'O OBSCURO' - Do livro Giulia - Quando a Luz se apaga

Celeste, enfim, permitia-se cair em um sono profundo sob o efeito de fortes calmantes receitados por seu médico que, em uma curta e particular conversa com Nando, alertara-o sobre a urgência de iniciar seu próprio tratamento com medicamentos que impedissem o avanço de sua doença. - "Vc não faz ideia do que é esperar por um transplante de coração, Fernando!", alertava o médico que o vira nascer. Fernando, impaciente, no entanto, educado, dizia ter coisas mais importantes com que se preocupar, mas, prometera, com extrema delicadeza que, quando reencontrasse o pai, regressaria ao hospital e se entregaria às mãos experientes do velho e sábio doutor que os deixara a sós. - "Por favor, não deixe que o tempo passe, meu filho. Vc é tão jovem...", dissera num desalento, ao rapaz que se despedira dele, mãos inquietas sobre o volante, de volta às ruas, em mais uma busca frenética por seu pai, voltando aos mesmos lugares por onde ele fora visto no dia do desaparecimento. Repetindo sempre as mesmas perguntas e recebendo respostas evasivas. Levava a foto de Enzo e a todos que encontrava pelo caminho, mostrava-a sem perder a esperança de que alguém, algum ser vivo deveria ter notado um homem a caminhar por aí trajando somente uma cueca samba-canção. Por Deus! Isso é ridículo! Uma conspiração! Tais palavras ecoavam em sua cabeça. Não havia uma só alma que lhe dissesse algo de animador.

- Isso não tá acontecendo...

Então, desiludido, consumido pela exaustão, deixava-se consolar por Giulia e, agora, já não mais se preocupava em ser forte. Desabara em seu colo, vertendo lágrimas quentes que inundavam-lhe o rosto desfigurado. Seu corpo tremia a cada soluço, a cada palavra que tentara dizer sem conseguir. Abraçava sua mulher, deitado em suas coxas, acariciando o filho no ventre, sentindo-se perdido ao ouvi-la cantar a mesma canção que ouvia de sua mãe antes de dormir. "Rock and Roll Lullaby", de B.J Thomas, fluía da boca de Giulia de uma forma doce, um tanto desafinada, com curtas paradas entre os estribilhos e estrofes. Ela cantarolava e chorava ao mesmo tempo. Ele não sabia se ria ou se a acompanhava em seu pranto. Ao final, deitaram-se por algum tempo, e olharam um para o outro, e depois caíram a rir para, logo seguida, abraçarem-se, consolando-se mutuamente, com palavras de esperança e quando Giulia pressentia que ele já não mais acreditava em ver seu pai vivo, ela o beijava no rosto, nos olhos, na testa e, aos ouvidos dele, sussurrava. - Vai dar tudo certo. Confia em mim.

- Por que eu me arrepio quando vc diz isso?

- Por que vc é cagão. Sempre foi. - Ele dava risadas descontraídas. Ela não mentia. Ele sempre tivera medo do desconhecido e, a julgar por aqueles olhos com lampejos de insanidade que o fitavam intensamente, coisa boa ela não faria. - Bobagem pensar nisso, amor. Eu sempre faço coisas boas.

- Lendo de novo...

- Os seus pensamentos. - Afirmara, sorrindo. - Adoro fazer isso. Eu sei que não é correto, mas, em casos de urgência, sinto que é extremamente crucial.

- Crucial. - Ele repetira com os olhos cheios de desejo, a despeito da dor que tomara conta de sua alma. - Vc acha crucial? - Sua voz saíra abafada pelos lábios afundados no travesseiro. Ele a desejava naquele instante, mas o pobre estava um caco deitado de bruços.

- Crucial. - Ela afirmara, deslizando as mãos firmes e delicadas em suas costas nuas, ajeitando-se ao corpo dele, sentada bem abaixo de seu traseiro perfeito, ainda com gotículas do banho que acabara de tomar. Ela destravava os nós dos músculos de suas costas, aproveitando-se de sua fragilidade para esfregar-se voluptuosamente em suas coxas. Ouvia-lhe os gemidos de prazer que aqueles movimentos causavam ao seu homem que havia tempo não a tocava. Ela estava absolutamente eletrizada. - "Puta que pariu! Se eu não tivesse que fazer algo tão importante, meu bem, vc estaria perdido agora."

