'EU VIM DE LONGE' - Texto do livro "Giulia - Quando a Luz se apaga"

Na manhã do quarto dia, como prometera ao filho, Celeste fora ao encontro de Giulia em sua casa e não a vira. A despeito de seu receio em rever a mulher rancorosa e ciumenta que talvez não a deixasse entrar por sentir-se irreversivelmente substituída em seu papel de mãe, fora bem recebida por Eulália que aparentava estar tremendamente exausta e preocupada. Aflita mesmo. Não soubera dizer o paradeiro da própria filha durante os dias em que se afastara da Casa Lilás e, mais particularmente, não soubera explicar à Celeste o que ocorria entre as quatro paredes do quarto onde sua filha costumava dormir tranquilamente, após a adolescência conturbada. Dissera à Celeste que Giulia voltara a falar sozinha, rindo-se pelos cantos da casa como quando era ainda uma criança inocente. Não! Não é como era criança. Está diferente. Bem diferente. Vc precisa ver Celeste, segredava-lhe, olhos irrequietos como se soubesse que a estariam espionando dentro de sua própria casa.

- Ela não é mais a mesma. Mudou. Os olhos, o jeito de andar, o palavreado, as atitudes. Não é a minha filha. Não é. Deus sabe o quanto eu errei. E eu sei que vou arder no fogo do inferno, mas, Celeste... - Tomara fôlego e abanara a cabeça como a espantar alguma lembrança ruim. - Eu jamais prejudicaria minha filha intencionalmente. Jamais. Acredite em mim. - Dissera-o com sinceridade e Celeste acreditava sim. Celeste a acalmara enquanto tomavam uma xícara de café juntas, sentadas à mesinha de formica retangular num azul embaçado com pés de ferro e as cadeiras eram coloridas. Tudo nesta casa é mais velho do que eu, tia. Mas eu amo essa cadeirinha vermelha. Não é uma graça!? Celeste, agora, lembrava-se da menina magra de cabelos curtos como que cortados à navalha, olhos tristes sentada à sua frente, exatamente como encontrava-se Eulália. Celeste e Eulália até sorriram juntas. Claro. Tudo isso antes que o pai de Giulia pusesse os pés dentro de casa. Eulália envelhecera uns dez anos, em poucos minutos, diante dos olhos atônitos da tia de sua filha. Um horror. Como alguém poderia se deixar modificar tanto assim por outra!? E que amor era aquele que a deixava mais feia? Me diga, meu bem. Foi por ele que tudo começou, não foi? Foi por ele que vc fez o que fez, não foi? Diga Eulália! Eu preciso saber para ajudar nossa Giulia. Ela insistia e a mãe fixava aqueles olhos extasiados no teto. Celeste, ela sai à noite e fica vagando por aí. Não é mais a Giulia que eu conheci. Ela estava francamente decidida a evitar o passado ou a confessar o inconfessável. - Eu a segui uma noite dessas. - cochichara, olhos cheios de temor. - Ela não faz nada além de andar por aí, catar umas pedras no chão. Eu não sei o que tanto ela quer com aquelas pedras! E os gatos, Celeste!? - a colherinha misturava o açúcar ao café com tanta fúria que corria o risco de arranhar a porcelana. - Eles se agrupam em torno dela, Celeste! - Que olhos são esses, mulher? Que bobagem. Gatos são assim. - Ah! Celeste! Eu vi! Eles se enroscam nos pés dela e ela ri! Ela ri e fala sozinha também a minha filha, Celeste! Ai, que dó.

- Sei - resmungava Celeste, observando-a atentamente.

- Ah, Celeste! Como me dói! Os vizinhos falam dela. Eles caçoam dela ou tem pena dela. O que será de mim, Celeste? Uma filha falada por ter sido largada pelo noivo e agora, eles a chamam de louca ou de bruxa. Ah! O que será de mim, Celeste!?

- Ai, meu bem! O que será de vc, não é mesmo? - debochara entre dentes. Havia anos que desejava dar-lhe uns bons bofetões naquele rosto amiudado, emoldurado por cabelos lisos e agora grisalhos. Aquela expressão beatífica! Um bom tapa nessa cara é o que vc merece! Ai, meu Deus. Me perdoa. Essa mulher desperta o pior em mim. - E o que pretende fazer, Eulália!? Sua filha está lá fora! Correndo perigo! O que pretende fazer!?

