'VÉU CINTILANTE' - do livro " Giulia - Quando a Luz se apaga"

Julgara que, mais tarde, se lembraria daquele dia como um dos dias mais felizes de sua vida.

Sentara-se na igreja escura, já arrumada para a cerimônia com fitas e laços brancos e o tapete vermelho até o altar. Cedera aos metros e metros de renda de seda e o véu cheio e cintilante, quando apenas desejava um vestido simples, sem muitos adornos. Enzo pegara sua mão e a levara à mão de Fernando. Ela fechara os olhos desejando que aquela ligeira sensação durasse para sempre e depois, erguera os olhos para o altar resplandecente, com suas fileiras e mais fileiras de santos e anjos de madeira entalhada. Ouvira o padre proferir as palavras tradicionais, percebendo que os olhos de Nando estavam vidrados de lágrimas e sentira que ele tremia, enquanto apertava, com mais intensidade, sua mão. Ela receava que sua voz lhe faltasse ou que o bebê nascesse ali, em frente ao altar. No entanto, ocorrera-lhe, em um momento de serenidade e distanciamento, que aquela cerimônia transmitia um poder imenso que os envolvia de forma invisível e protetora.

- "Aceito!" - Ele respondera de forma tão entusiástica que não deixara dúvidas quanto ao seu amor por ela e à sua imensa vontade em unir-se a ela. Giulia embevecia-se a cada palavra daquele juramento sagrado e quando tudo terminara e as últimas palavras ecoaram sob teto alto e abobadado sob os olhares delicados dos anjos com seus cabelos encaracolados, ele voltou-se para ela e a tomara nos braços como havia feito, centenas de vezes, na escuridão íntima de seu quarto, na casa lilás e, entretanto, como era intenso aquele beijo público e ritual. Giulia entregara-se completamente, com os olhos baixos e a igreja como que dissolvida no silêncio. Ouviram o cochichar dos convidados e os primeiros acordes da marcha nupcial soaram altos, agudos, triunfantes, enquanto um grande sussurro enchera aquele espaço encantado.

Ela se voltara, encarando a enorme multidão, o sol derramava-se pelos vitrais e, de braços dados, com ele começara a longa e rápida caminhada até a porta. Dos dois lados, ela via sorrisos, gestos de aprovação, a expressão da mesma emoção como se todos naquela igreja estivessem impregnados da mesma felicidade que a dela.

- Meus pais vieram! - Exclamara entre lágrimas. Sorriam e acenavam para ela e estavam juntos e felizes como ela nunca havia visto antes. Fernando apoiara sua mão protetora na cintura dela e então ela sentira Sunshine, adormecido lá dentro da crescente protuberância. Rira entre lágrimas quando Nando espalmara a mão sobre o calombo e, sorrindo, dissera. - "Quase consigo contar os dedos!" - Seu filho estava prestes a nascer e ela não poderia estar mais feliz do que naquele momento em que todos os seus sonhos haviam se realizado.

Próximos à limusine que os aguardava, seus tios irradiavam felicidade, satisfação e saúde. Não pudera conter as lágrimas, debaixo da chuva de arroz que a fizera sorrir àqueles que, antes, jamais haviam demonstrado afeição por ela. Vira, com alegria, Fernando abraçado pelos amigos que o jogavam para cima. Seu corpo subia e descia, impulsionado pelos braços unidos como se estivesse em uma cama elástica humana.

Como ele é querido, ela pensara, sem ciúmes ou inveja. Um pensamento repleto de cumplicidade e bom humor quando ele a pegara no colo e a fizera girar e girar, bradando aos quatro ventos que enfim ela o havia enlaçado e quando fora posta no chão por ele, um tanto tonta, emocionava-se a cada abraço que recebia dos amigos de seu melhor amigo. Enfim, já não estava sozinha. Os amigos dele seriam os dela também.