- Continua...- Ele ronronara sedutoramente. Ela quase desistira de tudo e, por sua mente enlouquecida, passara uma ideia pervertida. Abanara a cabeça, julgando ser o mais correto cumprir com sua promessa à tia.

- Shh...agora dorme, meu amor. - Pousava a mão em sua nuca, inclinando-se sobre ele, seus seios roçavam as costas dele, juntamente com a barriga imensa que impedia-lhe de ser mais atrevida. - Eu vou contar até três, Fernando. Ouça-me atentamente. - Ele apenas balançara a cabeça, braços apoiados no travesseiro. - Quando eu terminar, vc entrará num sono profuuuunndo.

- Hu-hum...

- Três, dois, um. Agora durma. - "Funcionou!". - Exultara ao ver que o que Carlos um dia lhe ensinara sobre mãos no pescoço e induções verbais hipnóticas, de fato, surtiam efeito ou talvez ele estivesse tão exausto que mal a ouvira terminar de falar. Ora bolas! Ela dera dera de ombros. Que diferença aquilo faria naquele momento?

Fernando dormia como um anjo quando ela saíra do quarto, caminhando cuidadosa pelo piso encerado, com os pés afundando no tapete. - Te amo...pra sempre. - Falara baixinho, antes de lançar um último e terno olhar a ele. Seus dedos deslizaram sobre o interruptor, deixando aquele homem por quem sentia um desejo incontrolável, mergulhado na penumbra. Fechara a porta, cautelosamente.

Seguia, a passos curtos e arrastados, pois estava cada vez mais pesada e francamente estafada, em direção à cozinha. Sedenta, abrira a geladeira e sorrira ao sentir o frio reconfortante que tocava em seu rosto enrubescido. Pegara a garrafa pelo gargalo e, num só gole, esvaziara seu conteúdo.

- Que delícia! - Dissera a si mesma quando ouvira a porta do refrigerador bater com força. - Por onde começar? - Apoiava seus cotovelos na pia de mármore, com a garrafa entre os dedos.

- Deixe que eu te ajude.

- DIABOS! - Giulia engolira em seco ao ouvir aquele sussurro, grave, vibrante, num tom desconsolado. Tremia em total descontrole quando a garrafa escorregara de seus dedos molhados e batera no chão com um ruído surdo. Virara-se de lado e dera um suspiro profundo e descompassado. Lembrava-se de algo que deveria se esquecer. - O que é isso? - Enfim, conseguira destravar a garganta e emitir algum som sem tirar os olhos dele. Braços muito musculosos e mãos fortíssimas. Um rosto perfeito nas proporções e o cabelo ligeiramente despenteado como se por um vento súbito. Num repente, o rosto lindo ficara trágico e os olhos negros se abrandaram com uma tristeza infinita. - Fala o que vc quer, seu verme! E não se atreva a tocar em mim ou em meu filho! - Falara entre dentes.

- Quero te ajudar. Só isso. - Dissera ele, com as palavras fluindo como música, cheias de mágoa e de uma força serena.

- São Miguel à minha frente. São Miguel atrás de mim. São Miguel à minha direita. São Miguel à minha esquerda...- Giulia cerrara os olhos, a espinha tomada por uma corrente elétrica que a fazia tremer por inteiro, entoava a oração que, para ela, possuía grande poder contra as Trevas. - São Miguel, São Miguel. Aonde quer que eu vá...- A figura, de repente, tremeluzira como se uma luz indefinível houvesse caído sobre ela. Tornara-se então transparente e uma lufada de ar quente atingira, em cheio, Giulia, assustando-a e, em seguida, deixando-a só na escuridão sem nada por perto. - Pai Nosso que estais... Pai Nosso...Santificado seja...Santa Maria...- Esgueirava-se, apalpando as paredes, esquecendo-se da oração que sua tia lhe ensinara. Seguira em direção a fraca luz inundando a cozinha, refletida sob o piso branco, iluminando a mesa de jantar. Enchera-se de coragem ao tocar o batente da porta que dava para o longo corredor e caminhara o mais rápido que pudera, agarrando-se, abraçando-se ao filho em seu ventre, empurrando com a lateral do corpo a porta entreaberta do quarto de sua tia que a esperava, sentada sobre a cama, de olhos bem abertos. - Meu Deus!

