'PRELÚDIO' - DO LIVRO 'GIULIA - QUANDO A LUZ SE APAGA'

Ela lutara bravamente por não ceder. Não fora criada para aquilo. Não. Acreditava em Algo Maior e em múltiplas chances. Aprendera com sua mãe a valorizar a vida e a jamais dar fim a algo que não lhe pertencia. Deus deu. Deus tira, ouvia sua voz suave e complacente em seu leito de morte. Admirava aquela capacidade de suportar as agruras da vida, conquanto, ainda muito jovem, não entendesse o motivo pelo qual sua mãe deveria sofrer tanto sendo tão boa. Ouvia-lhe os sábios conselhos e os aceitava, sem questionar. Ela costumava dizer, sorrindo, que nada seria por acaso e que, a dor burilava o ser humano e que o Criador era perfeito em tudo o que fazia. Mas, ele definhava a cada dia e, francamente, Celeste não enxergava sentido algum naquilo. Um bom homem, um ótimo pai, um marido exemplar, um companheiro fantástico! E no que se tornara? Num monte de carne, ossos e músculos flácidos, estirado sobre o colchão. Onde estava aquele sorriso que alegrava seus dias? Por Deus! Apareça de novo! Eu não vou conseguir fazer o que me pede. Não vou. É preciso, repetia para si mesma, enxugando o rosto transtornado pela dor. A tal da dor que burilava o ser humano. Ria sozinha ao lembrar-se da mãezinha querida e inocente que morrera e logo fora substituída por outra, um demônio em forma de gente que fizera da vida de Celeste o inferno na Terra. Onde está a Justiça, mãe? Minha mãe querida...se ainda me ouvir, me perdoe, porque não sei o que faço.

" - Faça o que deve ser feito.", lá dentro de seu coração, tais palavras ressoavam, causando-lhe um certo desconforto. Não poderia culpar a inexperiência caso seguisse a voz sem rosto. Desde pequenina, assim como Giulia, dera as mãos à Escuridão e ao lado dela, caminhava sem medo. As vozes, ela as ouvia também. Aprendera a distinguir as boas das más. Porém, todo seu ser se revoltava ao pensar no que lera naquela carta, antes dele perder a coordenação motora fina relacionada às atividades que requerem movimentos dos pequenos músculos. Escrever fora o primeiro ato que ele tivera de abandonar com um terrível brilho de amargor nos olhos antes risonhos. Ah! Os olhos! Os olhos que não mais a enxergavam! Perdia, aos poucos, a capacidade de movimentá-los ou fixá-los em um ponto determinado e isso a machucava como punhais cravados em seu peito. Preferia ter seus próprios olhos arrancados pelas garras de uma ave de rapina a ver aqueles olhos descoordenados, desorientados e o que mais lhe causava horror era saber que ele, seu amor, sofria por ainda estar consciente e lutava por encará-la, em vão. Então, ela usava de extrema brandura, tomando aquele rosto ainda tão doce, pele fina, cheirando à colônia de bebê, entre suas mãos firmes, forçando-o a cessar os tremores involuntários da cabeça vacilante e num arroubo de bravura, tocava com seus lábios os dele, murmurando palavras de um amor eterno.

Logo afastava-se dele e, correndo em direção ao banheiro, ficava lá, parada, com as costas na porta trancada, olhos fechados, praguejando, amaldiçoando, maldizendo a todos e a tudo o que haviam lhe ensinado durante toda sua vida. Eu pedi e o Senhor não me atendeu. Pedi por ele. Não por mim. E o Senhor não me atendeu, ela O procurava fitando o próprio reflexo no espelho. - PRO INFERNO! - Exclamava, curvando-se num choro mudo, o corpo franzino, abraçando-se a si mesma como se um frio devastador a envolvesse e ela tentasse, a todo custo, aquecer-se. Sabia que os abraços dele jamais os teria de volta. Que suas noites seriam solitárias e que, em breve, nada mais restaria dele do que lembranças. E o que ele mais pedira fora ser lembrado como o homem alegre, entusiasmado pela vida e não como um vegetal.

