''AS BODAS - VOLUME UM - Do livro GIULIA - QUANDO A LUZ SE APAGA

Eram sete horas e vinte e cinco minutos. Às sete horas e vinte minutos ele havia lançado o mesmo olhar impaciente ao seu relógio de pulso, em couro genuíno. Movia o pulso nervosamente a cada cinco minutos, agitando levemente a manga de seu paletó. Gostava daquele paletó. Estou um arraso, pensara, fitando-se diante do grande espelho do hall. Trajava um paletó de risca de giz, em lã fria, colete sobre a blusa branca de algodão e uma impecável gravata borboleta, repuxada de minuto a minuto. Escondera as mãos nos bolsos da calça preta, ligeiramente larga com sua barra 'full break' que caíam displicentemente sobre os sapatos, quase cobrindo-os por inteiro. Giulia amava aquele estilo despojado das barras de suas calças, embora o preferisse sem as mesmas. Seus instintos estavam à flor da pele, conquanto sentisse distante dela. Resmungara algo enquanto admirava seu reflexo, sentindo-se sinceramente belo. Sempre o soubera e disso, gabava-se, às escondidas, quando conversava com sua própria imagem, logo após o banho, desembaçando a superfície vítrea com uma mão enquanto a outra segurava a toalha em torno de sua cintura onde músculos eram cultuados pelo narcisista suburbano. Deus quando meu fez, caprichou. Um sorriso lento e cafajeste surgia-lhe do nada. Piscava para si mesmo e saía por aí, distribuindo risos fartos e aquele olhar que tinha o poder de desnortear as mulheres por onde quer que passasse. Aquele olhar sedutor, lançado por debaixo das longas pestanas escuras, cabeça baixa e os olhos que vinham subindo vagarosamente até atingirem seu alvo. Pornográfico, assim Giulia o classificara. Seu olhar, meu bem, é pornográfico. Não se atreva a lançá-lo a nenhuma outra além de mim ou eu sou capaz de cometer uma loucura. Ele agora ria, baixando a cabeça. Ai, até com esse simples ato, o rapaz atraía a atenção dos que o rodeavam. Um horror. Não poderia andar, falar, sorrir ou sequer deslizar as mãos por entre seus cabelos lisos, de um louro acinzentado e um topete que afrontava as estrelas, sem que fosse notado. Como sofria o rapaz. Pois lá estava ele, braços cruzados, recostado à grande pilastra, uma imitação patética das grandes pilastras romanas, olhos fixos na porta de entrada do salão. Um dos mais caros daquela região. Não poupara esforços ou dinheiro para a realização da grande festa em homenagem aos pais. Como ele os amava. Não poderia viver sem eles. Jamais pensara na possibilidade de que eles seriam mortais, portanto, teriam um fim.