- O que foi, meu anjo? - Um brilho indefinível nos olhos de Celeste a fizera tremer.

- Nada...- Arquejava de medo e espanto. O rosto de Celeste modificara-se por completo e, estranhamente, estava tão belo e forte quanto o do homem que acabara de ver na cozinha. - Tia, reza comigo? - Celeste inclinara a cabeça levemente para a esquerda e sorrira, indulgente.

- Mas é claro. Venha. Vamos rezar...- Esticara-lhe o braço, os dedos que se moviam numa bizarra lentidão. - Precisamos nos preparar. - Giulia fez que sim antes de sentar-se no tapete felpudo ao lado da cama. Cruzara as pernas, passando a mão pela barriga enorme, num movimento circular e, em pensamento, rogara proteção ao seu filho. - Está pronta?

- Hu-hum. - Despira-se diante dos olhos obscuros de Celeste que lhe cobrira com a camisa do pijama de listras azuis de Enzo. Giulia aspirava o cheiro do talco de bebê, bem característico de seu tio. Seus lábios tremeram.

- Não chore. - Celeste advertira-lhe carinhosamente. - Vc precisa ser forte, meu bem. Concentre-se. - Giulia cerrara os olhos e seu corpo, quase que de súbito, inclinava-se ora para frente ora para trás como os movimentos de um autista. No início, foram lentos os movimentos, mas, incitada pela voz melodiosa de Celeste que havia jurado não deixá-la sozinha ou sob a influência nefasta de alguma alma perdida ou de um ser demoníaco, seu corpo passara a se mover com mais vigor e rapidez. Entrara em transe profundo e já não estava ali tampouco, sozinha.

Relances de rostos desconfiados, risadas estridentes e sarcásticas, olhos ressabiados. Um susto ao ver o rosto do tio refletido na vitrine de uma loja, sorrindo para si mesmo, absolutamente alheio ao fato de estar quase nu. Carros que passavam apressados por ele. Xingamentos, grosserias. Pernas que se apressavam, os risos inocentes do tio que se divertia ao escapar de homens fardados que não o alcançavam, por mais que tentassem. Ruas escuras, desertas, pingos de chuva fria em suas costas. Um choro baixinho, cheio de medo. Rajadas de ventos cortantes. Um punhal reluzia ante a luz fraca e alaranjada de um poste em algum lugar distante da casa lilás. O Punhal que elevava-se acima dos olhos assustados de seu tio que, como criança, soltara um berro devastador, protegendo o rosto com os braços erguidos. Mãos que surgiam, de súbito, puxando-o para dentro de alguma passagem secreta, salvando-o do punhal que desaparecia de sua visão. Labaredas que iluminavam um vasto salão escuro, fétido, repleto de rostos esquálidos, sujos. Roupas rotas. Mais labaredas saindo de latões de lixo. Grupos de pessoas encolhidas em cantos, com frio e fome. Crianças que riam e pulavam ao redor de um homem em um altar com algo reluzente em sua cabeça. Garrafas de bebidas espalhadas pelo chão. Um forte cheiro de cigarro misturado à maconha. Fumaças que escapavam de pequenos cilindros sugados por bocas sedentas, famintas, viciadas. A voz de um contador de histórias que ela reconhecera de imediato. - "Meu tio" - . Esboçara um sorriso de alívio. Ela o vira banhado pelas luzes crepitantes das chamas que o rodeavam. Abriria os olhos, cheios de júbilo se não houvesse sentido seu toque repulsivo e extremamente sedutor.