Ainda não chegara ao fim, ela afirmava com aqueles olhos alucinados que o fitavam, buscando por ele, encontrando o vazio. Os lábios ainda se moviam. Eram movimentos quase imperceptíveis, mas se moviam. Moviam-se sim! Ela os vira pronunciar seu nome, embora não ouvisse o som das palavras. O resto do corpo poderia estar imobilizado, inerte, paralisado, detido, sustado, emperrado, mas os lábios e algo nos olhos ainda se moviam e era a estes míseros movimentos que ela se apegava para não enlouquecer e ceder, pois, ainda acreditava em milagres e, odiando-se por isso, sentindo-se covarde por este motivo, aguardava por um, sentada ao lado dele, devidamente acomodado, confortavelmente adaptado em sua cadeira de rodas, tão estático quanto um boneco de cera, posicionado como uma mobília, na ensolarada e acolhedora biblioteca, com móveis de vime pintados de branco e almofadas coloridas. Um sofá de aparência confortável, forrado com um tecido vermelho lembravam-na dos dias em que ele costumava ler para as crianças que o ouviam atentas, olhos perplexos e extasiados como se estivessem diante de uma entidade divina, um deus, um grande espírito das mágicas florestas encantadas dos povos nórdicos. E estavam. Para Celeste, estavam.

As cortinas de renda dançavam sob a brisa que atravessava as janelas, e o cheiro agradável de livros misturava-se com a fragrância refrescante de flores semeadas e colhidas por Giulia que não desistira do jardim de sua tia, embora Celeste nunca mais o tivesse visitado. Celeste dividia sua atenção e preocupação entre o pai e o filho. Vira Fernando entregar-se primeiro ao desânimo ao ver o pai sem alma, num corpo inanimado, esforçando-se por manter um contato com ele. Implorando por seu carinho, deitado, abraçado ao pai, chorando, urrando de dor diante do silêncio torturante. Depois, com o passar dos dias, vira o filho sob o poder da revolta. Uma revolta muda assaz perigosa por envenenar os órgãos e aquele coração que ela sabia necessitar de cuidados, enchiam-na de temor. Percebera, entre risos de uma euforia bizarra, que o temor passara a ser seu grande amigo e companheiro. - "Tão doente quanto eu...", lastimara o destino do filho, arquejando num desconsolo, apertando a mão de Enzo entre as suas.

- Duas para sim. Uma para não. - Dera graças a Deus ou a quem quer que fosse o responsável por sua faculdade em ouvir os pensamentos dele. Ele ainda pensava. Pensamentos, em sua maioria desconexos, lentos, demorados, mas pensava! Ela sorrira quando ele, usando das forças que lhe restavam, pressionara sua mão por duas vezes, com a mesma vitalidade de um passarinho com suas asas quebradas. - Eu sabia. - Ela exultara com um riso que mais parecia um suspiro. - Vc sabe que ele te ama, não sabe? E que ele é forte e que vai superar tudo isso, não sabe? E que os dois serão felizes...digo...o três! Pelos Céus! Como pude esquecer de nosso netinho??? - Dois apertos de mão e ela cerrava os olhos, aspirando o calmante perfume dos Gerânios tão vibrantes e vermelhos como sangue, distribuídos pelo cômodo por Giulia que aflita, esforçava-se por manter a casa em ordem e quando levava as flores aos aposentos, desejando fazer o bem, invocava intuitivamente a Magia dos elementais, das fadas, dos gnomos, dos duendes, da lua, do sol, dos Celtas e de quem a pudesse auxiliar a permanecer de pé, pois seu filho queria nascer e ela estava a ponto de se deixar levar por um rio caudaloso, braços estirados, boiando sobre as águas tranquilas para bem longe dali e apenas dormir para sempre até que tudo voltasse ao que era antes. NÃO! - Lançava aos raminhos coloridos e delicados um olhar de uma maternal reprovação. - Trate de espalhar seu perfume por toda a sala e, se puder...- Beijava as folhas e pétalas com brandura. - Curem meus tios. - Sorria como uma criança, enquanto conversava com os vasos de Gerânios, Rosas, Lírios da Paz, Orquídeas e Lavanda, jurando que elas a entendiam. Descobrira em suas pesquisas o poder dos cristais e, com suas parcas economias, tratara de comprá-los, espalhando-os pelos cômodos da casa sob os olhares incrédulos, embora compassivos de Fernando que a admirava por muitas qualidades, mas, a capacidade de acreditar no impossível era a que mais o fascinava.

