'THELMA AND LOUISE - VOLUME III' - livro Giulia - Quando a Luz se apaga

Com o ar úmido e o sol nascendo lentamente lá fora, o jardim se enchendo de uma luminosidade que dava vida às flores, ela sentira uma punhalada de dor. Inspirou profundamente, pousando a xícara de café sobre a mesa posta enquanto seus olhos úmidos o fitavam.

- Vc está pronto, querido? Não. Não me olhe assim. Eu disse que faria e o farei. Não voltarei atrás. É que...- Abanara a cabeça baixa, rindo de si mesma. - As crianças, o casamento, o nascimento de nosso neto...- Enfurnara os dedos nos cabelos num gesto angustiante e após alguns minutos de reflexão, tornara a falar. - Tem razão! Devo ser forte. Venha. - Estendera-lhe a mão trêmula. - Vamos nos divertir.

***

Os cabelos lisos, escorridos, contornavam seu rosto ainda bonito e maquiado com esmero, trajava-se com perfeição. A ocasião merecia que ambos estivessem impecáveis. Ela só não contava em ter de se esforçar tanto ao colocá-lo no carro, sozinha. Estranhava o fato dele estar mais pesado do que antes, pois havia emagrecido nos últimos tempos.

- Ou vc andou comendo às escondidas ou está fazendo gracinha comigo, meu bem! - Resmungava enquanto girava o corpo dele no assento de couro do carro, acomodando seus pés no tapete de borracha. - Eu particularmente não acho graça. - Arquejava de cansaço, a cabeça recostada à porta aberta, o suor que escorria pela fina pele do pescoço. Os olhos com um brilho enigmático pareciam aguardar por alguma reação intempestiva dele. Algo que a fizesse recuar. - Está tudo sob controle. Não precisa ficar nervoso, Vincenzo! Vc e sua mania de deixar tudo para última hora. Já...já disse que está tudo sob controle. Fique quietinho aí dentro e não ouse me desobedecer. - Ela se assustara consigo mesma quando ouvira o baque seco da porta que o trancava lá dentro. Dera a volta ao redor do carro, olhando-o através do para-brisa. Saltitante, sorria, radiante. Vacilara por segundos quando se sentara em frente ao volante, pousando suas mãos finas e suadas nele. Havia planejado e aguardado por aquele momento há dias. Estava ciente de que estaria sozinha. Não haveria falhas. Tudo deveria sair conforme arquitetara. Tudo sob os olhos distantes dele. Deveria ser agora. Nada poderia dar errado. Fernando retornaria ao lar no dia seguinte. E isso ela pensara ser uma ajudinha do Universo. A reunião de negócios fora adiada. Um grande golpe de sorte! Teriam, ela e Enzo, um dia a mais para pensarem nos detalhes com extrema cautela.