- Não. Não quero...- Implorava, de olhos fechados, tonta, com ânsia de vômitos e, a despeito de suas tentativas, simplesmente não conseguira controlar os impulsos do próprio corpo que se movia agora como um pêndulo ao sabor de uma devastadora ventania que precede as grandes tempestades. - Não me toca! Seu verme! Fica longe de mim...do meu filho.

- Vc viu algo? - Celeste não lhe dera atenção. Ansiava por notícias de seu homem.

- Tira ele daqui, tia. - Suplicara de olhos cerrados, comprimidos. Sentia dor.

- Ele quem, filha?

- Há alguém aqui! Tira ele daqui. Ele quer me tocar! NÃO DEIXA! - Celeste tentara interceder ao ver a filha tão desprotegida, acuada, isolada. Sentira, tarde demais, que fora um erro forçá-la a encontrar o tio usando de suas faculdades. Celeste também estava sob o domínio de forças que desconhecia, embora soubesse, com toda a experiência de sua sensibilidade nata, não estar lidando com a Luz. Sua vontade em encontrar Vincenzo era tão forte, tão louca e imprudente. - NÃO FALA COMIGO! - Giulia espantava com os braços erguidos algo invisível aos olhos da tia. - Não ouse me tocar!

- Giulia, meu bem. Acorde, por favor. - Ajoelhada ao seu lado, apoiada em seus tornozelos, Celeste hesitava em tocar o corpo em convulsão da mãe de seu neto. Temia, agora, pela vida de ambos.

- Não fala comigo. Quero meu tio, não vc! Não...tira ele daqui. Sai! NÃO FALA COMIGO. EU NÃO VOU TE OUVIR! - Tampava os ouvidos, Giulia, presa em seu próprio corpo. Deixa eu te ajudar. Eu posso encontrá-lo para vc. Não, não...me deixa. - A voz dela fraquejara. Acessava os arquivos da memória guardados em gavetas secretas por Carlos na época da possessão. Vc me conhece. Não se lembra, mas me conhece. Eles te afastaram de mim, amor. Lembre-se. Chame por meu nome. Estou aqui e quero te ajudar. Seu tio...ele merece. - Não o invoque. Não pense nele. Não o chame. NÃO O INVOQUE. NÃO PENSE NELE. NÃO O INVOQUE. - O corpo de Giulia arqueara para trás e, então, subitamente, paralisava-se como uma estátua de pedra, a cabeça pendia para cima, queixos bem erguidos, os braços ao longo do corpo. As mãozinhas de Sunshine foram vistas por Celeste através da pele estirada do abdômen da mãe.

- Giulia! - O neto a chamara à razão. - Volta, minha filha. Me perdoa! - Celeste gritara, apertando seus ombros com as mãos firmes, deslizando-as até seu pescoço. - Pare, minha filha. Olha pra mim. Abra os olhos!

- NÃO O INVOQUE. NÃO O INVOQUE. NÃO PENSE NELE. - Repetia tão rapidamente que as palavras saíam quase que incompreensíveis. Celeste ao tocá-la, percebera o aumento drástico de sua temperatura corporal. Atormentada, sem raciocinar, jogara-lhe água benta que guardava em sua gaveta do criado-mudo, sobre o rosto contorcido, transfigurado de Giulia. Giulia arquejara por segundos, guardando o ar nos pulmões por um tempo indefinido.

- Respira! Giulia, meu Deus! Respira! - Celesta a abraçara lutando contra as mãos que a empurravam. - Eu não vou te abandonar, meu amor. Volta. Ouça a minha voz. Giulia, eu te amo.

- Faz ele parar. - Ela implorou baixinho, prestes a desfalecer.

- Meu Deus, o que eu fiz! - Exclamara com a voz culposa e as mãos que retiravam as mechas coladas ao rosto dela, devastado pelo suor, com as pontas dos dedos trêmulos. - Me perdoa. Volta, Giulia!