***

- Riolito para aliviar o estresse emocional. O topázio para conexão com a Luz. A malaquita para vc pensar com clareza. - Toma!

- Eu???

- Sim! Cala a boca. - Seguia distribuindo as pedras pelos cantos dos quartos, salas, corredores, banheiros e até os degraus das escadas, chegando à estante onde os livros que lera permaneciam intactos, organizados do jeitinho que ele sempre fizera questão de organizar. Ela estava ali, de frente a ele e, curvando o tronco até que seus olhos se nivelassem, sacudira diante do nariz dele um gracioso saquinho amarrado com cetim vermelho em sua ponta. Abria-o diante daqueles olhos cansados, tristonhos, voltados em sua direção. Eu sei que o senhor me ouve, me entende. Eu sei, pensara enquanto expunha as pedras reluzentes na palma das mãos agitadas. Celeste a observava com ternura, espantada com o tamanho de sua barriga que agora exibia uma fina linha negra que a separava em dois hemisférios. Controlava-se para não explodir de emoção em ver sua filha prestes a dar à luz àquele a quem ela tanto desejou. Alheio aos pensamentos da tia, os dedos de Giulia vasculhavam as pedras no interior da bolsinha em veludo vermelho, experimentando, rejeitando, selecionando. - Achei! Sodalite! - Erguia a pedra de um azul profundo com fissuras em branco, como quem houvesse descoberto a cura para o mal que assolava a todos naquela casa. - Para aliviar a confusão mental e a Pedra da Lua...- Deixara escapar um arquejo de entusiasmo diante da cor exuberantemente azul, bem próximo ao tom dos olhos de Fernando que a seguia de perto, mostrando-se distante, conquanto um canto de sua boca se erguesse a cada pedra que ela retirava daquele saquinho com o mesmo vigor que um mágico o faria ao retirar um coelho da cartola. - Pedra da Lua para sensibilidade e finalmente, a Ametista...- Deslizara como um fantasma até Celeste que a aguardava com extremos de fadiga mesclado a um amor incondicional. - Para a intuição, tia. Pense bem. Reflita. Deixe que a Luz fale com a senhora. ACORDE! - Os olhos de Celeste dilataram-se num repente, sentindo a mão de Enzo pousar sobre a dela. - Ainda dá tempo! - Dizendo isso, fechara a porta atrás de si e pusera-se a caminhar em direção ao jardim. Precisava aspirar ar puro. Reenergizar-se, pois Sunshine inquietava-se em seu ventre como se algo o perturbasse. Sentada sobre o chão de ardósia, cruzara as pernas, pousando os cotovelos nas coxas. Intencionava inspirar e expirar e se acalmar. Tremia olhando direto para frente, e então começou a torcer as mãos como se uma quisesse rasgar a outra. Um gesto desesperado e sua voz estava baixa e cheia de agonia proferindo palavras a esmo. De repente, as lágrimas se derramaram. Notara, ao longe, um luz opaca vindo do outro lado da rua.

- Cabelos de fogo...- Sentira um forte arrepio a percorrer toda sua espinha quando tivera a certeza de que a vizinha a espiava pelas frestas da janela. Os olhos frios, observadores. Os pensamentos impenetráveis. - Como ela faz isso? Por que eu não consigo ouvir o que ela pensa? - Giulia escutara o cricrilar dos grilos antes de assustar Fernando que a seguira, com seu grito. - VAGABUNDA! - Erguera-se de súbito com a destreza da antiga bailarina. - SAI DESSA JANELA PORQUE EU VOU TE METER A PORRADA! - A mão de Fernando em seu antebraço. Os olhos furiosos dela sobre os dele. - ME SOLTA! - Ele a abraçara quando a sentira tremer por inteiro, vendo aqueles olhos avermelhados, aturdidos, desesperançados. - Vc sempre me atrapalha! Eu tenho que falar com ela!

- Agora não!

- Vc não me dá ordens! - Afastara-o com as mãos espalmadas em seu tórax. - Eu não...

- Estou dando uma agora! Vá descansar!