Celeste lamentara, ao telefone, a morte da mãe de Genaro, amigo íntimo de Fernando e um dos sócios da rede de restaurantes "Cosa Nostra", em franca expansão. Os negócios iam de vento em popa e Celeste não poderia estar mais orgulhosa do filho que se empenhava em dar o melhor de si por honrar o nome e os esforços do pai que mesmo antes de conhecê-la, já sonhava em ter um pequeno restaurante onde os clientes pudessem provar o verdadeiro sabor da Itália. Seu sonho se tornara realidade e, agora, com Fernando à frente de tudo, não se preocuparia. Ele estaria ocupado e ausente por, pelo menos, vinte e quatro horas. Ótimo! Fantástico!, pensara sem medo, porém alerta e resignada por natureza. Não queria dar continuidade ao passeio, mas, dera sua palavra. E, palavra dada deve ser honrada. Ao menos, era assim que Enzo pensava quando ainda raciocinava e se expressava. - Ora, que bobagem! Engula o choro. Isso não é hora para se lamentar. Temos muito o que fazer. Hmm...Giulinha ainda dorme. Isso é bom. Será que exagerei na dose, meu Deus? Não. Não creio. Eu sei que o correto seria um comprimido e que eu dei um e meio...mas...- Aproximara-se vagarosa e cuidadosamente do leito onde a filha e o neto repousavam. Ela os olhava com os olhos cheios de lágrima e uma vontade imensa em deitar-se ao lado deles fora substituída pela visão aterradora do homem de sua vida vegetando sobre o seu colchão. - Foi por uma boca causa. Sim. Foi sim. Ela precisava descansar. Trabalha tanto a pobrezinha. - Certificava-se de que Giulia ainda respirava usando o velho truque do espelhinho embaçado próximo à boca da filha. - Perfeito! Dorme como um anjo! - Exultara dando pulinhos sobre o tapete peludo. Reparava agora no quão azul era o tapete. Queria rolar sobre ele, abrir os braços e simplesmente nada fazer além de observar as estrelinhas no teto. Tão gastas e foscas, pensara, nostálgica, fitando os decalques colados por ela, um dia antes de Fernando nascer. - Vcs já viram tantas coisas neste quarto. Não. Nem me contem...- Enrubescera rindo-se de si mesma. - Tenho inveja de vcs. - Confessara baixinho com receio de acordar Giulia. - Viram meu filho nascer e agora verão o nascimento do meu neto. - Baixara os olhos sombrios. - Isso não é incrível...- O som de sua voz era tão sombrio quanto o olhar. - Queria ter a mesma sorte...- Outro suspiro profundo e num pulo, já estava fora do quarto, a caminho da garagem. - Trato é trato!

***

- Well, well, well! Quem está pronto para a grande viagem levante o braço! - Celeste era toda empolgação ao volante. - Por Deus! - Exclamara perplexa com seu próprio reflexo no retrovisor. - Quem passou batom em minha boca??? Está um desastre! Com certeza, eu não fui. - Fizera uma careta e pusera-se a sorrir, girando a chave na ignição, afundando o pé no acelerador. A fumaça cuspida dos canos de descarga invadia o interior do bom e velho Jaguar enquanto Celeste retocava o batom borrado. De olhos ardidos, embaçados, uma tosse repentina a fizera estragar o que já estava ruim. - Por Deus! - Agora gargalhava nervosamente, encostando a testa no centro do volante. Assustara-se com o curto e estridente retinir da buzina. - Definitivamente, hoje não é o melhor dia para eu me maquiar, meu bem. Acho que deve ser o frisson da viagem. Olhe minhas mãos! Olhe! Estão tremendo. - Ria de se jogar para trás apoiando-se ao banco do motorista. - Ah! - Dera de ombros. - Vai ficar torto mesmo! Já vi piores! - Dissera-o voltando-se para ele, logo ali, recostado ao banco do carona. - O que acha??? Estou feia? Eu simplesmente não consigo passar este batom sem borrar a minha boca! É tão grotesco e hilário! - Chorava de tanto rir. Um arquejo e o riso transformara-se, de súbito, numa expressão carregada, enrugando-lhe o canto dos olhos. - Vc está muito calado hoje, Enzo. Isso quer dizer que estou feia? - Arqueara sua sobrancelha questionadora. - Ora! Quem cala, consente. Vamos. Diga. O que acha? Devo tirar ou devo ir assim mesmo? É. Tem razão. Devo concordar que fico bem de qualquer forma. - Mais uma demão de batom e sua mão vacilante deslizara levemente para a direita. Uma tênue linha vermelha agora cruzava seu rosto, do canto da boca à linha divisória do queixo. Sem conter o riso, dava tapinhas na coxa do marido enquanto lhe mostrava o rosto ruborizado. - Estou a cara do Coringa! Ai, ai! Giulinha adoraria rir de tudo isso! - Os olhos, a princípio, descontraídos, tornaram-se dramaticamente sérios. - Sim. - Engolira em seco. - É verdade. Já passa da hora. Vamos dar prosseguimento ao plano. Ai, meu Deus! - Batia palmas, num frenesi. - Eu sempre quis falar esta frase. "Vamos dar prosseguimento ao plano". - Repetira numa patética imitação de Vitor Corleone em "O Poderoso Chefão". Estranhara o fato dele não soltar a sua contagiante gargalhada ou mesmo rir ou apenas sorrir para ela. Ressentida, engolira em seco, uma segunda vez, numa frustrada tentativa em desfazer o nó na garganta. Pensou que poderia tomar o rio Mississipi inteiro e ainda assim o nó permaneceria lá, incomodando-a como tudo naquele dia infernal. - Ok, ok! - Erguera os braços para logo baixá-los novamente. - Já estou saindo. - Com um gesto precipitado, voltara a girar a chave na ignição. O carro tossia e dava solavancos enquanto, de ré, ela tentava alcançar a calçada, ultrapassando os limites dos portões abertos. Celeste sentia seus ossos chacoalharem quando se lembrou de que não mais se lembrava de como dirigir. Começara a rir tão divertida quanto atônita e distraída como estava, pisara firme no freio a tempo de não atropelar a mulher de cabelos ruivos que a fitava através do vidro traseiro do carro. Diabos! De onde ela saiu??? Celeste estava a poucos centímetros de passar com os pneus traseiros sobre ela e, lá no fundo, deliciara-se com a possibilidade de machucar aquela mulherzinha com os cabelos de fogo que apoquentava sua filha. - Querida, vc pode sair aí de trás ou está difícil??? - Celeste gritara com metade do corpo para fora da janela do motorista. - Tem gente querendo passar, meu amor! - À medida em que a mulher se aproximava, Celeste recuara, dilatando seus olhos estupefactos. Que afronta! Que abuso!, resmungava com a mão direita colada ao volante enquanto a esquerda abria-se e fechava-se no mesmo ritmo de seus acelerados batimentos cardíacos. - "Ai dela se ousar falar comigo!" - Os dedos tamborilavam na lataria do Jaguar agora desligado. Os olhos irritados, intrigados, a boca borrada e o rosto demarcado emprestavam-lhe o ar selvagem de uma guerreira nórdica. Giulia diria "Viking!". - Querida, vc certamente não entendeu que eu quero passar! - Dissera-o Celeste, sarcasticamente, quando a vira curvar-se até que seus olhos se alinhassem aos dela. E seu cérebro custara a processar a frase por ela dita com laivos de ironia.