- Tira a mão de mim! Tira a mão de mim. TIRA A MÃO DE MIM! SEU PORCO IMUNDO! Lembre-se de mim. Eu te ajudo. Eu quero voltar. Aceite-me. Invoque-me. - A voz dele estava tão baixa quanto um sussurro. Ela contraíra os olhos, procurando ver formas e desenhos na escuridão. A voz ressoava, grave, lasciva, relaxante. Celeste chegara a sentir a turbulência no ar que se concentrava acima delas, intensificando-se. O ar se aquecia e Giulia aspirava o doce cheiro que a circundava. A substância suave e sobrenatural a envolvera e, de chofre, os olhos dela se abriram, vítreos, nebulosos como os de uma morta. Celeste recuara com o auxílio das mãos sobre o piso frio, imensamente assustada. Suas costas encontraram-se violentamente com a beirada da cama. Gemera de dor, acuada como um animal indefeso. Algo diáfano e imenso, concentrando-se, tornando-se denso como o vapor se adensa para se transformar em água e como a água para virar gelo. Invoque-me. Deixe-me entrar...

Celeste a vira curvar o canto da boca em um sorriso lascivo. Partiria para cima do que quer que fosse aquele ser vaporoso, envolvente, aconchegante que abraçava Giulia por inteiro. Ouvira as risadas frenéticas de Giulia que tombava o corpo para trás, num deleite. Vira os cabelos dela invadidos por dedos invisíveis. Recuara novamente, imobilizada pelo horror.

- NÃO! De novo não! Tira...tira a mão dela! - Ordenara à Sombra, cujos olhos amarelados fixavam-se morbidamente sobre os dela. - Por favor...deixa ela em paz. A culpa é minha.

- Com vc, eu converso depois. - Ele a avisara através da suave voz de Giulia que se mantinha presa a ele, numa estranha mansidão. - Quer seu marido de volta ou não? - Celeste abanava a cabeça, arquejando, o coração aos pulos. A mão sobre o peito, o remorso estampado nas faces.

- Não. Não a esse preço. - Suspirou, baixando a cabeça, inerte, vencida. - Suma daqui. Acha que eu não o conheço? Pensa que não vi como te prenderam? Como colocaram os grilhões em suas patas e te levaram de volta ao inferno??? - Erguia-se com dificuldade, cravando as unhas no colchão, impulsionando o corpo com as pernas flexionadas. - Eu estava lá quando eles o trancafiaram em uma jaula como um animal nojento e fétido que vc é!

- Ainda não, tia. - Giulia implorou, olhos abertos, conscientes, desesperados, emitindo sinais ininteligíveis ao estado desesperador de sua tia que já não conseguia respirar imersa no vapor que ocupava todo o quarto.

- Ela me quer...

- MENTIRA!

- Eu tô vendo! Eu...é o tio...- Falara baixo, com a voz embevecida. - Ele tá vivo. - E, então, a voz diáfana sussurrava-lhe aos ouvidos. Basta me pedir, amor. Eu o trago até vc. Lembra de mim. Não me deixa voltar. Lembra de mim. Eu não quero voltar. Quero ficar com vc. - Ela dera um risinho com os olhos percorrendo o teto. Ocorrera-lhe que estava a ponto de ter um colapso. Seu corpo ansiava por algo que deixara no passado. Um desejo forte de ser possuída com violência Um passado não muito distante. Isso! Lembra do que fizemos. De como nos conhecemos. Eu sou seu amigo. - Ele tá vivo, tia!

- Diga! Agora o meu nome. Fiquemos juntos novamente!

- Não me lembro de vc. Não te quero de volta. Lembro sim, da dor que vc me causou. Lembro do sangue, da fome, do medo. Não sei quem é vc e não quero me lembrar. Está esquecido. Trancado aqui dentro. - Batia com a palma da mão contra a testa. - Agora não estou só. E vc sabe disso! Tá fraco. Eu sinto. Está enfraquecendo... - A presença se desvencilhava dela como que expulsa por uma força maior. - Viu??? - Giulia gargalhava, gloriosa. - Vc não pode me tocar por causa dele. - As duas mãos espalmadas em sua barriga. Um sorriso livre brotando em seu rosto exaurido. - Meu filho me protege. MEU FILHO É A MINHA LUZ! - Um silêncio sombrio sucedera-se ao grito lancinante. - Ele se foi.