- Entregar a Deus, nosso Pai. Só Ele, Celeste! - então cerrava os olhos, erguia o queixo para abrir novamente os olhos e revirá-los num gesto repulsivo.As mãos pequeninas que se juntavam como em uma prece. Arquejava numa sofreguidão. Essa é a hora. Se tiver que estapear esta mulher, é agora ou nunca! Vá! Crie coragem! Só um tapa na bochecha de mão cheia. Vá! Pelo amor de Deus! Mete a mão na cara dela agora! - Que Deus tenha piedade da alma de minha pobre filha. - Deixa pra lá. Não vale a pena.

De nada adiantara aproximar-se daquela alma tão egocêntrica quanto enlouquecida pela paixão, pela vergonha e pelo remorso. Por aquele homem - o pai de Giulia - faria tudo. Fizera de tudo. Não por ele exatamente, mas pelo que ele poderia lhe dar em troca. Mas haviam se passado tantos anos! E, como pagamento pelo que recebera, prometera algo a outro alguém. Mas havia se passado muito tempo. Certamente, jamais pensara em ter de lidar com seus atos impensados, agora, no presente. Não. Absolutamente. A culpa não era dela. O que fizera no passado, morrera no passado. Nutria pelo marido uma gratidão doentia. Gratidão pelo quê!? O que ele te deu, mulher!? Me conta tudo. Olhe pra mim! É sua filha! Tem algo de ruim aqui, nesse lugar, e não está atrás de vc, Eulália! Me conte. Vamos! Me conte! Precisamos fazer alguma coisa. Acorda, Eulália! - VC TEM QUE AJUDAR A SUA FILHA! - Foi quando desviara, numa fração de segundos, a mão em punho do rosto impassível da mãe e socara, violentamente, a mesinha. Havia tanta raiva acumulada naquele ato que vira, com um prazer quase que diabólico, o conjunto de porcelana, presente de Carlos "O eterno genro", pular para o chão e espatifar-se em mil pedacinhos branquinhos como flocos de neve. - Ó! - Eulália de joelhos no piso novo da cozinha. Eulália encolhida, troncos curvados sobre as pernas flexionadas. Eulália muda, olhos petrificados fitando o chão reluzente. - Meu conjunto de porcelana Não! Não. Isso não! - Celeste a vira catar os caquinhos no chão com os dedos cirúrgicos, enquanto parecia amaldiçoá-la emitindo ruídos ininteligíveis e muito baixos para serem ouvidos por um ser humano. Talvez o cachorro do vizinho as tivesse ouvido. Levantara-se da cadeira, elegantemente e pedira-lhe desculpas quando os olhos coléricos de Eulália, ainda ajoelhada, como uma penitente, ergueram-se lentamente por debaixo das pestanas.

- Vc já me fez muito mal! - aquela voz cravejada de ódio e rancor, aquela expressão de falsa humildade. Ah! A boa e velha chantagem emocional! Eu sabia que ela estaria aí, escondida, meu bem. - A vida toda vc tentou me roubar a filha! Agora conseguiu! Então, fique com ela. Que horror, Eulália. Pense no que diz. Estava completamente constrangida, desolada. Confirmara o quanto a sobrinha havia sofrido naquele lar. - É melhor vc partir, Celeste. Assim que ela voltar, eu telefono. - lançara um olhar pesaroso aos floquinhos cortantes. Engolira o choro, erguendo-se altiva, soberba e desafiadora como uma naja. - Agora vá! Meus nervos não aguentam mais. - Celeste fingiu não reparar nas mãos que se enroscavam e nos dedos que se entrelaçavam nervosamente. Sua filha corre perigo. Vc me ouviu? Vem comigo. Dissera com doçura na voz e os olhos piedosos. Ela precisa de vc. Que tipo de mãe é vc!? Abanara a cabeça, franzindo as sobrancelhas, sem acreditar no que via. A mulher preocupava-se mais em colar o que restara do conjunto de chá do que com a sorte da própria filha. Deveria ter acertado sua cara quando tive a oportunidade.