- Quer que eu cuide de Giulia por vc, caso não volte a tempo do nascimento?

- QUERO QUE VÁ PRO INFERNO! - Celeste explodira e, num impulso típico dos povos guerreiros, enfiara os cinco dedos da mão esquerda naquela vasta cabeleira vermelha. Sua mão agora funcionava como um potente gancho que tracionara a cabeça da mulher de tal forma que a imobilizara. De dentro do carro, Celeste a fitava nos olhos, a loucura encontrava-se com a maldade e ambas sorriram enquanto, num rouco murmúrio, Celeste anunciou, ameaçadoramente. - Se encostar a mão na minha filha ou no meu neto, eu volto, de onde estiver, somente pra acabar com vc. Tá me ouvindo? Me diga! Tá me ouvindo? - A vizinha, a custo, desvencilhara-se da garra aquilina de Celeste que voltava ao interior do automóvel totalmente descontrolada, desalinhada, desorientada, ofegante. Não esperava por aquela intervenção maligna. Não a colocara em seu plano. Ainda se perguntava como ela havia surgido quando notara sua súbita ausência. Tremia-se toda quando voltara os olhos atordoados a ele, sentado, quieto, sisudo. - Eu sei, amor. Eu sei. Está bem! Está bem! - Afofava os cabelos. - Eu não vou me incomodar com ela. Não vou. Só estou um pouco nervosa. - Esfregara o borrão do rosto com o dorso da mão. - "Parece uma queimadura...", pensara, vendo-se no espelho retrovisor na lateral do carro, desviando, rapidamente, os olhos da visão que mais parecia um presságio. Alisava o rosto avermelhado enquanto falava com ele. Sua voz parecia um suspiro quando declarou. - Sim...vamos embora. Já está passando da hora. - Ainda aérea, ajustara em seu corpo o cinto de segurança logo que o vira o bem firme e seguro, com a alça a cruzar aquele tórax que quase não se movia. Estremecera a cabeça, contendo as lágrimas. Fungou antes de mencionar com a voz entrecortada por soluços. - O show deve continuar.

