'PERDIDO' - do livro Giulia - Quando a Luz se apaga

Chovia muito lá fora e somente Deus soubera como ele conseguira enxergar o caminho de volta a casa. Abrira, com o uso das chaves, os portões da garagem, debaixo de uma torrente furiosa de água fria e ventos cortantes, praguejando por não ter tido tempo de trocá-los por um modelo mais moderno que se abria com o uso de um controle remoto. Certamente, agora, não estaria ensopado se, de dentro do carro, apontasse aquele aparelho com poderes mágicos em direção ao portão e com um simples toque num botão, aguardasse, com um sorriso no rosto e suas roupas secas, as portas que se abririam lentas e rítmicas enquanto ele faria o motor ronronar, avisando a todos que já estaria de volta.

Debaixo d'água, culpava-se por não ter tido tempo ou vontade em consertar o portão ou sua vida. Lembrara-se de que houve oportunidade para a troca do portão, mas ele estava muito ocupado com as falsas reuniões de trabalho com funcionários 'fantasmas' e uma secretária tão devassa quanto gananciosa. A filha da puta só queria o meu dinheiro! Agora vai pastar atrás de outro otário!, pensara, tentando enxergar o buraco da fechadura sob uma goteira impertinente que gotejava justo entre o espaço entre a blusa e sua nuca. Poderia sim, ter trocado o portão por um modelo de última geração. Daqueles que captariam sua chegada à léguas de distância como vira nas casas dos bairros mais abastados que o dele. No entanto, faltava-lhe tempo para pensar em assuntos de somenos importância, como, por exemplo, dar à família maior conforto e comodidade. Melhor seria curtir a vida com os amigos nas "happy hours" com a loira grudada aos seus pés como um chiclete gasto e sem gosto.

- PORRA! EU MEREÇO! - Praguejara quando a calha, pesada, cansada, sempre à espera de conserto, rompera-se ao meio, despejando uma cachoeira magnífica e exuberante exatamente no centro de sua cabeça, devastando seu topete irrepreensível. Sacudira os cabelos como um cão após o banho. Era bonito de se ver. Aquele homem, todo trabalhado em músculos bem distribuídos, sob a camisa molhada, e sua testa, em evidência, graças à luz alaranjada do poste do lado oposto ao de sua calçada. Tinha um formato belíssimo, ali onde cabelos nasciam, repartidos ao meio com um ínfimo bico de viúva. - Caralho! Eu sou um merda! - Declarara desanimado, já dentro do carro que chegara invicto à garagem, guiado pelas mãos de um homem absolutamente alcoolizado, desnorteado, desalinhado, arrependido, desiludido e, agora, encharcado. - O que eu faço pra voltar atrás e consertar tudo?, perguntara-se enquanto tirava a chave da ignição e, violentamente, fechava a porta do carro.

- Ele chegou. - Giulia sussurrara lá dentro do quarto de hóspedes, coração aos pulos, sentindo-se uma perfeita idiota. Por mais que tentasse odiá-lo, seu coração se alegrava ao saber que ele estava de volta, são e salvo. Mais salvo do que são nos últimos dias. Parecia um louco quando chutava os latões de lixo na calçada, entre pragas e xingamentos, rindo-se da sujeira provocada ou enxotando os cachorros que, depois do acesso de raiva, recebiam seus carinhos e pedidos de desculpas e rações em potinhos de plásticos coloridos. Ela, da janela, estrategicamente posicionada para somente ver e jamais ser vista, abafava um riso estridente e vingativo ao vê-lo consertar os estragos, catando, com luvas amarelas gigantescas e toscas, o lixo tão bem coletado e ensacado por sua tia que, nessas ocasiões, punha-se a fitá-lo com um sorrisinho simpático no rosto, ali, bem pertinho dele, apoiando os cotovelos no muro de seu jardim repleto de begônias de um rosa pink profundo. - "Nunca é tarde para consertar seus erros, meu bem. Nunca.", ele a ouvia, resignado, dignando-se a suspirar e a catar e ensacar.

Tornara-se algo corriqueiro vê-lo chegar embriagado, mal-humorado, olhos tristes e distantes. Pelos pais, era abraçado e acarinhado, pois compreendiam sua incapacidade em crescer emocionalmente. Repreendiam-no com carinho, conquanto não lhes faltasse energia. Ouvira sempre com muito respeito e laivos de admiração, os sermões de seu pai que, vez por outra, esquecia-se de seu nome ou do que falava e, então, embaraçado e confuso, passava à palavra à Celeste que invariavelmente terminava seus ligeiros discursos, pousando a mão sobre a dele, à mesa de jantar, lançando-lhe um olhar enviesado cheio de amor e pitadas de uma cobrança velada. - " Nunca é tarde para consertar seus erros, meu bem. Nunca."