Seus olhos se encheram d'água e o coração quase parou ao sentir as mãos nervosas de seu pai sobre seus ombros. Não precisara de suas faculdades especiais para ter certeza de que era ele. As mãos rudes, o toque inseguro...

- Seja feliz, minha filha. - A voz do pai embargara-lhe na garganta e a única reação de Giulia fora a de abraçá-lo, receosa de ser repudiada por ele. Enganara-se. Seu pai a abraçara pela primeira vez em anos. Um abraço rápido e vigoroso dos que temem entregar seus sentimentos. Te amo, dissera, baixinho, com a testa enterrada em seu terno velho, cheirando à naftalina. Apiedara-se dele e estava decidida a deixar para trás todas as trevas que os separaram através dos tempos. A mãe pousara em suas mãos um Terço simples com contas em madeira envelhecida que ornavam com a cruz crua, sem o Cristo crucificado. Revelara-lhe, num abraço apertado, que o próprio Papa havia benzido o presente santificado. - "Para que nenhum mal te toque, nem ao meu neto.", tais palavras foram pronunciadas devagar e com cuidado e Giulia vira um lampejo de temor nos olhos acinzentados da mãe ao se despedirem, no entanto, estava tão radiante que quase não dera atenção às mãos trêmulas de Eulália que, aos poucos, distanciava-se da igreja, levando o pai consigo.

- Vem, amor! - Chamara Fernando, já dentro do automóvel, com a metade do corpo para fora e um largo sorriso no rosto, cabelos em desalinho. O nó desfeito da gravata que pendia do colarinho desleixadamente desabotoado da camisa branca. - A festa já tá rolando!

- Espera um pouquinho só. Já volto. - Pedira-lhe entre beijos e tapinhas. - Me larga. - Sorrira, saliente, quando dera as costas ao marido, desvencilhando-se daquelas mãos que puxavam a barra de seu vestido em godê, ao estilo princesa, com corpete cravejado de pérolas pequeninas e delicadas. Tão delicadas quanto as borboletinhas prateadas costuradas, uma a uma, na última camada dos véus que se sobrepunham, volumosos, exuberantes e estrategicamente criados para disfarçarem o volume extra de sua barriguinha. Dentro daquela roupa, Giulia quase não respirava. Diabos! Para que respirar se o encanto daqueles instantes tornava tudo e qualquer incômodo um motivo para sorrir e agradecer por tanta felicidade. Por Deus! Como ela estava linda e feliz!

- Giulinha! - Reconheceria aquela voz entre milhões de outras vozes. Seu tio, o pai que a criara, acenava-lhe lá, do outro lado da calçada, tão ágil e feliz quanto um polichinelo. Ela correra em sua direção, mãos que erguiam as saias, braços despidos, ombros que desafiavam a gravidade e os seios fartos que saltavam do decote. - Filha! - Enzo suspirou em seu abraço, vendo-se dramaticamente atado a ela pelo pescoço. Giulia não o largaria até matar as saudades de seu tio que estava curado. Um outro milagre ocorrera e ele, inexplicavelmente, estava curado do velho e egoísta Alzheimer que decidira voltar ao inferno sem ele. - Não chora, meu anjo. - Ele cochichara, com a voz entrecortada por soluços. em seu alinhado smoking preto, corte perfeito, caimento magnífico, e uma flor branca na lapela.- Seu rostinho vai desmoronar, meu bem. Aprume-se. - Giulia, a despeito de sua vontade em mostrar-se firme e forte, não conseguia parar de chorar. Um choro dolorido, compulsivo, descontrolado, repleto de medo. Apertava-o contra o peito, sentindo sua falta. - Ora bolas! Estou aqui, não estou??? Por que tanta aflição, filha? - Em seus olhos, ela vira a tempestade se avizinhar. Seus olhos azuis claríssimos mesclavam-se ao cinza plúmbeo das nuvens que se aglomeravam lá dentro. Dentro dos olhos do pai de seu grande amor. Celeste, com suavidade, afastara Giulia de Enzo, tomando-a pelos braços, puxando-a para trás, para, logo em seguida, posicionar-se ao lado dele, mãos dadas a ele e um sorriso secreto no rosto pálido, cabelos ao sabor da brisa fresca da tarde achando graça dos carros que passavam, desacelerados, encantados pela noiva emotiva.

