'MORNIË ALANTIË' - do livro Giulia - Quando a Luz se apaga

- O vestido está pronto.

- Sim.

- Eles se casam daqui a duas semanas.

- Sim.

- Estão felizes como nunca! - Ela elevara os olhos lacrimosos ao teto. - E vão continuar assim!

- Ah, vão! - Ele assentira com veemência. - Vão sim, amor.

- Acha que faremos falta? - Um silêncio sombrio pairava sobre a mesa do café da manhã, mas fora logo rompido pela algazarra de Fernando e Giulia que chegaram absortos em uma discussão sem sentido. - Bom dia, crianças! Dormiram bem? - Celeste erguera-se num pulo e, de imediato, servira-lhes uma xícara de café fumegante. - Adoro ver vcs assim tão...entusiasmados! - Batera palmas num estranho frenesi.

- Ela não quer se casar na igreja, mãe! - Reclamara como uma criança.

- NÃO VOU!

- NÃO GRITA! Vc tá com uma mania de gritar, porra!

- Ontem vc não reclamou dos meus gritos!

- Crianças...- Celeste reprendera, ruborizada.

- Perdão, tia. - Giulia, enrubescera, envergonhada. - Mas ele é o culpado! - Sentaram-se um em frente ao outro, separados pela grande e antiga mesa de madeira maciça, coberta por uma belíssima toalha Guipir em organza. Celeste e Enzo ocupavam, como de costume, as cabeceiras. Olhavam-se fixamente enquanto os filhos brincavam de brigar. - TIO! - Enzo recuara, olhos assustados. - O senhor...- Queria mesmo era interromper aquela troca bizarra de olhares, mas, agora, não lhe ocorriam perguntas inteligentes. Lançara uma idiota mesmo. - O senhor pode ser meu pai? Digo...de verdade mesmo? Assim...tipo...pra valer???

- Por Deus! - Virava-lhe as mãos num gesto de indagação. - E eu já não sou??? - Ela levantara-se e, lentamente, dera um giro pela mesa, beijando primeiro o tio, logo em seguida a tia - Amo vcs. - Sua voz era tão doce e meiga. E, quando chegara a vez de Fernando, ela cerrara o punho e dera-lhe um cascudo bem no meio de sua cabeça. Emitira uma risada escrachada capaz de sacudir o telhado. Retornava ao seu lugar, deslizando os dedos pelas quinas da mesa, lançando-lhe um olhar lascivo. Ele o captara.

- Cambaxirra!

- Mocinha! - Ele erguera um canto da boca, lembrando-se da noite passada quando implorara por um "Pit Stop" a fim de recuperar o fôlego após uma tórrida batalha de devassidão. Ela piscara para ele, num gesto de cumplicidade. Alisava a barriga, ainda intrigada com aqueles olhares fortuitos de seus novos velhos pais.

- Vc tem tomado seus remédios, Giulinha?

- Tem não! - Fernando respondera ao pai em seu lugar, ainda passando a mão pela cabeça dolorida. - Ela não toma os remédios e vomita o que come!

- Não seja tolo! ISSO É MENTIRA! - Acusava-o inclinando-se sobre a mesa, irritando-se por não conseguir alcançá-lo como antes. A protuberância crescente abaixo de seus seios a impedia de movimentos abruptos, alongados. Ele a chutava por debaixo da mesa enquanto a fitava com um sorrisinho cínico.

- Tia, ele tá me chutando! - Ela choramingava.

- Tia, ele tá me chutando! - Nando a imitava com uma voz distorcidamente aguda. Ela, num relance, tomara um limão da fruteira e, apurando a visão, posicionando a fruta entre os olhos, arremessava a bolinha verde em sua direção. - YESSS! - Erguia os braços como uma líder de torcida dos times de futebol norte-americano. - Não brinca comigo. - Falara baixo, num tom de aviso.

- Doeu. - Ele resmungava, tentando abrir o olho atingido. Ela, mais uma vez, erguia-se da cadeira, um outro giro pela mesa até ficar de pé ao lado dele. - O que é? - Retrucara, enfurecido. Sempre saíra perdendo quando a briga era com ela. Desde criança. - O QUE É??? - Dera um olhar enviesado. Um dos olhos, roxo.

- Ahhh! - Gemera, condoída, sentando-se no colo dele. - Perdão, amor. - Beijara-lhe o olho atingido e outro também. E a boca, o rosto, o pescoço. Celeste tossiu e pigarreou.

- Vcs estão demais hoje. Come o pão, meu filho!

- Deixa que eu passo a manteiga, tia. - Dissera com o queixo erguido e firmeza na voz~tomando o alimento das mãos geladas de sua tia. Semicerrara os olhos e, por milissegundos, tentara vasculhar aquele cérebro. Nada. - Afinal, isso é obrigação da esposa.

- Isso mesmo...- Fernando concordara, sempre alheio.

- A senhora pode descansar. - Afirmara, enquanto deslizava a faca no pão sem miolo. - Agora que o tio tá melhor, vcs poderiam até viajar! - Exultara congratulando-se a si mesma pela grande ideia. - O acha, amor?

- Acho que o pão é meu!

- Vá pro inferno! - Erguera-se uma terceira vez, largando a metade do pão no prato de Fernando, pois a outra, ela já o estava digerindo. Ele comera-lhe os restos, satisfeito sem ao menos notar o silêncio que pairava entre os pais ou a súbita inquietação da mãe de seu filho. - Tio? - Pousara a mão na mão dele. Relances de uma estrada, poeira, cabelos esvoaçantes. Num repente, como se houvesse levado um choque, retirou a mão, deixando-a pairar no ar. Arquejara, sem fôlego. Foi bonito. É. Foi bonito! Não tenho com o que me preocupar, pensara, sorvendo o líquido ainda quente, dentro da xícara de porcelana.