Indignava-se, enojava-se a cada olhar que lançava ao casal ligado, um ao outro, na altura do umbigo, por um fio acinzentado, denso, viscoso. A tia vai te encontrar, Giulinha. Prometo. Vou te levar pra nossa casa. Nosso lar, minha filha. Dissera-o assim que cruzara, aliviada, o portão daquela casa e quando arriscara um último olhar à Eulália, ali, parada sob o umbral da porta da sala, como uma estátua e as feições endurecidas, jurou ver morcegos com asas imensas e negras cobrindo o grande espaço do terreno, de ponta a ponta. Formavam um círculo grotesco, coeso, célere e contínuo somente sobre a casa deles. Ela chegou a duvidar de sua sanidade ou da necessidade de mudar os óculos. Ouvira o farfalhar das asas aterradoramente abertas e o alarido medonho que faziam quando esbarravam uns nos outros. Deus. São tantos! Isso é minha imaginação ou é real? Ah, Celeste! Tenha dó! Estão atrás das mangas espalhadas pelo chão. Pare de fantasiar. É. Pare de fantasiar. Nossa! Até o portão faz um barulho assustador. Esse poste nunca foi consertado. Será que Fernando já chegou lá em casa? Enzo se lembrou de tomar banho? Ah! Se eu me apressar, talvez eu a encontre na pracinha. É. Preciso ir mais rápido. Um pouco mais rápido. Essa dor que não me larga. Eu tomei os remédios hoje? Meu Deus. Não me lembro. Ah! Como aquela menina cresceu! É a neta da Amélia! Não. Não pode ser! Tão bonitinha. Parece com a Giulinha. Giulinha. É. Preciso te encontrar, minha filha. Me mostra o caminho, Senhor. Ela via as casas antigas, as padarias, o mercado. Nada havia mudado naquele bairro. Nada além de sua sobrinha e de seu coração que cismava em falhar justo quando ela mais precisava dele. - "Vc ama demais, Celeste. Por isso, seu coração é tão grande". Ai, ai, Dr. Alexandre tem cada uma! Amar demais faz crescer coração!? Então, tá. Mas, o que foi aquilo que vi no quarto dela assim que eu cheguei? Arrepiou-se súbita e violentamente ao se lembrar dos olhos escuros, brilhosos e lascivos envoltos em uma fumaça negra, escondendo-se sorrateiramente atrás das cortinas da janela fechada. Eu vi. Isso eu sei que vi. E o que dizer da estranha turbulência no ar aquecido e denso acima de suas cabeças, enquanto tomavam uma chávena de chá? Eram como grandes teias de aranha numa corrente de ar. Minha imaginação também?

***

Contrariando o pedido do filho que lhe dissera para não seguir os passos de Giulia, pois ele mesmo o faria, ela, naquela mesma noite percorrera todos os cantos e recantos daquele bairro por ela tão conhecido. E, de fato, todos a conheciam e dedicavam-lhe uma incômoda devoção. Chamavam-na de "A Dama de Branco". Ah! Como odeio esse apelido idiota! Parece que morri e apareço, com o nariz cheio de algodão ensopado de sangue, em banheiros de escolas para assustar crianças. Os risos de Nando, ainda pequeno, ecoavam pela casa quando ela, impaciente, despachava uma ou outra mulher que a procurava implorando por algum tipo de oração "- Ou mesmo feitiço. Dona Celeste!" - Que prendesse maridos. Outros, de fato, a respeitavam pelos serviços prestados àquela comunidade, doando cestas básicas aos mais necessitados ou lecionando, em seu tempo livre, para crianças e idosos que ainda não haviam perdido a esperança em algo melhor. Então, sentia-se bem. Sentia-se realmente iluminada por aqueles sorrisos radiantes e amarelados. Ai que vontade de esfregar a escova de dente na boca dessa gente toda, tia! Dente quebrado ainda vai, mas, dente amarelo e cheio de tártaro, tia! Ah, pelo amor de Deus, tia! Uma escova de dente e uma pasta não são tão caras assim. Tem na cesta básica da senhora, tia! Giulia inquietava-se durante as aulas onde auxiliava Celeste, recolhendo os cadernos e corrigindo os trabalhos. Apiedava-se dos alunos, conquanto lançasse a eles seu olhar de insatisfação. Vão sair daqui e encher a cara de doce ou comer churrasquinho com cerveja. Dizia-o furiosa enquanto os via descer as escadarias, enlouquecidos, do colégio onde estudara. Mas dinheiro pra escova e pasta de dente não tem! Ah, tá! Escovem com sabão de coco! Sim tia! Sabão de coco clareia de um tudo!