- Giulia! - Uma lufada de ar frio invadira o quarto assim que Fernando, ainda sonolento, abrira a porta, atraído pelos gritos e vozes estranhas vindas do corredor. - Que merda é essa???

- Não toque nela, filho!

- NÃO ME TOCA! SE AFASTA DE MIM! - A voz grave e soturna fora lançada em seu rosto em um golpe de ar furioso. Os olhos de Fernando estavam dilatados, os cabelos desalinhados, os punhos cerrados quando fitara o teto com uma bizarra mancha negra tal qual uma infiltração logo acima da cama de sua mãe. Perdera alguns segundos tentando tornar aquilo digno de lógica. Mandara tudo às favas!

- É O CARALHO! Tô cansado dessas vozes esquisitas!Vão tomar no cu. Essa é a minha casa! ESSA É MINHA MULHER. ESSE FILHO É MEU! - Gritava com os olhos perdidos à sua volta. Apenas sentia o ar pesado, mas, estava longe de saber com o que estaria lidando. Nem precisaria. Estava fora de controle. Enfrentaria Lúcifer se o visse ali, diante dele, tocando em sua mulher novamente. - VÃO PRO INFERNO, PORRA! Que cheiro é esse??? Que porra é essa que ela tá vestindo, mãe??? - Fernando erguera Giulia do chão com uma força descomunal, levando-a à poltrona onde ele mesmo havia se sentado antes de dormir. - Fala comigo, amor. - Ajoelhado, com as mãos nas coxas dela, estalara os dedos diante de seus olhos. - FALA, PORRA!

- Acabou... - Engolira em seco, molhando a garganta que ardia. Seus olhos, embora ainda distantes, mantinham uma alegria insensata. Seu olhar apaixonado e o riso frouxo anunciavam seu retorno. - Tia! - Lançara um olhar vibrante à Celeste que assistira a tudo, boquiaberta. - Temos um longo trajeto pela frente. - E vc, meu amor. - Piscara as longas pestanas para ele, tocando em seu rosto, acariciando-lhe os cabelos. - Trate de se arrumar porque vamos passear.

- O quê??? - Seus lábios se moveram sem palavras ditas. Aqueles olhos exaltados, indignados, confusos fitando-a sem parar somente aumentavam sua empolgação. Estava saltitante no assento de couro quando erguera os braços como uma líder de torcida de um time de futebol norte-americano, bradando com os olhos efusivos e cheios de lágrimas.

- Vamos trazer seu pai pra casa, bebê! - Apertara-lhe as bochechas. - ACORDA!

- Não grita!

***

- - Ah...perdão. Vamos...buscar...papai. Entendeu ou quer que eu desenhe? - Perguntara-lhe já cruzando o batente da porta, dedos nervosos que tamborilavam sobre a madeira.

- Vc não tá bem! Volta aqui. Nosso filho...

- TÁ! TÁ BOM. FICA ME OLHANDO COM ESSA CARA DE OTÁRIO! - Ele se erguia, enfurecido, atônito, ainda sonolento. Cerrava os olhos tentando raciocinar. - NÃO QUER DIRIGIR! EU DIRIJO! PRONTO...ACABOU! Tia! - Celeste despertara do pesadelo com aquela voz aguda bem ao estilo de Giulia, e com o forte puxão em seu braço, ela seguira a sobrinha, como uma criancinha ansiosa pela festa de Natal. - EU DIRIJO! NÃO PRECISO DE NINGUÉM PRA FAZER ISSO POR MIM!

- Vc não sabe dirigir...- Celeste balbuciara, olhos inquietos e um sorriso eufórico no rosto.

- A gente aprende...- Giulia cochichara em seu ouvido enquanto se dirigiam à porta da sala de estar. - Vamos. Não dou três minutos pra ele...

- CARALHO! CARALHO! CARALHO! EU QUERO ACORDAR!!!