Fernando era assim. Levava a vida apreciando-a, minuto a minuto, sem se preocupar com o amanhã. Vivia intensamente. Bem. Isso, antes de Giulia 'Devassa'. Costumava entregar-se às noitadas até bem pouco tempo. Mas, tudo havia mudado desde que conhecera o lado imoral de sua melhor amiga de infância que o enfeitiçara com seus beijos lascivos e suas performances eróticas na cama. E ela só tem vinte anos a diaba, refletira, relanceando os olhos perspicazes a um belo par de seios que passara bem diante de seu nariz. Praticamente a fulaninha esfregara-os em seu rosto. - Isabella, Isabella. - Sussurrava num tom de aviso, com ares de depravado. - Não mexe com quem tá quieto, menina. Se a Giulia te pega...- E um largo sorriso de luxúria iluminara seu rosto. Seus olhos faiscaram. Uma lâmpada acendia-se sobre sua cabeça loira reluzente. - "Não seria fantástico uma briguinha entre vcs duas, nuas, seios fartos....besuntadas de óleo....humm...melhor parar. Relaxa...relaxa, porra! Não fique animadinho aqui. Vc tá no meio da festa" - Reprimira fantasias de um ménage à trois que passaram velozes pela sua mente. Seu membro latejava enquanto apreciava as costas nuas de Isabella 'seios fartos'. Melhor dar uma volta, concluíra, levando as mãos de volta aos bolsos. E como se fosse empurrado por mãos que saíam da pilastra, passara a circular pelo amplo saguão repleto de bolas de todas as cores até mesmo prateadas e douradas. Ah, meu filho! Ao menos as prateadas! Ouvira o pedido lamurioso de sua mãe, tocando, de leve a bola da cor de seu carro, logo acima de sua cabeça. Um pedaço de mau caminho, Fernando! Em meio ao salão tomado pelos convidados, de braços erguidos, perdido em seus pensamentos, ombros largos, músculos que se escondiam por detrás do paletó de giz riscado. Ui! Isabella 'seios fartos' e outras fulaninhas deram a largada, deixando suas cadeiras vazias. Dos quatro cantos daquele recinto, surgiram moças belas (e outras nem tanto) e todas fogosas, afoitas à espera de uma palavra ou um sorriso dele. O pobre vira-se cercado por longos vestidos tão coloridos quanto as bolas presas em pontos estratégicos. Deu um puta trabalho decorar esse lugarzinho, pensara, alheio ao fato de que estava no covil de leoas famintas prestes a devorá-lo. Mas, valeu a pena. Valeu? Valeu. Não valeu? Sei lá! É vc quem tem que dizer. Pois estou dizendo agora, porra! Cadê meus pais que não aparecem!? E a Giulia!? Ele agora em agonia, quase claustrofóbico, precisava respirar. Havia tantas fragrâncias misturadas umas as outras. Precisava respirar. Ouvira o zumbido entre as meninas e suas perguntas fúteis e seus batons que variavam do roxo púrpura ao rosa pálido. As bocas que se moviam e ela não as escutava. Preciso respirar. Relanceava seu olhar rigoroso de um empresário bem sucedido aos detalhes que tanto tempo levara para planejar e colocar em prática. As luzes faiscavam, ofuscando sua visão. A grande cascata de chocolate escorria, caudalosa, logo ao lado da mesa farta de doces e tortas e folheados. Os garçons enfileirados atentos ao seu comando. Assim que eu estalar os dedos, comecem a servir os convidados. Mas, se por acaso eu me esquecer de estalar os dedos, façam o que quiserem. A festa precisa ser um estrondo! Vcs estão prestando bastante atenção??? É a festa dos meus pais! Olha lá! E mais um sorriso era compartilhado com sua equipe de trabalho. Trouxera do restaurante da família os funcionários que mais se destacavam por sua habilidade, rapidez e extrema educação em lidar com o público. Fernando era tão respeitado e querido por seus empregados quanto seu pai um dia o fora. Herdara de Enzo a amabilidade em lidar com as pessoas. Um primor de menino! Um coração de ouro! Uma cabeça de espantalho. Não podia ver um rabo-de-saia e lá vinham os pensamentos mais levianos. Os devassos...ahhh...os devassos eram todos para sua ninfa dos olhos castanhos esverdeados e o corpo escultural com sabor de chantilly. PUTA QUE PARIU! CADÊ VC, GIULIA!? E esse bando de mulher aqui? Ah, meu Pai! Humm...essa de azul eu não conheço. Belo par de seios. Um pouco menores do que os da...DIABA! Cadê vc? Lançara os olhos irrequietos ao seu redor. Vira o DJ em sua posição, entre os discos de vinil e os pratos que começavam a girar sob o comando de seus dedos ágeis. É isso aí, meu chapa! Faz bem teu serviço, filho da puta! Paguei o olho da cara pra ter vc aqui. Tudo por causa dela...- Um outro olhar à sua roda e nada. Somente os olhos de cobiça das mulheres que um dia ele usara para, logo em seguida, descartá-las como uma camisa velha, desbotada. Quero sair daqui. Cadê a mãe? Risos, gritinhos eufóricos, berros estridentes de deboche. Gargalhadas.