Havia também os membros da igreja em consultas nada ortodoxas, afastados dos olhos astutos do padre.

" - De nada adianta que eu lhe chicoteie com essa arruda, querida, se vc não mudar seus hábitos. Vc entende a que hábitos eu me refiro, não entende? Hã!? - piscara sutilmente. - Não entende? Ah, meu bem. Deixe-me lembrá-la então. Preste bastante atenção". - Nessas ocasiões, Giulia a espiava pela fresta na porta da sala onde a tia costumava atender aquele povo. Exultava pelo jeito delicadamente incisivo de sua tia em cutucar feridas e expor a podridão daquele gente que se comprazia em denegrir a imagem da adolescente, inibida e sem amigos, após a missa aos domingos. - "Se essa arruda que tenho nas mãos murchar agora, não pense vc que seus pecados terão sido absorvidos pelos poderes ocultos da Ruta Graveolens." - Giulia ouvira o tom grave e carregadamente sombrio que a tia dava às últimas palavras, arrancando arquejos de espanto da consulente. No corredor, escondida de todos, tampava a boca com as mãos, abafando os risos. Contorcia-se com uma minhoquinha retirada da terra. Era magra e sem graça a menina aos onze anos. - "Ah, não! Não mesmo! Vc vai precisar largar de mão alguns vícios, se é que me entende. - erguera a sobrancelha questionadora à moça que se fazia de boba. De súbito, pousara sua mão gelada sobre a dela. A moça arregalara os olhos culposos. Serei bem clara, meu bem! - "Vai ter que parar de dar aquelas escapadinhas após o almoço e esquecer aquele rapagão. Silêncio absoluto, exceto pela crise de tosse de alguém fora daquele cômodo. - "Seu marido a ama, querida. Dê valor a isso antes que perca tudo. Agora vá. Vá! Aproveite a vida." Touché! Saltitava Giulia num canto da cozinha, sentindo-se vingada. Eles a procuravam como as hienas que cercavam as carcaças deixadas pelo leões. Acendiam uma vela para Deus, outra para o Diabo. Agradeciam à Celeste pela cura de algum mal e corriam de volta à igreja para beijar as fitas vermelhas que pendiam dos santos e contavam, com riqueza de detalhes, o que a tia da menina, amante de Satã, os obrigava a fazer. Ah! Ela não está em lugar nenhum. Já deve ter voltado. Deus. Permita que ela já esteja em casa. Não consigo mais andar. Dói tudo. Tô velha, meu Deus. Sentia a brisa da noite beijar suas faces e despentear seus cabelos finos e ralos, ainda dourados como o sol. Por que o Senhor não me curou? Sei que não mereço, mas preciso tanto cuidar do Enzo e das crianças. Ainda não. Não me leve agora. Eles precisam de mim, Senhor.

"Basta que tome os remédios"