***

- ME TIRA DAQUI, FERNANDO! - Giulia, imprensada entre o volante, a barriga gigantesca e o banco do motorista, parecia se divertir enquanto ouvia seu filho a apertar a buzina que ribombava às duas da madrugada. Em poucos minutos, a rua inteira iluminava-se como em uma noite de Reveillon. - VAMOS, AMOR! - Gritava por ele, vendo seu vulto agigantar-se à medida que se aproximava dela e do carro. - Não briga comigo. Eu preciso de ajuda. - Sua voz doce não conseguira acalmá-lo. Ao contrário, exacerbar-lhe os ânimos apoquentados. - O PÚBLICO NOS ESPERA! VAMOS TRAZER O MEU TIO...O MEU TIO PRA CASA!

- Sai daí, idiota. - Fernando bufava pelas ventas quando a puxara, com cuidado e a custo, para fora do carro. - E fala baixo. Estão ouvindo...

- QUE OUÇAM, MEU BEM! QUE TODOS OUÇAM! - Enlouquecera de vez, empurrando os portões da garagem que abriram-se como as cortinas de uma ribalta. Giulia os via a todos. Ouvia-lhes os comentários, os agradecimentos fervorosos dos que os ajudaram, a maledicência dos que duvidaram de que aquele espetáculo teria um final feliz. Vira, ao longe, os olhos nefastos da vizinha com o cabelo da cor de fogo a espiá-la pelas frestas da janela. - "Rameira, eu vou te pegar quando voltar com meu tio. Me aguarda." - Vem logo, Fernando! - Ouvira o ronco profundo e abespinhado do motor que parecia um dragão soltando fogo pelos canos de escapamento. Sem perder a ternura e a loucura, fizera uma reverência tosca ao carro que engatava a ré. - QUE TODOS SAIBAM QUE O MEU TIO ESTÁ VIVO! VIVO! VIVO!

Sob arquejos de espanto e palmas, Giulia fora forçosamente conduzida ao carro, quase jogada no banco do carona. Comprimira os olhos, franzindo a testa, quando o som da porta fechada com violência quase rompera seus tímpanos. Ainda tivera tempo de dar um olhadela na tia, no banco traseiro. Celeste, com seus lábios rubros de batom, afofava os cabelos, contendo um riso com a mão pousada na boca. Giulia sentira um leve arrepio ao verificar a expressão de loucura em Celeste, mas, ao confrontar os olhos dardejantes de Fernando, optara pelo silêncio, respirando, a longos haustos, através da janela escancarada ao seu lado. Não posso me esquecer de nenhum detalhe. Me ajudem. Não me deixem agora.

- Pelos deuses do Olimpo. - Fernando, ainda de pijama, batera com a cabeça no volante. - Isso é um pesadelo sem fim. E por que vc está com essa camisola de louca?

- Meu camisolão das charnecas??? Que pergunta imbecil!

- Porra! Se vc não me disser agora o que a gente vai fazer, eu não saio daqui, caralho! EU NÃO SAIO DAQUI! - Giulia, como sempre o fazia quando ele raramente surtava, encolhera-se no banco, recostada à porta, aguardando um momento certo para iniciar as explicações. Pensara a respeito e logo desistira.

- Por San Juan Diego! Estamos perdendo tempo!

- Estamos sim! - Concordara Celeste exultante lá atrás, vista pelos olhos incrédulos do filho através do retrovisor.

- Puta que pariu...- Ele praguejara, mãos e testa grudadas ao volante. - Que santo é esse, Giulia? - E como ele negava-se a olhar para ela, Giulia prosseguira.

- Ele fez milagres lá pelos lados do México. Por que não pode repeti-los aqui??? - Ele lançou um olhar enviesado a ela. - Eu, heim!!! Não sou louca! Não pense isso da mãe de seu filho. - Massageara a barriga sorrindo para ela. - O grande herói da noite. - Falara com o filho. - "Vc me salvo, Sunhine. Meu raio de sol. Te amo, filho. Te amo pra sempre e nada...nada vai tocar em vc além da Luz, mesmo que isso custe a minha vida."

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 02/11/2019
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