- Vá pro inferno! Tenho muito o que fazer! - Passara por ele sem olhar em seu rosto. Ele a puxara pela mão, trazendo-a de volta. - Vc não me entende. - Dissera entredentes. - Não há muito tempo. Não há muito tempo.

- Vc tá muito nervosa!!! - Ele a impedia de andar, segurando-a pelos ombros. - Eu não tô brincando!

- NEM EU! EU PRECISO EVITAR QUE TUDO...ME SOLTA!

- SE ACALMA, PORRA! MEU FILHO TÁ AÍ DENTRO E EU TENHO O DEVER DE PROTEGÊ-LO DE SUA LOUCURA!

- Loucura...- Recuara como um bicho ferido, acuado. Os olhos úmidos. Ofegava, com os dedos enfurnados nos cabelos desalinhados. - Loucura é o que vc não vê. - Ela ria entre lágrimas. - Loucura é te ver cheio de ódio o dia inteiro como se isso fosse salvar a vida do teu pai. Loucura é ver minha tia morrendo aos poucos ao lado dele. - Enxugara o rosto com o dorso da mão. Fungava, tremendamente magoada. Apertava o ventre implorando, mentalmente, calma ao filho que se movia já sem espaço. - Me deixa passar...

- Descansa, Giulia. - Dissera-o num tom apaziguador. Levara um tapa na mão quando quisera acariciar seu rosto. - Vc tem andado muito nervosa. Trabalhando muito...- Ele, desajeitado, jogava seu corpo, marcando-a como um jogador de basquete. - Para um pouco!

- Trabalharia muito menos se não houvesse tantas sombras. - Seus olhos o culpavam. - Se vc não praguejasse tanto, se não se entregasse tanto ao que não compreende. Se não abrisse portas que não sabe fechar!

- Ele não vai voltar, Giulia. - Rosnara, prendendo-a pelo punho.

- Eu me recuso a ficar parada vendo tudo se acabar. - Falara baixo com a voz rouca de tanta indignação. - Solta meu punho...agora. - Ele acordara, horrorizado pela violência de seu próprio ato. Lançara um olhar arrependido a ela que não o vira, pois já estava de volta à sala com seus cristais que tilintavam no saquinho de cetim.

- Isso não vai adiantar! - Ela o ouvira gritar do quintal.

- Enquanto eu tiver forças, eu vou lutar. - Resmungara enquanto, a passos lentos, pés inchados, cruzava o batente da porta. - Vcs não vão tirar eles de mim. Não vão. Eu juro. Uma troca? - Estacara em meio ao corredor, apurando os ouvidos. Uma vida pela outra? - Vc quer a minha? É isso? - Perpassara os olhos ao redor. Os quadros de família espalhados pela parede do hall, do corredor. Rostos felizes de uma infância inesquecível. Seus tios, seu amor. Sua única foto ao lado dele, sorrindo, satisfeita, exibindo uma enorme brecha deixada pelos dentes de leite. A formatura de Fernando, a foto amarelada do casamento de seus tios, a tia ainda jovem com seus cabelos longos da cor do sol. O tio que a levava em seus ombros tendo ao fundo, a areia escaldante e o rosto enraivecido de Fernando, de pé, logo atrás deles. - Deixe meu filho nascer e me leve e em troca...- Queria ser forte o suficiente para terminar a proposta. Lutava para pronunciar as palavras finais. - Em troca, eu te dou a minha...

- Me perdoa, Giulia. - Num átimo, desconectaram-se com a chegada abrupta de Fernando. A luz do corredor tremeluzira por segundos enquanto ele sentira uma rajada de ar morno roçar em seu rosto. - Vc tá quente, Giulia! - Levara sua mão à testa dela que se deixara levar por ele, exaurida, até o quarto. - Vou tentar mudar. Prometo. - Dizia enquanto a deitava sobre as cobertas, cuidadoso, receoso, tão perdido quanto ela. - Me ajuda a ser forte...- Ele a vira segurar suas mãos, apreensiva, arquejante, olhos avermelhados, ardendo em febre. A boca entreaberta e uma expressão insondável em suas faces afogueadas. Ele emudecera quando ela finalmente ordenara-lhe.

- Cuida do nosso filho quando eu me for!

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 10/11/2019
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