'AS GRADES' - Do livro "Giulia - Quando a Luz se apaga"

Enzo voltara de sua última recaída. Voltara diferente. A cada retorno, perdia algo de bom em algum recanto sombrio por onde havia passado. Retornara mais taciturno, olhar distante como quem está sempre a pensar no significado da vida.

- Vc me leva no Vicente, por favor. Eu não suporto mais essa cara desleixada! - Ele pedira à Celeste, choramingando.

- Eu já te expliquei, meu amor. O Vicente não está mais entre nós. - Sua voz era mansa, quase uma canção.

- O Vicente foi embora????

- Sim, meu bem...- Estava diante do espelho oval emoldurado por madeira maciça de sua penteadeira clássica. Amava aquele espelho e, por vezes, perguntava-se se havia alguém mais bela do que ela, na esperança de que a superfície espelhada a respondesse. Ria-se de suas travessuras. - Será que estou ficando louca? - Sorria como uma.

- Pra onde??? O homem tem família pra sustentar!

- Morto não sustenta família, meu anjo. - Erguia o braço e, na mão direita, a escova de certas macias percorriam quase que violentamente os fios lisos, finos e ralos de seus cabelos claros. - Mortos estão mortos...

- Vicente morreu??? - Ele, lá da beirada da cama, erguera a voz e os braços como a pedir satisfações aos Céus.

- Foi o que eu disse há poucos minutos.

- Como???

- Eletrocutado! - Celeste dera risinhos ao seu reflexo.

- Mas não tinha sido de enfarte???

- Isso! Enfartou depois de ter sido eletrocutado! - Penteava-se com uma calma sombria. - Devo ou não pôr o batom?

- Ahhh...entendo. Pobre Vicente. - Ele, num desânimo, deitara-se, estirado sobre o colchão. Permanecera assim, nessa posição por exatos quinze segundos. Celeste contava os segundos, numa angústia crescente, em seu delicado relógio de ouro com pulseira fina, em couro legítimo. Um mimo dele antes de partir. - E quem ficou com a barbearia? - Erguera-se da cama como se alguém, embaixo dele, o tivesse empurrado.

- Já não existe mais. Agora é uma discotecaaaa! - Ela movia seu corpo ao som de uma música animadíssima que mais ninguém, além dela, ouvia. - Sim! Hoje é dia de batom, bebê! - E seus lábios finos ganhavam a suave cor das asas de uma borboleta rosada.

- Não era um açougue???

- Pela manhã! - Abafara uma risada com as duas mãos à boca. - Pela manhã vendem carne de toda espécie, inclusive aquela picanha que faz vc lamber os beiços, meu anjo. Mas, à noite! Ahhh! À noite aquilo vira um in-fer-no! - Batia palmas, exaltada. - Tocam de tudo...- Murchara num átimo. - Tocam os hits dos tempos em que éramos jovens. Ahhh...eu adoro o ABBA! Minha banda favorita...- Enxugara uma lágrima discreta. - "E a sua também".

- Disco??? O que é "Disco"? E o Vicente dança??? - A gargalhada histérica de Celeste fora ouvida por todos daquela casa e, de certo, pelos vizinhos e os vizinhos dos vizinhos. - Pare de rir, mamãe...

- Não sou sua mãe. Não sou sua mãe. Não sua mãe. - Cantarolou.

- E a minha barba??? Quem vai cortar????

- Peça ao seu filho!

- MAMÃE! EU NÃO TENHO FILHO!

- Invente um! E eu... - Voltara o rosto para ele, numa lentidão assombrosa e seus olhos faiscavam de ódio quando ela se erguera da cadeira, num repente e gritara, francamente transtornada. - NÃO SOU SUA MÃE!

- Não grite, mamãe...eu tenho medo. - Ele se encolhera na cama, recostando-se à cabeceira, abraçando os joelhos, tremendo-se todo. Celeste ouvira seus soluços e, arquejando de dor e piedade, tomara de volta o controle de suas emoções.

- Me perdoa. Não vou mais gritar. - Ela sussurrava em seu ouvido, enquanto o envolvia em seus braços, sentada ao seu lado. - Chega pra lá. Vou te contar uma história. - Ela sorria, cheia de benevolência. Ele dera um pulo da cama, sentindo o tapete felpudo sob seus pés descalços.

- E o Vicente? Será que ele pode fazer minha barba? - E lá estava ele dando voltas e mais voltas em sua cadeira de rodas, no grande espaço entre a cama e a porta do quarto.

- Não sei. - Ela protestara, num murmúrio rouco e furioso. Estava extenuada. A boca trêmula. Aquele jeito com que ele segurava as rodas num vai e vem incessante como os movimentos de um autista logo à sua frente, impedindo sua passagem, como a aguardar por uma resposta, a tiravam do prumo. Um pensamento terrível visitava-lhe nesses momentos em que ele se perdia, por completo, do homem com quem ela havia se casado. Lembrava-se do acordo. Evitara falar sobre ele quando Enzo a implorava por respeitar seu pedido. Agora, a ideia não lhe parecia tão aterradora assim. Não diante do inferno em que vivia. Parecia-lhe uma saída bastante interessante. Queria seu homem de volta. O homem que a fazia rir quando percebia um traço, por menor que fosse, de melancolia trazida do passado doloroso que ela vivenciara e somente a ele confessara. Era desse homem que ela sentia falta. Queria esse homem de volta e estava ali, em pé, diante de um outro, uma criança grande e extremamente mimada e rabugenta que a magoava sem ter a menor noção de seus atos.