Lançara um olhar à fachada da casa onde vivera os melhores anos de sua vida. Levara a mão esquerda à testa e por alguns minutos, permitira-se fraquejar. Chorou em silêncio, cabeça baixa, ombros caídos. Seja forte! Siga o plano!, ouvira uma voz suave, sedosa, inebriante. Sorria enxugando as lágrimas com as pontas dos dedos delicados. Não vou te deixar.

- Não me deixe. - Erguera os olhos brilhantes. Não deixo. - Ela, então, resoluta, pisara na embreagem, engatara a primeira marcha e, ao mesmo tempo em que, relaxava o pé direito, afundava o esquerdo no acelerador e, enfim, o carro seguia ladeira abaixo, distanciando-se de tudo o que ela mais amava. - Tem certeza? - Ainda perguntara a ele, antes de girar o volante para a esquerda e pegar a estrada principal. - Entendo. Não. Eu não quero...não vou desistir. Estamos nisso juntos, lembra? Diga algo...por favor. - Estalara a língua, encolhendo os ombros. - Está bem. Então fique calado. - Voltara toda sua atenção ao caminho que deveria seguir. Mal percebera quando, abrindo um sorriso macabro, mencionara baixinho. - Maktub.

***

Celeste baixara a capota do Jaguar, deixando que a brisa fresca, quase gelada fustigasse seus cabelos louros e curtos. Havia o cheiro do mar, de grama recém-cortada e das flores que vicejavam no clima ameno. O céu estava sem nuvem de um azul lindo. O carro ronronava como um grande e esguio felino. Veloz e aberto na estrada sinuosa e o vento em seus rostos cheirando a mar. Celeste estava exultante ao volante. Dirigia com habilidade natural e, confiante, pousara a mão livre sobre a coxa de Enzo que parecia dormir.

- Amor! - Ela gritara contra o vento que agitava a relva por onde passavam, céleres. - Está gostando do passeio? Ei! Acorde! Por Deus! Isso era para ser divertido! - Celeste apreciava cada momento daquela estrada livre, longa, larga. Seus olhos se deliciavam com o extenso campo florido ao seu lado direito e a relva balançando sob a brisa, ao seu lado esquerdo. Lá em cima, o céu era uma abóbada azul. De um azul profundo de plena primavera. - Ainda há tempo. Podemos voltar e desistir de tudo...- Balbuciara sem olhar para ele, rezando para que ele erguesse o braço e a impedisse de continuar a dirigir. Ele não o fizera. Não se movera. Ao invés de se entristecer, ela sorrira de prazer ao sentir que algo lhe perpassara pela nuca, deslizando até a última vértebra de sua coluna, de forma suave e gentil. - Talvez eu não queira ir...- Pensara alto. Seus olhos pesados fixavam-se nas linhas verticais e hipnóticas da autoestrada. O barulho das ondas nas rochas, um som constante e rítmico a fizeram lembrar-se dos dias em que Fernando e Giulia ainda eram pequenos e se atracavam como dois caranguejos raivosos nas areias tão brancas como aquelas diante de seus olhos. - Vc se lembra, amor? - Lançara-lhe um olhar onde a ternura mesclava-se ao terror. - Nós éramos felizes! Éramos...felizes. - Seus olhos confusos iam da areia à estrada, passando por ele, retornando, decepcionados, ao volante. - Diga alguma coisa. Já estamos chegando. - Ela implorou, cabelos ao vento, o rosto úmido, olhos devastados pelas lágrimas. - DIGA ALGO! PELO AMOR DE DEUS! - Pisara fundo no acelerador. Chegavam aos cento e cinquenta quilômetros por hora e o motor enlouquecido e aquecido parecia gritar por maior velocidade. - VINCENZO! FALE COMIGO! - A capota do Jaguar os cobria, lentamente, então ela pudera falar baixinho. - Vincenzo, volta pra mim...