- Esperando por ela, Fernando? - Perguntara Isabella 'seios fartos' com a voz forçosamente aveludada. Parecia pleitear uma vaga entre as vozes sem rosto dos alto-falantes dos aeroportos anunciando voos, chegadas e partidas. Ele a fitara atenciosamente. Agora esquecia-se dos seios fartos e observava a expressão irônica nos olhos de Isabella. - Melhor ficar comigo, querido. Dizem que ela continua andando por aí, durante a noite. - Abanava a cabeça, cabeleira loira, cachos que tocavam seus ombros, graciosamente.

- E daí? - Afrontava a moça, erguendo as sobrancelhas e o queixo. Aqueles olhos azuis escureciam. - Aonde quer chegar? - Seu sorriso no canto da boca demonstrava sua insatisfação. As moças paravam de cacarejar, ansiosas por ouvirem falar mal da "Noiva do Demônio". - Fala logo! Tô com pressa. - Voltara os olhos ao relógio. Eram quase oito e ela não havia chegado. Por que eu deixei vc ir sozinha até a casa dos teus pais? Não foi minha culpa. Ela não quis e quando ela não quer, eu não posso com ela. - "Me deixa em paz, Fernando! Meus pais não me visitam e não querem me receber. Aí tem, meu filho! Tem sim! Conheço aqueles lá!". Despertara com um arrepio a percorrer seu corpo. Isabella 'seios fartos' e abusada, dera-lhe um beijo no pescoço, num supetão.

- Porra, Isabella! - Lamentara, um tanto excitado. - Se a Giulia me vir...- A moça recuara, ofendida, francamente decepcionada por ter sido repelida.

- No meu tempo, vc era mais rigoroso. - Desdenhara, tendo o apoio silencioso das outras sirigaitas. - Não permitia que eu olhasse para o lado, morto de ciúmes. E veja só como vc mudou. - Fernando inspirou profundamente, revirando os olhos dramaticamente. Talvez assim ela perceba que eu quero sair daqui. Burra demais. O que eu vi nela? Belos seios. Sim. Mas...olha estes dentes amarelados! Puta que pariu! Eu beijei essa boca antes ou depois do amarelo chegar? Levara a mão, inconscientemente, à boca e suas feições se contraíram levemente. Seu pescoço fizera um ligeiro recuo. - Dizem que ela ficou com o 'Santo' e com vc ao mesmo tempo. É verdade?

- E como vc a aceitou depois de tudo o que ela fez, lá, naquele quarto com outro homem? - Gritara uma outra, morena, baixa estatura, olhos de águia, totalmente ressentida. Ele sequer passara uma noite ao seu lado. - Dizem que foram dias e noites de gemidos!

- Dizem não! Eu ouvi! - Vociferava uma terceira, aproveitando o silêncio de perplexidade dele. Arquejos de espanto e horror. - Não eu, exatamente. - Titubeara. - Minha mãe pode provar. - E olhem só quem estava falando! Carlotinha, a filha de Carlota, a repórter presente ao dia do resgate de Giulia das mãos lascivas do demônio. A genética é realmente algo fascinante. A maledicência é, de fato, é transmitida através dos genes. Pensara Celeste assim que ouvira o protótipo de Carlota insinuando-se ao seu filho, cercado por víboras, tão indefeso e prestes a explodir! Humm...ela o conhecia. Aquele riso insano e ininterrupto, o abanar violento de cabeça, as mãos espalmadas a afastar o avanço lento e persistente das meninas afogueadas. Praticamente um ataque em bando a um filhote de antílope. Ele estava a um passo de explodir. Fernando, meu amor. Não se preocupe. Mais uns passos e mamãe te salva. Espere só! Larguem o meu filho, suas ridículas! Ai, estes saltos estão me matando e a festa mal começou. - Minha mãe ouviu da mãe dela que eles transavam todas as noites e os gritos que ela ouvia não eram de socorro não!

- Ela é puta e sempre foi!