- Vc agora precisa ser forte. Forte pelos três. - Aquelas palavras tão simples acertaram-na em cheio. Sem entender o motivo, seu coração se comprimia e o ar fugia-lhe das narinas. Arquejava, ofegava, ouvindo o som retumbante dos trovões atrás de si. Fixara os olhos desmesuradamente abertos neles que pareciam estátuas de cera, semblantes sem vida.

- Vc precisa ser forte, meu anjo. Agora já é uma mãe de família. - A voz suave assaz soturna de Celeste, os olhos passivos e vagos de Enzo. O avassalador silêncio que, agora, os cercava. - É melhor retocar a maquiagem, meu bem.

- Vcs estão estranhos. - Recuara dois passos, lançando um olhar angustiado ao noivo que, agora, sumia do alcance de seus olhos desnorteados, entre os amigos, os risos e estampidos das tampinhas das garrafas de Champanhe, no banco traseiro da limusine que rugia pela entrada de carros, fazendo matraquear as pedras e o seixos, deixando-a para trás.

- FERNANDO! VOLTA AQUI! - Erguia os braços num gesto desesperado, dando passos ligeiros na direção do carro que seguira adiante.

- Giulinha, olha o carro! - Exclamara, aflito, o tio.

- Canalha...- Curvara-se, protegendo a barriga, sentindo uma lufada quente do vento tocar suas faces. - O Sudoeste. - Murmurara, fitando as folhas que se erguiam do chão, como um ciclone em franca formação. - Tio! - Exclamara num tom dramático, voltando-se para ele. - O que tá acontecendo? Fernando me deixou aqui. E a festa? Com quem eu vou à festa? Por que ele fez isso?

- Vc vai com a gente! É claro! - A voz de Celeste era doce conquanto seus lábios não se abriam em um sorriso que costumava trazer calma à Giulia em momentos como aquele. - Veja, amor! - Dirigia-se ao esposo, fitando o céu, numa alegria infantil, abrindo os braços esticados, cerrando os olhos. - Está nevando!

- Está nevando! - Ele repetira num riso abobalhado. - E a neve é escura. - Observara, com o rosto manchado pela fuligem que agora caía em profusão dos céu enegrecido.

- Aquele carro! - Apontara o indicador ao automóvel colado ao do seu tio. - Vcs não veem??? - Giulia avançara sobre eles, gritava perto deles. - O que há com vcs??? - De súbito, tossia, contendo a ânsia de vômito, levando a mão à boca. - Deus! - Exclamara, engolindo a densa fumaça que se espalhava, célere, ardente, pesada. - Minha garganta...arde. - Piscava, olhos lacrimejantes, confusa. Tossia enquanto falava. - Tem fogo embaixo dele!

- Tem fogo embaixo dele. - Repetira o tio, numa voz metálica. - Vc está linda, minha filha!

- Pelo amor de Deus! Ele vai explodir! - Afirmara, aturdida. - Vamos embora! - Exaltava-se, enfurnando, num gesto de desatino, os dedos nos cabelos em cachos soltos, primorosamente ornados com uma tiara perolada presa ao véu cintilante, agora, salpicado por pontinhos pretos. - Sai daí, tia...- A voz rouca sumia de sua garganta que ardia. Inalava a fumaça tóxica que espalhava-se por toda a rua, cobrindo os outros carros e os convidados que pareciam não mais existirem. - VEM! - Agarrava-se ora às mãos de Celeste ora às mãos de Enzo, puxando-os para longe do fogo que então percorria perigosamente uma trilha deixada pela gasolina que gotejava da parte inferior do automóvel.