Seguindo os conselhos da mãe e, lutando por vencer seus desvios de conduta, decidira-se a reconstruir sua vida, cortando o mal pela raiz. Despedira a loira com requintes de crueldade, em meio a uma crise de ciúmes por parte dela que, num arroubo de petulância, exigira seus direitos de amante. Ele, então, preenchera um cheque polpudo e, diante dos funcionários que francamente desaprovavam aquele relacionamento, dissera-lhe em um tom solene, indicando com o queixo, o cheque que repousava sobre a mesa do escritório. - "Aí tem muito mais do que vc merece." - Arquejos de surpresa e um "Até que enfim" vindo direto de uma senhora tão simpática quanto sincera, encarregada dos Setor de Serviços Internos. - "Ah!" - A loira com o cheque, antes de cruzar a porta, voltara-se para ele com um olhar dardejante onde se liam promessas de vingança, ouvindo-o com atenção. - "E junto ao cheque, segue uma carta de recomendação a um amigo com muito mais grana e ainda mais otário do que eu." - Sentira-se um canalha tratando-a como uma mercadoria. Quem mandou mexer com a mãe do meu filho!?, pensara contrafeito. Pro inferno! Tu não presta e eu também não. Empatamos. - "Com ele, vai dar certo." - Acrescentara, desviando-se, com habilidade, do vigoroso grampeador lançado, por ela, em sua direção.

****

- Ele sempre foi assim. - Giulia dissera-o num suspiro, agora, vendo-o de volta ao lar, molhado, abatido, cabeça baixa a caminhar em direção à porta da sala. Perdia-o de vista. Diabos! Deixa eu te ver mais um pouquinho, implorava, mãos e rosto grudados às grades brancas e sem viço. - Sempre fazendo besteira e depois corria pros braços da tia que o mimava. - Resmungara, caminhando com lentidão, de volta à cama, abraçando-se ao filho que já a impedia de ver as próprias coxas. Horrorizava-se a cada dia com o fato de não saber como ele sairia dali. Não havia conversado com o pai dele sobre esses detalhes. Não havia conversado com o pai dele sobre detalhe algum. - Seu pai sempre se revoltou, quebrou, xingou, mas sempre se arrependia do que fazia, Sunshine. Seu pai era louco, sabe? Do tipo bom. Do tipo que não faz mal a ninguém. Fica tranquilo. Eu sei. - Alisava a barriga, olhos que pareciam querer decifrar as palavras do bebê. - Eu sei, Tristan. Mamãe Também sente saudades dele. Morro de saudades daquele imbecil. - Ela sorrira, com uma expressão travessa em seus olhos. Era a primeira vez que falava o nome de seu filho em voz alta. Decidira-se sozinha já que não contava com o apoio do homem que a fecundara. - Vai ser Tristan, sim! - Afirmara categoricamente, confrontando a porta em madeira, destrancada. - Se ele não gostar, que venha me contrariar! - Emburrava-se de braços cruzados, sentada em sua cadeira de balanço, em madeira maciça com almofadas repletas de flores rosas sobre um fundo branco. Com a ponta dos pés empurrava seu corpo para trás, erguendo as pernas quando voltava à posição inicial. Ocorrera-lhe que as flores rosas poderiam ser motivo de desavença entre o casal, já que o pai era desagradavelmente conservador e preconceituoso. - QUE PAI??? - Debochara de si própria soltando um daqueles risos sonoros e irônicos, inclinando-se para trás, amargamente desanimada. - Ele nem sabe que estou aqui...

- GIULIA! GIUUUULIA! - Giulia dera um salto da cadeira e fora parar bem próxima à porta, de gatinhas, mãos que a apoiavam para não cair sobre a barriga. Seus joelhos doíam enquanto ouvia os uivos daquele homem que, devido ao susto, quase a fizera parir ali, antes da hora. Agora, apoiava-se na beirada da cama, com extrema dificuldade em se reerguer. - GIULIA, AMOR! ABRA A PORTA! - Ele gritava logo abaixo da janela, sob a chuva que não amainava. - Preciso falar com vc, amor. Preciso ver nosso filho!

- Meu Deus! - Ela arquejara e estremecera quase ao mesmo tempo. Aquela voz suplicante, rouca, carente, sexy estava de volta após um bom tempo em silêncio. - Que coisa desagradável. - Sorria, exultante, com passos céleres em direção ao chuveiro e nunca tomara um banho com tanta rapidez e eficiência como naquela noite. - Ele tá vindo. Eu sinto. Tá vindo. Tá vindo. Tá VIIINDO! - Apressara-se em escolher sua melhor lingerie. - Merda! Não consigo vestir minha calcinha sem me sentar. Isso é humilhante! O sutiã vai explodiiir! - Ouvira os rangidos da madeira da escada que levava ao segundo andar. Passos firmes, resolutos, decididos, másculos. - Ai, meu Deus! Me socorra! Não, Tristan. Isso não é hora de se mexer! Para! Mamãe precisa se vestir. - Mergulhara na vastidão de seu guarda-roupas à procura de algo sensual. - Puta que pariu! Tudo curto demais. Apertado demais! Aaaaaiii! Achei!