É. - assentiu com a cabeça sem distinguir de onde viria aquela voz suave e convicta. Se viera do interior de sua cabeça ou da escuridão da noite que a cercava. Basta que eu tome os remédios. Basta que eu tome os remédios. Repetira, ofegante. Vou descer a ladeira. Por aqui é mais perto e, pra descer, todo o santo ajuda. Seu coração palpitava perigosamente numa angústia que antecedia alguma má notícia. Ela o pressentia. Assim como pressentia a estranha forma como Enzo estaria voltando a se comportar. Nada de tão preocupante. Um esquecimento aqui outro acolá. Houve uma manhã em que acordaram, como sempre, juntos, abraçados um ao outro e ela aguardara por seu beijo matinal com sabor de menta, esperando-o abrir aqueles olhos de um azul profundo. Ele os abrira e ela se assustara com aquela expressão em seu rosto. Ele a fitara com os olhos petrificados, estarrecidos, a voz que não lhe saía da garganta. O terror estava estampado em suas faces descoradas, ainda com o rosto mergulhado no travesseiro fofo com as fronhas de um branco impecável. Ela o beijara na testa, sentindo-lhe a pele úmida, macia e chamara por seu nome. Mantivera a calma. Chamara por seu nome. Uma, duas, três vezes. Não vá. Não vá. - Enzo, meu amor! Enzo! Enzo, sou eu! Sua esposa! Vc é meu marido. Meu amor. Vivemos juntos há quarenta anos. Temos dois filhos. Fernando e Giulia. Lembra? - Amor! Lembra! Não me olha assim! Olhe pra mim. Não se atreva a me deixar novamente! Olhe pra mim! PRA MIM! Erguera seu tronco da cama e, a custo, recostara-o na cabeceira. Desesperou-se, pois o via ainda com os olhos vidrados na porta do quarto. Seus olhos estavam vazios, desfocados, difusos. - EU NÃO VOU TE PERDER NOVAMENTE! NÃO VOU! ENZO! - chacoalhava-o como a uma boneca de pano. - Nossas bodas, amor! Daqui a poucos dias, vamos dançar juntos nas nossas bodas! Olhe pra mim! Pra mim! - Num gestou tresloucado de uma profunda desesperação, instintivamente, erguera sua mão acima de sua cabeça e a descera com força. Ouvira o estalar de seus dedos quando encontraram a face macia e suave do homem de sua vida. Imediatamente, ela o vira desnorteado como uma criança que acabara de ver uma assombração. Meu Deus! Isso doeu!

- Ah, meu querido. - murmurou, confusa, beijando-lhe freneticamente o rosto, os cabelos, as pálpebras. - Me perdoa. Não sei porque fiz isso?

- Não sabe!? - passou a mão de leve sobre a mancha avermelhada e ardida com o formato perfeito da mão da mulher de sua vida. Seus olhos infantis a fitaram por um longo tempo quando enfim retrucara. - Imagine se soubesse!? Riram-se. Ele, espantado. Ela, em frangalhos. - Quarenta anos!? Tem certeza!? - enfim ele voltara a si. Ela jogara-se sobre os travesseiros, sem forças, exaurida, coração aos pulos, arrítmico. Arquejou de dor e de alegria, fitando, agradecida, o teto do quarto. Ele havia voltado. - Deus! Como o tempo passa rápido. - declarara numa lentidão. - E vc ainda é aquela mocinha dos cabelos da cor do sol. - afirmara enternecido admirando-a com aqueles olhos risonhos, agora encarando-a, mãos trêmulas em seus cabelos louros mesclados de branco, em sua boca fina, sua pele de pêssego. Não quero te perder, meu bem. Não sei onde estive. Vc não faz ideia de como é assustador não se lembrar de nada. Estar lá é assustador. Não quero voltar. Não me deixe voltar. Nada. Absolutamente o Nada. Ela via cada expressão de medo em seu rosto enquanto ele a acariciava numa muda contemplação. Quase ouvia seus pensamentos. Posso até esquecer de quem eu sou, mas de vc. Ah...por Deus! Isso é muita maldade. Ele conhecia a verdade. Sabia que cedo ou tarde, ela voltaria. A doença maldita voltaria. Por que ainda não havia voltado? Por que aquela época dourada em que vivera ao lado dos seus, dono de suas lembranças, já que o Alzheimer não possuía cura ou regressão. Nem mesmo um espaço tão grande entre um estágio e outro!? Foram tantos os dias de alegria entre os seus. Dias em que tudo fizera. Até trabalhara ao lado do filho onde fora abraçado por todos os funcionários que o amavam pelo jeito humano com que sempre os tratara. Por que sentia algo a lhe queimar por dentro como um pequeno fósforo aceso prestes a incendiar sua vida por inteiro? - Há tanto o que fazer! - exaltara-se, levantando-se da cama num pulo, ágil como um gato. - O salão! Precisamos alugar o salão!

