder. Disse que sem você a redação será um desastre. É quem tem as melhores fontes, inclusive nos movimentos sociais e na esquerda. Ela sabe, que sem bons jornalistas, ela também perde, aliás, todos nós seremos prejudicados". Elói bebeu o último gole de café, acendeu um cigarro e antes de se levantar, disse ao amigo: "Não vou me estressar, tenho um encontro hoje com uma gata. Obrigado, companheiro, mas eles estão de olho em mim por meio de quem?". "Ora ora, de suas matérias, de suas relações com os sem-tetos, os sem-terra em que você aponta as contradições do sistema e tece crítica subliminar ao choque de gestão do governador, elogia sutilmente os programas sociais do governo Lula", completou Barros.

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Chegou atrasado ao encontro de Zenaide, que o esperava na praça de alimentação. Cumprimentou-a num abraço afetuoso. Ela parecia triste. Pediu dois chopes e por um tempo falaram de amenidades. Com a intenção de entrar no clima que o levara até ela, disse: - Você está linda. Zenaide olhou-o com tristeza e respondeu sem entusiasmo: - Pode ser, mas até quando? A doença está me comendo aos poucos. A conversa não começara como ele pretendia. Tentou animá-la: - Conheço muita gente infectada levando uma vida praticamente normal. Claro, com alguns cuidados, você é jovem, bonita e poderá encontrar quem te ame de verdade. Ah, não pode tomar coisa gelada! - Encontrar alguém... quem vai querer ficar com alguém condenada a morte? Elói olhou-a, enternecido, tocando levemente em seu rosto: - O que é isso, garota? Eu posso te amar! Zenaide o encarou, séria e cética: - Isso não faz parte de minhas preocupações, não tenho cabeça pra pensar em homens, sexo, amor, paixão. A minha vida está uma merda. Uma coisa é falar, outra é sentir na pele. O que me falta de apetite, sobra em diarreias. Não percebeu o quanto emagreci? Qualquer ferimento é um horror. Gripe, nem pensar! A dor da garota o inibiu, o clima de desejo foi embora e a conversa seguia para outro rumo. A curiosidade de saber de suas atividades de garota de programa teve de ser reprimida. Não queria ser indiscreto e falou com cautela: - Quer dizer que sexo está fora de cogitação! Ela respondeu com firmeza: - Perdi o tesão. Elói sentiu o baque, não se incomodava com a doença, iria pra cama com ela. Sentiu-se rejeitado. Sentimento que o perseguia. Zenaide estava mais para bombeiro, ainda assim Elói recusou-se a ver a realidade e foi em frente: - Penso nunca ter escondido de você meu desejo de levá-la pra cama. Me lembro bem de você entrando em minha casa com o short curto, sem sutiã. Puxa Zenaide, não tinha coragem, você de menor. Eu ficava louco de tesão. Lembro bem o dia em que você sentou-se em meu colo, via seus pequeninos seios duros, a pele macia. Cheguei a tocar neles ao te beijar o pescoço. Quando você saiu me masturbei. Nesse ponto Zenaide ficou mais animada, sorriu até. - Eu sempre me lembro dessa época em que éramos felizes. Zenaide sorriu de volta e revelou: - Você era mesmo um idiota. E eu louca pra transar com você. O que mais queria? Fiz de tudo pra chamar sua atenção! Elói retrucou: - Tive medo de te magoar, magoar sua mãe, virgem de menor... Zenaide deu um sorriso e falou com ironia: - Eu virgem? Louca pra trepar com você. Depois eu me cansei, ah, cara chato, bobo! Elói concordou o quanto fora refém de um moralismo cínico. "Mas você tinha apenas treze anos, era complicado", pensou. Se por um lado o amor não tem pressa, também não pode esperar tanto tempo. As últimas palavras de Zenaide deram-lhe esperança. Poderia reconquistá-la. Mas Zenaide não era mais a garota mais linda do bairro. Em cinco anos as mudanças marcaram profundamente suas vidas. Dúvidas o assaltavam novamente. Mesmo que a convence de ir pra cama, como seria? Seria a garota erótica de outrora ou uma profissional do sexo, mesmo não havendo pagamento? Um movimento interno obsessivo sussurrava em seu ouvido para prosseguir. Disse de supetão: - Quero fazer amor você, sempre quis. Zenaide ficou em silêncio, olhando-o com provocação e um sorriso enigmático. Respondeu olhando de um lado para o outro, os cabelos balançando calculadamente: - Estou surpresa com você, que nem sei como responder. Me deixou encabulada e confusa. Sou grata por tudo que fez por mim. Não imaginava que o seu desejo era assim... assim tão forte. Preciso de um tempo.

Depois disso, recordaram o passado, o sonho das passarelas, a convivência no bairro. Antes de pedir a conta, Zenaide pediu licença para ir à toalete. Ele a seguiu com os olhos. Caminhava com leveza, balançando os quadris. "Ela já decidiu e nós iremos ao motel em breve", pensou. Ela retornou olhando-o com malícia. Elói se levantou e agarrou-a pela cintura. Seus lábios se tocaram, num beijo rápido. Sorriram. Antes de se despedirem, Zenaide falou com franqueza: - Preciso fazer uma compra no supermercado, você poderia me emprestar uma grana? Pego de surpresa, não soube negar: - Claro, quanto você precisa? - Uns cem reais está bom - respondeu. Sem hesitação, deu-lhe cento e cinquenta.

Despediram-se com um abraço rápido.

Próximo capítulo:

23 - Os Encontros se Sucedem

Rapidinho:

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.

Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição

Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.

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#LulaLivre Doravante esta hashtag estará em minhas publicações enquanto não apresentarem as provas contra Lula