- Vestira uma camisola vermelha, inocentemente decotada na altura dos seios e, contrariando suas predileções, bastante comprida, cobrindo-lhe os pés. Dera graças a Deus, pois seus pés estavam um caco. Inchados e suas unhas, maiores do que gostaria. EU SIMPLESMENTE NÃO CONSIGO ALCANÇAR MEUS PÉS! - Gritara, jogando-se dramaticamente sobre a cama. - Estou um monstro. - Declarara, entre lágrimas, braços abertos, esticados como uma cruz, olhos que fitavam o teto e as hélices do ventilador que giravam, giravam, giravam...

- GIULIA! - Enfiara-se debaixo das cobertas, quando ouvira as batidas na porta. - Dessa vez a porta cai. - Falara baixinho contra o travesseiro. Encolhia-se, tremendo-se toda. Não era de medo. Não. A cada murro que ela ouvia, seu coração acelerava, seus pelos se eriçavam. Entre infeliz! Entre e diga que não me quer mais. Que vai ficar com a piranha da secretária. Vamos! Entre! Não tenho medo. Sou descendente dos vikings, dos celtas, irlandeses, escoceses e italianos. NÃO TENHO MEDO! - Calma, Sunshine. - Sussurrava, braços envolta da barriga, acalmando o bebê que ora dava cambalhotas ora dava chutes logo abaixo dos seios como se quisesse sair dali, impulsionando seu corpinho até a saída mais próxima. - Tá doendo, filho. Agora não. Fica quietinho. Não fica com medo. Ele é bonzinho. Papai é bonzinho. Viu? Ele parou de bater...- Dissera-o num desconsolo. Poderia jurar que aquela seria a noite decisiva. Ou tudo ou nada. - Shhh...se acalma, bebê. Ele já foi embora...

- E é assim que vc pretende consertar as coisas!? - Vozes abafadas do outro lado da porta. - Quebrando a porta??? Assustando a mãe de seu filho??? Quer que ela tenha o meu neto aqui, nesta casa??? Hã??? Hein??? - Enzo o afastava dali a cada pergunta, tocando o indicador bem no meio de seu tórax.

- Eu tô tentando!!! - Fernando enfurnava os dedos entre os cabelos úmidos, olhos avermelhados, a angústia estampada no rosto por barbear. - Tô tentando corrigir meus erros!

- Não eleve o tom de voz para mim, moleque!

- Perdão, meu pai...

- Eu não sou seu pai! Ah! Se fosse eu já teria te dado uma sova de vara de marmelo. - Nando baixara a cabeça apoiando-a na mão direita. Seu pai havia sumido novamente. - Ei! Aprume-se! Vc está chateando, mamãe.

- Eu sei...- Lamentara.

- Jesus, Maria e José! - Giulia exclamara, agora, sentada sobre o colchão, boca entreaberta, olhos semicerrados, aguçando a audição. - Seu avô tá brigando com ele. - Informara ao filho, com um sorriso de triunfo no rosto. - E tá se esquecendo de tudo novamente. - O sorriso morrera num repente.

- Tire esta roupa imediatamente e vá tomar um banho, rapaz! Não se conquista uma mulher nestas condições!

- Mas, pai...- Nando erguera as duas mãos num mudo pedido de desculpas. - Senhor, eu preciso falar com ela. É urgente. Ela precisa saber...

- Do quê??? - Ela murmurara contra a porta. - Não me machuca, Nando. Não me expulsa daqui. Eu não vou suportar...- Deslizara até o chão recostada à parede. Ficara ali, com as pernas estiradas, mãos espalmadas sobre o piso frio e seu coração retumbava inexoravelmente no peito. Parecia uma prisioneira condenada, presa numa masmorra, minutos antes de sua execução, à espera de seu capataz.

- Fique calado e me siga. - Cochichara Enzo ao ouvido daquele rapaz bonito e tão bobinho. - Venha. - Seus olhos sorriam para o filho quando lhe estendera a mão amiga. - Tenho um plano...

- Plano??? - Ela suspirou ao ouvir aquela risada estrondosa e infantil do homem de sua vida. - Que plano, pai???

- Não ria! - Avisara-o com aquela expressão que ele bem conhecia. Seu pai estaria prestes a cometer uma de suas muitas travessuras. - CAZZO DEL INFERNO! - Praguejara, voltando-se para trás. - SIGA-ME.

- Sim...meu pai...

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 21/10/2019
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