- É por causa do pesadelo, não é? - Celeste, com a ponta dos dedos massageava os lóbulos, gesto peculiar de quando algo a incomodava. Procurava esconder as batidas aceleradas de seu coração cada vez mais fraco. - Vai dar tudo certo, meu bem. - Seus cílios batiam aceleradamente. Cacete, tia. A senhora falou isso no sonho. - Vc precisa tomar os remédios, Giulia. Em breve, vc será responsável por dois homens. - Dava tapinhas nas costas do filho que sorria displicentemente. - E acredite, meu bem, isso dá trabalho!

- Eu sei! Eu vi como a senhora cuidou bem desses dois aqui! - Falara de boca cheia, abocanhando o segundo pãozinho, branquinho, quentinho, exatamente do jeito que ele sempre gostou. É claro que, dali a alguns segundos, correria ao banheiro e tentaria pôr tudo para fora, apoiando-se na tampa da privada, mas, quando pensava no filho, desistia de tudo e então, sentia-se cada vez mais gorda, feia, desinteressante. Queria que o filho nascesse logo, não só para ver-lhe o rosto e cuidar dele, amá-lo, mimá-lo. Desejava, ardentemente, ser livre para fazer do corpo o que bem entendesse. Vomitar o que comia estava no topo da lista de suas prioridades. - Só o seu filho é que tem um pequeno probleminha de cabeça, mas...- Dera de ombros. - Ninguém é perfeito.

- Mas vc se amarra nesse maluco. - Protestara, lançando-lhe um olhar por sobre a xícara de café.

- Tenho outra opção? - Replicara num muxoxo.

- Já teve! - O olhar dele pousara em Giulia, demorando-se por um momento enquanto seus olhos se estreitavam. Com um leve franzir de testa, ele desviara a atenção ao pai. - O senhor tá bem? - Murmurou, tocando em seu braço.

- Termina o que começou! - Provocara Giulia que não precisara usar de seus poderes para ler na testa dele o nome de "Carlos" em letras garrafais. - Existe alguma dúvida que este filho é seu, Fernando?

- Pelos Céus! Giulia, vc está muito nervosa. - Observara Celeste, perplexa.

- Não é a primeira vez que ele insinua isso, tia. Eu conheço seu filho. Tá querendo dizer alguma coisa, mas tá sem coragem. - Dissera tudo sem desviar os olhos dele. - Fala! Acha que o meu filho é dele.

- É nosso filho! - Inclinara-se para ela, com laivos de ciúmes e desconfiança nos olhos tranquilos. - Come e cala a boca.

- Acho que vou dar um passeio. - Enzo pronunciara solenemente.

- Eu vou com o senhor! - Falara já se levantando da cadeira, derrubando a xícara e o resto de café sobre a toalha rendada. - Me espera um minuto pra trocar a roupa.

- Não! Quero ir sozinho. - Seus olhos calmos, distantes, líricos. Houve uma ligeira comoção entre os presentes. - O que é? Não sou capaz de dar uma curta caminhada pela quadra onde moro?

- Eu posso ir com o senhor, tio. - Agora ela brigava com o chinela que se recusava a acolher seus pés inchados. - Vou só escovar os dentes e...

- SENTE-SE, MOCINHA! QUANDO QUISER AJUDA, EU MESMO PEÇO. - Giulia quedara-se na cadeira, levando as mãos ao rosto, sem poder contar os soluços. Nando circundara a mesa, sentara-se ao seu lado, acariciando-lhe os cabelos. O corpo dela tremia e o pranto rolava. - E PARE DE ME TRATAR COMO CRIANÇA! - Lançava à Giulia um olhar frio e incisivo.

- Para, pai. Já chega. - Falara baixinho.

- Quem é vc, mocinho? Quem pensa que é para falar comigo neste tom?

- Deus...de novo não. - Fernando apertava o corpo de Giulia contra si, fazendo dela a sua dor.

- Vincenzo! Peça desculpas agora aos dois.

- Mas...mamãe! - Celeste prometera a si mesma nunca mais voltar a ouvir seu homem chamando-a de 'mamãe'. - Eles...

- AGORA! JÁ, JÁ! - Erguera-se da mesa, batendo sobre ela com as mãos espalmadas. - PEÇA!

- Desculpa! - Dera as costas a todos e saíra resmungando como uma criança, cruzando o corredor, chegando à sala e, aproveitando a distração causada pela mocinha grávida que chorava por algum motivo. - Por mim, dava-lhe uma boa sova de vara de marmelo. - Escapara por entre a brecha do portão da garagem. Fernando esquecera-o aberto quando, na noite anterior, voltara da casa dos pais de Giulia. Estava um caco. - Eu vou mostrar a eles que eu sei me virar sozinho. - Falara consigo mesmo e um sorrisinho matreiro surgira em seu rosto corado. Dera dois passos e já estava descendo a ladeira da rua onde morava há anos. - Mamãe vai ter orgulho de mim. - Dobrava a esquina, lá embaixo, sob os olhares atentos e curiosos da vizinha que estranhara o fato dele estar trajando apenas uma cueca samba-canção em um ultrajante tom de rosa. Ela o observara com um ar de paciente divertimento e encolhera os ombros, enquanto pensava, encafifada. - "Cada louco com sua mania".

Voltara a varrer a calçada repleta de folhas secas e crocantes.

Lá. de dentro da Casa Lilás, um grito lancinante de horror ecoara, chegando aos ouvidos da vizinha que não gostava de se meter na vida alheia.

- PAAAI!!!

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 27/10/2019
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