- Vagabunda! - Ele trovejara, afastando a turba de si. Dera passos vacilantes até o meio do salão. Revia as cenas daquela noite que supunha enterradas em seu inconsciente. Ele a vira novamente pela janela. Os olhos vermelhos, diabólicos, atrás dela. Os gritos que mais pareciam gemidos. Os socos em seu rosto, em seu estômago. A dor no joelho, os pingos da chuva misturados ao sangue em seu rosto. Carlos que a segurava em seus braços e ele, impotente, dentro de uma ambulância. Era eu quem deveria ter salvo a minha noiva! MINHA NOIVA! MINHA! PORRA, ELA É MINHA NOIVA! E nada aconteceu. Lembre-se disso. Nada aconteceu. Apague de sua memória, homem. E os gemidos? De dor. Certamente de dor. Seja homem! Erga a cabeça. Estão rindo de vc. Vá lá! Mostre a elas com quem estão lidando. Vá...vá lá. Ele estava no meio do salão e antes que Celeste pudesse alcançá-lo, ele girou nos calcanhares e avançara no grupo de hienas disfarçadas de moças puras, crias daquele vilarejo. Já peguei quase todas vcs, filhas da puta! Tudo piranha! - E vc é a pior! - Cravara a mão no braço desnudo de Isabella 'seios fartos' agora desorientada. - Fala dela novamente e eu te ...- Diria "meto a mão na cara, mas, achou por bem mudar a frase, atenuando a violência. - Eu te expulso dessa festa! Tá ouvindo!? Ela o fitava com os olhos ejetados e os dentes amarelos agora pareciam ainda mais horrendos. - A minha Giulia é perfeita. - Ele falara baixinho, voz rouca. - Seios perfeitos, olhos claríssimos, boca carnuda...gostosa...e dentes branquíssimos. Que dentes brancos ela tem. - Ai! Aquilo doeu em Isabella 'seios fartos' e agora murchos. A pobrezinha sofria tanto com aqueles dentes. Implorara tanto aos pais que pagassem por um tratamento ou uma magia que os clareassem! E logo ele, o deus do Olimpo do subúrbio os havia descoberto e agora...agora seu mundo havia desmoronado.

Celeste, por segundos, não sabia se recuava e assistia o filho a esbofetear aquele lindo rostinho maquiado com extremos de mau gosto ou se gargalhava ante aquele pranto doloroso. Ai, como estou maligna ultimamente. O que há comigo? Dera de ombros. Mexa com meu filho, meu bem. Vá. Mexa.

- Corno manso! - Foram as últimas palavras de Isabella 'dentes amarelados'. - Me solta! Tá me machucando! Fala dela de novo, vagabunda. Deu pra metade dos homens dessa festa e a outra não foi convidada. Fala dela. FALA DELA DE NOVO! - Aaaaiii!

- Fernando Tomazzini - Ela os alcançara a tempo. - Retire as mãos desta coisinha com os dentes da cor do sol. - Ai, como estou terrível! - Ordenara-lhe do alto de seus saltos grossos e ruidosos. Lançava à 'Carlotinha metidinha', com seu vestidinho de cetim amarelo explosão solar, um olhar de uma doce repugnância. Anotar na agenda: Vingar-se de mãe e filha. - E me dê um tempinho para respirar...- Fernando acudira a mãe que ofegava perigosamente. Seu diafragma movia-se como a pera de um esfigmomanômetro em uso. - Não ligue para elas. São todas feinhas e invejosas. Não chegam aos pés de nossa Giulinha. - Segredara-lhe aos ouvidos enquanto afastavam-se do grupo que gritava impropérios e mentiras sobre o homem mais cobiçado do bairro. Não mesmo, pensara ele, com o coração apertado de saudades da menina louca que tomara conta de seu coração e tirara aquela louca impulsividade que o jogava nos braços de qualquer mulher que o olhasse por mais de cinco minutos. - "Sou seu". Celeste sorria-lhe complacentemente, afagando-lhe os cabelos, comovendo-se com o que ouvira, sem querer. Agora, ambos escutavam, juntos, a primeira música da noite. Ah...que maravilha! Música! Tratava-se de "What a wonderful world", do bom e velho Louis Armstrong. Uma das preferidas de Enzo que, certamente, já estaria ao lado do DJ, pedindo para que ele lhe emprestasse aqueles imensos fones de ouvido. - "Celeste, um dia ainda terei um desses. Para quê eu não sei, mas eu o terei".