- Vc não pode se enervar, meu amor. Nosso pequeno Sunshine vai se ressentir. - Celeste recusava-se a se mover, libertando-se das mãos desassossegadas de Giulia. - Precisa retocar essa maquiagem.

- O QUE HÁ COM VCS???

- Ela está nervosa. Olha como se mexe! - Os tios entreolhavam-se desconfiados. - Não é bom para o nosso neto. - Enzo murmurara. Celeste assentira com a cabeça, com ares de desaprovação.

- VAI EXPLODIR! - Giulia, estendera o braço com a palma da mão para cima, uma expressão de pânico fulgurante em suas faces manchadas pela fuligem misturada às lágrimas. - VEM! TEMOS QUE SAIR DAQUI!

- Eu não deveria ter feito isso. - Dissera a tia.

- A culpa foi minha. - Giulia ouvira a doce voz do tio. As mãos que se entrelaçavam, os olhares cúmplices, sorrisos tristes.

- Que merda é essa??? - Sentira um frio na espinha.

- Dói, Giulia. Dói muito...- Eles deram meia-volta e caminhavam em direção ao carro em chamas. - Me perdoa. - Vira os olhos lacrimosos de sua tia, sentindo-se agarrada ao chão por mãos cadavéricas cravadas em seus tornozelos.

Estilhaços do vidro do carro atingiram-na com a mesma violência provocada por uma granada. Sentira a dor da carne de seu rosto rompida, rasgada. O vestido dilacerado na altura do ventre de onde filetes de sangue escorriam dos cacos cravados em sua barriga entumescida.

- Alguém me ajuda...- Deslizava o corpo alvejado, apoiado ao carro de seu tio, estirando-se no chão, olhos turvos que viam o sol se por em uma profusão de tons vermelhos. - Alguém me ajuda...alguém me ajuda.

- ALGUÉM ME AJUDAAAA! - Erguera o corpo como se algo a tivesse empurrado para frente. Olhos estatelados, fixos na porta do quarto mergulhado em trevas.

- Outra vez, amor!? - Ela assentira com a cabeça. - O mesmo pesadelo?

- Sim. - A voz de Giulia entrecortara-se e, pressionando os lábios, ela tentara falar novamente. A camisola ensopado de suor, os fios úmidos de seu cabelo e o rosto totalmente devastado pelas lágrimas.

- Shhhh...passou, passou. - Fernando afagava a trazia para junto de seu peito, com uma das mãos a retirar uma mecha de sobre as faces úmidas. Sentira-lhe as mãos geladas, os olhos quase foscos, fora de foco. - Volta, amor. Volta. - Sua voz era mansa, porém enérgica. Acostumara-se a lidar com as reações provocadas por aqueles pesadelos recorrentes. - Fala comigo. Por favor. - Pedira baixinho, procurando por ela em algum lugar daquele olhar perdido. - Ei! Fala comigo. Nosso filho precisa de vc.

- Sunshine. - Pronunciara num suspiro, os olhos lúcidos. Puxava o ar pela boca, alisando, tateando a barriga, certificando-se de que ele estava ali, vivo, em segurança. - Me leva pra ver meus tios? - Implorava, com os lábios trêmulos e aquela expressão sofrida. Fernando sorria, benevolente. Ele estava diante da mesma garotinha assustada, atormentada pelas aparições demoníacas que infestavam seu quarto, ainda aos sete anos. - Leva?

- Claro, amor. Foi só um sonho. Só um sonho. - Beijara-lhe a testa.

- Só um sonho. - Repetira a frase e o gesto dele, lançando, de soslaio, um olhar desafiador à imagem do Cristo, esculpida em madeira maciça sobre um pequeno altar, ao lado da cama. - Nada mais do que um sono.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 26/10/2019
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