LIBERTATEM - capítulo 02
O delegado mastigava um palito e me olhava com desdém, sem dizer palavra.
Tentei sorrir, amigavelmente, mas isso, efetivamente, não o sensibilizou.
- Cliente nosso de carteirinha, hein?
- Só detenção, sem caracterização de crime, doutor. Pode verificar.
- E as declarações feitas em todas as detenções?
- O senhor sabe que para sair da cana é preciso assinar o livrão, onde está bem claro: “Declaro que subverti a ordem política e social vigente no país.” Não assina, não sai e apanha.
Ele nada disse, nem olhou pra mim. Soltou-me, fez-me sentar em mesa com máquina datilográfica, onde colocou uma pilha de papéis.
- Se quiser se livrar do xadrez, bata, sem erro, todos esses cem memorandos.
Depois de quatro horas e meia datilografando, eu estava quase dormindo sobre o papel.
- Chega! Vá-se embora daqui, que já está amanhecendo.
- Tô livre? O senhor concluiu que não tenho a ver com subversão?
- Não concluí nada. Vá e tome cuidado pra não dar uma de trouxa de novo.
A sensação de liberdade, quando você se livra de uma enrascada grossa, é inebriante.
Fui pra casa, e no caminho verifiquei que me tiraram o boné, o casaco, o dinheirinho, os passes, a mochila, e só me deixaram os documentos e o desenho maldito. Cheguei estropiado e fui dormir. Acordei na manhã do dia seguinte, e, imediatamente, antes mesmo de comer algo, chequei na enciclopédia se havia alguma menção ao tal LIBERDADE LIBERTATA. Nada!
Voltei à biblioteca, e sem mostrar meu achado ou dar explicação, pedi à senhora que sempre me ajudava a encontrar livros, alguma referência ao termo. Ela arregalou os olhos e se afastou. Achei que tivesse ido procurar alguma informação, mas voltou acompanhada de um senhor de olhar severo, que foi logo me inquirindo:
- Por que o senhor perguntou por LIBERDADE LIBERTATA?
- Porque ouvi uma conversa no ônibus e fiquei curioso em saber do que se trata.
- É apenas termo grafado ou dito incorretamente, e nada há aqui a respeito.
Falou e nem esperou por qualquer argumentação, retirando-se, rapidamente.
A senhora fingiu que arrumava a mesa, e passou a me ignorar.
A gente sabe quando é hora de pedir penico e sair de fininho, então me toquei e saltei fora. Pensei em ir à universidade, tentar a sorte, porque lá o pessoal era mais tranqüilo, mas ao pisar na calçada, dois mastodontes me ergueram com a maior facilidade, e me empurraram pra dentro de um carro preto. Sabe pra onde me levaram? Exatamente para o mesmo distrito.
- O senhor aqui de novo? Não se passaram nem vinte e quatro horas.
- Não tenho culpa, doutor. Saía da biblioteca e me garfaram, sem mais nem menos.
- Foi lá perguntar sobre essa porcaria, né? (mostrou-me o desenho)
- Isso aí é algo proibido? Nem sei do que se trata!
Ele rasgou o papel e jogou no cesto. Olhou-me em silêncio e riu.
- Se eu percebesse que você sabe alguma coisa, estaria frito, assado e cozido, mas sei que é somente um tonto curioso, então esqueça e vá viver sua vidinha.
- Então posso ir?
- Negativo! Vai bater mais duzentos memorandos, pra aprender a não ser besta.
- Passei o dia datilografando. Quando fui embora, joguei-me na cama, de roupa e tudo. Acordei cedo, tomei banho e, antes de comer, resolvi ligar para uns e outros, para por em dia os compromissos profissionais. O telefone não funcionava, o computador, também. Muita coincidência! Sempre que precisava, usava o fone da vizinha, dona Adélia, professora aposentada, que me tratava bem e gostava de conversar sobre tudo. Bati em sua porta com força, pois sabia que tinha alguma surdez, mas quem atendeu foi um alemão enorme.
- A dona Adélia está?
- Ela se mudou.
- Mas ainda ontem ela estava aí, e não me disse nada sobre mudança.
- Doença em família.
- Ela era sozinha. Não tinha parentes vivos. Quem é o senhor?
O homem fechou a porta na minha cara, sem mais. Estranhíssimo!