Celeste exultava, apoiada ao braço forte e sempre prestativo de seu filho, a coisinha mais fofa que ela poderia ver com seus olhos ingênuos. - Que os jogos comecem! - Bradara, retumbante para, logo em seguida, tombar, com elegância, sobre o sofá de couro preto, ali, logo ao lado do chafariz com suas águas saltitantes e coloridas graças ao holofotes que incidiam sobre ela, de um verde-esmeralda potente, viril como seu homem. Ai, Celeste depravada. Pensar nessas coisas agora? Estou tão fora de controle. Sorria. Ocorrera-lhe que o verde poderia ter algo a ver com as bodas. Claro...as Bodas de Esmeralda. - Ou seria de Rubi? Ah! Pro inferno! Eu quero é me acabar nesta festa! - Pensara alto e Nando a ouvira, sentado ao seu lado, recostando a cabeça em seu ombro. Seus olhos se encontraram e compartilharam o amor que os unia e os uniria pela Eternidade. - Vc sabe que eu te amo muito, não sabe? - Confessara, emocionada.

- Sei, minha mãe. - Respondera sem pressa, olhos cerrados, aconchegado ao peito daquela a quem mais amava sobre a face da Terra. - E a senhora sabe que é de Esmeralda, não sabe? - Afirmara sem abrir os olhos. Relaxado sobre as almofadas. - Já falamos sobre isso. - Ele ouvira um ruído sonoro muito simpático. Era Celeste e seu riso interrompido. Ria, puxava o ar pelos pulmões e voltava a rir com maior intensidade. Ele a ouvira rir daquela forma durante toda sua vida e a amava por aquele riso e por tudo...tudo o que ela fizera por ele. E por tudo o que deixara de fazer. Ela que sempre sonhara em viajar pelo mundo todo e se entregar aos trabalhos humanitários, engajar-se em algum movimento que ajudasse a quem sofria nos países em conflito. Ela que sempre sonhara em conhecer novos países e culturas e aperfeiçoar os idiomas que dominava e, aos poucos, perdera a fluência por não ter com quem conversar. - A senhora se sacrificou por mim.- Dissera-o de olhos abertos, turvos, quase num suspiro. Por que sentia aquela dor? Ora! Isso é uma festa! Quem chora em uma festa!? Lágrimas são para enterros e não para festas! Celeste fingia massagear os pés, tronco curvado para frente, cabeça tombada para baixo e as lágrimas que formavam desenhos estranhos sobre o piso cerâmico acetinado. Levante-se, Celeste. Limpe este rosto! Não deixe que ele a veja chorar. Hoje é dia de festa. Quem chora em dias de festa? Lágrimas são para enterros...enterros...mortes...enterros...- Mãe! - Ela erguera-se de súbito e, por instantes, nada vira além da escuridão. - A senhora tá bem? Quer um copo d'água? Um suco?

- Não posso crer! - Ela levava o dorso da mão à testa e seu sorriso iluminara metade do salão. - É ela!

- Quem, mãe!? A Giulia!? - Ele a buscava em todos os cantos com os olhos desesperados.

- Não...a música. Isso é coisa de Enzo, aquele pequeno canalha! - Como te amo, Enzo. Vc se lembrou da música...da música que eu cantava para os nossos filhos antes de dormirem...nossa música, Fernando. - Ouça, meu bem! Ouça! - Houve uma pausa até que ela a identificasse, a custo, entre os risos, gritos de crianças e gargalhadas ébrias, a banda que marcara sua juventude. ABBA retumbava aos ouvidos do DJ, incitado por Enzo que sorria como uma criança diante de seu presente de Natal. Ele acenava para ela de onde estava. Ele os via e acenava para ela, agora com o fone que pegara...tomara dos ouvidos do DJ. - "Muito doido!", pensara o DJ a respeito de Enzo. Um DJ livre, leve e solto que escondia uma guimbinha com a brasa vermelha da ponta acesa para dentro da mão. Oferecera a Enzo, um tanto receoso. E por que não? Respondera-lhe Enzo, tragando o cigarro com aquela expressão de quem sonha acordado. - É a nossa música, filho. - Murmurara ao seu ouvido. Ele enrubescera quando compreendera o pedido implícito naqueles olhos súplices. Nando dera um longo suspiro. Era avesso à multidões e a ser o centro das atenções, a não ser quando se tratava de conquistar mulheres. Afora isso, ele era tímido. Olhem só! Fernando Tomazinni, o melhor partido daquela região, o garanhão, era um homem tímido. - Dança comigo, meu filho.