- Calma, amor. - Celeste sorrira e se recostara à cabeceira da cama. Estirando as pernas cansadas, esticara os dedos dos pés. Ele os massageara como sempre o fizera. Ela sorrira, tentando encobrir o pânico que crescia dentro de si. - Fernando já está com tudo praticamente pronto. - informara alegremente. Quase bateu palmas. Ela não queria que ele soubesse o que ela pressentira. Ele não queria que ela soubesse da sua verdade. - Ele sempre foi bom nisso. Ele e Giulia organizavam juntos as festas na família, lembra? Meu filho, tadinho. Se não fosse pelo sumiço de Giulia, ele estaria feliz.

Era ela quem escolhia as cores das bolas e onde seriam agrupadas. Era ela quem obrigava Fernando a subir e a descer a pequena escada desmontável, por diversas vezes, envolvido, quase que enforcado pela fina linha de costura que prendia as bexigas umas as outras . Eu não quero aí! Fica muito baixo e essas crianças são tudo mal-educadas. Vão puxar! Eu conheço! Vc ri porque não viu na última festa. Estava bêbado como um porco e agarrado com uma das suas amiguinhas vagabundas. NÃO RIA, FERNANDO! Presta atenção ao que eu falo. Ei...minha boca é aqui em cima! OLHA PRA MIM, FERNANDO! Então... prefiro do outro lado. Rápido, Fernando! A festa vai começar, garoto lerdo. Vc é muito mole! Sai daí! Eu mesma faço isso. Desce daí que eu vou subir. Me solta que eu vou subir, Fernando! Me dá as bolas. Anda! Ele abria espaço para que ela subisse os degraus da escada e com um sorriso abobalhado, apoiado nos degraus, apreciava as popas da bailarina exigente. Ela o fitava de cima, sobrancelha erguida e um meio sorriso no rosto extremamente expressivo. - E PARA de olhar pra minha calcinha, imbecil! Nunca viu!? Idiota...tira esse risinho da cara ou eu mesma faço isso. E não adiantava tentar dissuadi-la a deixar a decoração por conta do amigo francamente encantado por aquele jeito rude com que ela o tratava. - "Xinga. Xinga mesmo. Adoro mulher brava." - Era ela quem dava as ordens e ele somente as cumpria sob os olhares permissivos dos pais que pareciam gostar mais dela do que dele. Ele então sorria, completamente entregue aos atraentes dotes físicos da menina que, àquela época, começara a cobiçar. O desejo começava a arder como uma fogueira improvisada em uma noite fria, entre amigos e cerveja. Agora, tudo parecia tão cinza sem ela. As bolas não tinham cores. O salão era pequeno demais. As luzes da pista de dança...ah! A pista de dança que ela tanto almejara durante anos, com suas tábuas corridas e vapores imitando o 'fog' londrino tomando conta dos espaços vazios como nas charnecas do morro onde os ventos uivavam. As lâmpadas brancas e piscantes espalhadas pelo teto, derramando-se em cascatas ao lado do pequeno palco, ao centro do salão e um DJ especializado em flashbacks. Tudo por ela. Ele pagara caro pelo horário do DJ que não dispunha de horário em sua agenda sempre lotada, justo na noite das bodas dos pais. Dá um jeito, meu irmão! Dá seu jeito porque a minha garota merece! Ah! Vc precisa conhecer a minha garota. Um monumento! O rapaz estranhara quando o vira imobilizado, olhos que fitavam o horizonte. Não! Melhor não conhecer! Ela é bonita demais e vc tem cara de safado. Não mesmo. Fica dentro da cabine, põe esse fones no ouvido e usa óculos escuros. A cabine tem vidro escuro, não tem? Porra! Precisa ter! Não quero ela te olhando da pista de dança! Ela adora se mostrar quando tá dançando, a diaba!

Desde pequena, adorava músicas antigas. É a única herança que tenho de meu pai. A única coisa boa que vou levar dele. Ele a via chorar nesses momentos e então a envolvia em seus braços de amigo e ela já o desejava como homem. Se não aparecer até amanhã, eu invado a casa dos teus pais e te pego à força!

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 31/08/2019
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