Não. Ela não poderia jamais supor que Enzo, lá dentro de si mesmo, trancafiado em uma jaula com grades de ferro, distantes umas das outras, Gritava por seu nome. Suplicava por ajuda sem notar o espaço entre as grades. Saia homem! Vc é capaz. Vc passa por entre as grades! Saia! Incentivava a voz doce, calorosa, mansa. Não posso. Tenho medo. Ele confessava às sombras que o cercavam. De quê!? - Era tão suave aquela voz. Tão terna que o aquecia. De me perder de vez durante o caminho até ela. E vai ficar aqui, correndo o risco de perdê-la da mesma forma? Enzo, de onde estava, a via chorar, largada sobre o colchão. Um choro contrito, entrecortado por soluços, corpo encolhido, rosto mergulhado no travesseiro, olhos fixos no porta-retrato onde ele sorria para ela, entre as flores do jardim da casa. Viveram dias felizes naquela casa e agora, ela o ouvia a repetir as ordens, os pedidos, as lamúrias, as palmas autoritárias. "MAMÃE! MAMÃE! MAMÃE!"

- CHEGAA! - Gritara contra o travesseiro numa surto mudo, pois, de forma alguma, incomodaria os filhos, agora, prestes a cuidarem de seu próprio filho, a caminho. Para ela, não seria justo dividir essa dor, esse desespero com Giulia e Nando. Justo em um momento em que eles pareciam tão próximos, felizes, unidos, animados com a chegada do bebê. Seu berro fora abafado pelo travesseiro. Seus dedos se agarravam a ele, seus olhos cheios d'água encharcavam o travesseiro. O pobre travesseiro impregnado pela dor da solidão, da ausência de seu homem, seu melhor amigo. - "Celeste, não chora, meu amor. Eu tô aqui." - Enzo, agarrado às grades da jaula que o prendiam dentre de si mesmo, desesperava-se, debatia-se, angustiado. Preste atenção, homem. Olhe o espaço entre seus braços. Passe pelo meio. Vc consegue passar. TENHO MEDO! Ele, aos berros, ouvia o eco de suas próprias palavras, sem entender o sentido do medo. Ela não está bem, Enzo. Aquele aviso era cheio de ternura e um toque de horror. Retorne. E se eu me perder no caminho!? A voz enfurecia-se. PERCA-SE! ARRISQUE-SE! VIVA O RESTO DE VIDA QUE AINDA POSSUI! Enzo abrira os olhos desmesuradamente, cercado pela Escuridão que falava com ele. Seus pés descalços sentiam o frio do chão tão frio quanto aquele lugar distante de tudo o que ele mais amava e tão próximo ao mesmo tempo. Basta que vc dê o primeiro passo, ele ouvia a voz sussurrante, quente, inebriante, bem próxima ao seu ouvido. Arrepiara-se dos pés à cabeça. Por que quer me ajudar a sair daqui? Quem é vc? Ora bolas, homem! Não me conhece? "Conhece-te a ti mesmo", lembra? SIM! LEMBRO! Enzo dera um grito de liberdade, recordando-se das aulas de Filosofia nos tempos de faculdade e de Sócrates, de Platão, do Oráculo. "Só sei que nada sei.", sua voz soara como um suspiro. Acorde. Já passou do tempo e o Tempo não para. Vá! Ela te espera. Com medo ou sem medo, vá! VÁ! Quem é vc? VÁ, ENZO! VÁ! E a voz que parecia cada vez mais distante, fraca, sem vida. Eu sou vc, homem. Ainda quero viver...volte! E então, exaurido e confuso, sempre a correr de um lado para o outro, sem nada enxergar além do Nada, chamara pelo nome dela. Celeste...te amo...me ajuda.

Perdera os sentidos.

***

Celeste acabara por adormecer de tanto chorar e se exasperar tendo a solidão como companheira. Voltara ao corpo exausto, a cabeça lhe doía, o coração batia em descompasso. Rolara na cama quando, sob um forte impacto, o vira deitado de lado, sobre o cotovelo, seu pijama de flanela, listrado em branco e azul, cara a cara com ela. Ela arquejara, surpresa diante dos olhos tristes, conquanto astutos e com um brilho formidável. Seu coração quase parou.

- Vc chorou. - Ele afirmara, com a voz rouca e baixa, os dedos que ajeitavam o cabelo dela em total desalinho. - Eu não posso prometer, mas vou tentar não sumir de agora em diante. - Ela sorria a contragosto. Queria chorar até explodir, ainda atônita, imaginando estar sonhando. Não queria acordar. Beijaram-se com ternura. Juntaram seus corpos sob os lençóis num abraço absurdamente apertado, com força, como se alguém estivesse tentando roubá-la dele. Nada, naquele mundo, conseguiria afastá-los um do outro naquele instante. Ela o sentia de volta. Seu homem, seu marido, o pai de seus filhos, o homem que a fazia rir e que a confortava nos momentos de dor estava ali, e ela ouvia os batimentos igualmente em descompasso de seu coração sempre generoso. Ficaram assim por horas na cama de cetim rosa-claro, sob o dossel de tecido idêntico, acima de suas cabeças, até que ele, ensimesmado, quebrara o silêncio com sua voz grave e suave.

- Será que Fernando poderia dar uma aparadinha na minha barba ou vou ter que procurar o Vicente?

Risos histéricos e abraços apertados.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 12/10/2019
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