- Como negar seu pedido, mãe? - Erguera-se, aprumando-se, sacudindo as pernas e as barras "full break" e gostara de ver o reluzir dos sapatos caros comprados excepcionalmente para aquela ocasião. Jamais pensaria que teria de dançar com sua mãe em frente aos convidados, mas...por ela, faria de tudo. - A senhorita me daria o prazer desta contradança? - Fizera uma singela reverência à Celeste, estendendo a mão, levando-a vagarosamente ao centro do salão. Agora, estavam em frente ao palco que ligava-se à cabine do DJ de onde ela avistava, cheia de júbilo, o homem de sua vida. - Eu te amo. - Dissera-o sem palavras. Movia os lábios.

- Eu também. - Ele a respondera da mesmíssima forma. Ela ainda tentara entender porque de sua boca um tênue fumaça escapava, volitando até as bolas douradas. Deve estar abaixo de zero dentro daquela cabine. Pobre Enzo.

As luzes apagaram-se num repente. Arquejos de surpresa. Alguns mais animadinhos antecipavam as palmas. Outros, ainda, bradavam o nome do amigo de infância, incentivando-o a bailar como um príncipe. Era isso o que ele parecia. Um príncipe belíssimo a conduzir, sob o círculo de um suave holofote de luz branca, a Grande Rainha em seu vestido de um lilás claríssimo, em musseline, em frente única, com um delicado xale em organza, da mesma cor, a lhe cobrir as costas bem como parte dos ombros desnudos, embora, na opinião voluptuosa de Enzo, ela nada deveria esconder.

Que momento inesquecível! Celeste levaria consigo para o Outro Lado, aquele momento onde era conduzida pelas mãos amáveis de seu filho, belo por dentro e por fora, ao som da música que ela o embalava quando ainda criança.

- There was something was something in the air that night. The stars were bright, Fernando. They were shining there for you and me, for liberty, Fernando. - Celeste cantarolava, num enlevo, o refrão da canção. As memórias de uma vida dedicada aos filhos invadiam-lhe a mente e o coração como um tsunami amoroso. Não lhe doía. Era avassalador, mas não lhe provocava dor. Era um fogo que não ardia. Apenas uma imensa e devastadora saudade. Tudo terminaria. Algo lhe sussurrava que tudo teria um fim. Ela procurava ignorara aquele sussurro inconveniente, nos braços de seu filho, sua vida. - T.A.P. S. - Ele rira, entre lágrimas. Reconhecera a sigla. Uma brincadeira de criança. - " Sempre que estiver com raiva da mãe ou vergonha e não conseguir expressar seus sentimentos, diga somente isso. T.A.P.S. e eu o compreenderei. O que é? Vou te contar. T de 'Te'. A. de 'amo'. P de 'para' e S de 'sempre'." - Nando escondera o rosto na curva do pescoço de Celeste. Ela ouvia seus soluços. Sentia seu corpo trêmulo e o abraçava com tanta força! - Acalme-se. Tudo vai dar certo. - Celeste...por que promete o que não pode cumprir? Agora não. Suma da minha festa. Depois...depois que a alegria for embora, volte e me leve. - Te amo para sempre, filho.

- A senhora sabe que esta música foi composta para o Che Guevara, não sabe? - Ele queria recuperar o fôlego, secar as lágrimas, acalmar as batidas aceleradas de seu coração que batia tão aceleradamente quanto o de sua mãe. Sentia dores também, mas jamais confessara a quem quer que fosse. Sequer a ela ou mesmo à Giulia. Ah! Corações em sintonia até mesmo na dor e na doença. - Sabe também que ele matou muita gente inocente, né? Que não é o santo que todos propagam por aí. - Lá vem vc com sua mania de contestar, de discutir, de refutar, de divergir somente para encobrir suas emoções, meu filho. Deixe sua Luz brilhar, por favor. Não estarei aqui pra sempre. - Dizem que ele era cruel e não poupava nem mesmo as crianças quando julgava ser de seu interesse.

- Dizem também... - Contrapunha-se Celeste na tentativa de não ceder a forte emoção do momento e sofrer um ataque fulminante ali, bem no meio de sua festa. - Que Che Guevara era um bom homem. Humanitário, médico que cuidava de leprosos e de gente pobre sem direito a atendimento médico. - Ela o sentira mais calmo. Seus corações batiam em uníssono como se um serenasse o outro. - Filho, acredite sempre no melhor. - Ela apertara sua mão, trazendo-a até seus lábios. Beijara os nós de seus dedos. Vira seus olhos vermelhos e cheios d'água. - Não desista de acreditar na vida ou nas pessoas. Existem pessoas ruins, mas, as melhores, estão em maior número, só que estão espalhadas pelo mundo afora. Prometa que não vai se perder. Prometa. - Ainda ouviam a canção. - "Can you hear the drum, Fernando?" - Prometa que vai cuidar da Giulia e vai amá-la e protegê-la de todo o mal. Prometa. Ele assentira com a cabeça, incapaz de dizer palavra. A voz embargada na garganta. Os olhos que teimavam em permanecer úmidos. - Não. Eu quero ouvir. Prometa...- A voz saía-lhe num suspiro.

- Prometo. - Dissera-o finalmente.

- Posso roubar a dama, cavalheiro?? Será que eu posso dançar com a minha esposa no dia do nosso aniversário???

Ele surgira por entre as trevas e a luz se fez novamente. Aplausos, risos e Nando afastava-se lentamente da mãe, deixando-a nas mãos de seu pai. Apreciava sua vestimenta, de longe, recolhido em sua própria dor e alegria. Ria-se do pai, seu grande ídolo, em seu terno de seda branca, muito folgado, moderno, num estilo italiano. A camisa era de seda negra e a gravata branca. Era a versão atualizada de Marlon Brando em "O Poderoso Chefão". Um gângster misterioso com abotoaduras douradas e sapatos ridiculamente bonitos em branco e preto. De onde ele tirou essa roupa? Nando perguntava-se, divertindo-se ao vê-los agarradinhos e risonhos, ao som de Trini Lopez. Celeste mantinha um olhar saliente. Certamente, lembrava-se da noite anterior à festa. Mais uma noite de amor e, agora, Enzo mostrava-se mais atrevido. Giulia, Giulia. Uma criança me ensinando a lidar com meu marido. Ai, Giulia...onde vc está, minha filha? Chegue logo, por favor. Entre um rodopio e outro, Celeste lançava um olhar ligeiro ao filho, em frente ao portal do salão. Mãos nos bolsos, cabeça baixa e o pensamento nela.

- Giulia, não me deixa de novo. Não sou forte como o Carlos. Não sei se sou. Não brinca comigo. Meu coração dói. - Fitava o céu salpicado de estrelas, recostado à pilastra defronte ao grande espelho. Agora, seu reflexo já não possuía o esplendor de antes. Entregava-se à tristeza, imaginando-a nos braços de outro qualquer. Um trago. É disso que precisa. Não posso. Prometi a ela. Ora, homem. Um trago não faz mal a ninguém. É uma festa ou não é? Um dose de tequila e esteja pronto para ela. Ela vai chegar. Confie em mim. Não devo. Um trago. Vamos lá! Aproveite. É a festa de seus pais. Vai ficar aqui, parado, como um porteiro? É. Tem razão. É a festa de meus pais. As Bodas. Sim. As Bodas. Brindemos às bodas! - Isso! Um brinde às bodas! - E o primeiro gole de tequila deslizara suavemente pela língua, garganta até chegar ao estômago. - UM BRINDE ÀS BODAS! - Nando emborcava mais um shot caliente.

É assim que se faz, homem. Mais um gole. Só mais um...É. Só...só mais...mais um. - Soluçava.

Arriba! Abajo! Al centro y adentro!

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 21/09/2019
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