- Por que o desespero? - Ela arquejara de espanto ao ver, num relance, algo sombrio atrás do banco do carona. Sopesara, mentalmente, que deveria manter-se calma, diminuir a velocidade, aos poucos, sem desviar a atenção da estrada que, agora, parecia não ter fim. - Não sabe que ele tem suas limitações. - Ela ouvira um risinho curto, baixo e maligno. Precisava pensar em coisas boas. No neto que viria, na filha tão amada, no filho responsável, na casa que abandonara, nas flores e arbustos que sentiam sua falta. - Não adianta, Celeste. Vc tomou a decisão.

- Eu...eu...- Custara a tomar coragem em responder à voz sem rosto. Seu corpo inteiro arrepiava-se. Conhecia-o. Pressentia-o bem próximo a ela. Estava tão próximo que lhe ouvia os pensamentos. - Eu não quero continuar.

- E vai deixá-lo assim!? - Celeste sentira a repulsa na voz suave, melíflua, tão sinuosa quanto as curvas que, com uma habilidade surreal, contornava, mãos atreladas ao volante, os olhos atentos e aflitos. - Tsc, tsc, tsc. Ele não merece...

- Ele está vivo! - Replicava, num desespero. - Isso é o que importa. Posso voltar agora e...

- E deixá-lo morrer à míngua. - Atalhara, impiedoso. - Vc se lembra da carta?

- Pare!

- Quer que eu a leia?

- PARE AGORA! DEUS...

- Ele não está aqui. Vc escolheu este caminho e Ele não está aqui.

- Está sim! Vc mente! Sempre mentiu!

- Celeste, meu bem, preste atenção ao caminhão! - Ela desviara a tempo de não ser empurrada para fora da pista pelos grandes pneus que emparelhavam com seu carro. Nunca vira pneus tão altos. Mais altos do que seu carro! - Quer que eu leia parte em que ele pede...

- CALE A SUA BOCA! - Sem tirar as mãos do volante, voltara a cabeça para trás, procurando pelo dono da voz que a atordoava. Nada vira, apenas sentia-lhe a presença nefasta. - Pare com isso...- Suplicara, voltando os olhos à estrada. Ocorrera-lhe que poderia parar a qualquer instante, mas, seus pés já não lhe obedeciam. Lutava por tirar o pé esquerdo do acelerador e quanto mais lutava por tirá-lo de lá, mais fundo pisava e maior velocidade imprimia à corrida. - Pare com isso! Por favor! Eu não quero mais! Enzo, amor! Acorde!

- Ele não te ouve, Celeste. Por San Juan Diego! - Imitara com perfeição a voz de Giulia. Celeste rira como os somente os loucos riem. Estava enlouquecendo. Isso. Estava tendo um pesadelo e enlouquecendo dentro do pesadelo. É preciso manter a calma e, daqui a pouco vou acordar. - Sei. Eu tentei! Melhor refrescar sua memória. - Ela ouvira, com perfeição, o som de um papel desembrulhado, alisado e cuidadosamente manuseado. - "Eu, Vincenzo Tomazzini, nascido em blá, blá, blá. Ah! Vamos pular esta parte...

- Pelo amor de Deus! Pare, eu imploro.

- Celeste! Não olhe para trás enquanto estiver dirigindo! - Ela fixara os olhos comprimidos nos faróis à sua frente. - Pode ser perigoso...

- Pai Nosso que estais...

- Eh, bien! Rezar a essa hora, meu bem!? Não acredito no que ouço! Deixe-me continuar a ler.

- ENZO!

- Isso! Deixe-me ver...aqui..."em plena posse de minha faculdades mentais...blá, blá, blá..."desejo pôr fim à minha vida antes de perder a totalidade de meus movimentos bem como minha inteligência cognitiva." Ah! Essa é a melhor parte!

- Eu não quero ouvir. Eu não preciso ouvir isso de novo. Eu não quero...não quero. - Ela balançava a cabeça, aflita, corpo retesado, a boca retorcida pela dor.

- "Recuso-me a ser um estorvo para a minha família"...pula, pula, pula. Aqui!

- Pare.

- "Celeste, meu amor. Sei que peço muito de quem já me deu mais do que eu merecia. Mas, não posso recorrer a ninguém além de vc, minha companheira, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença"...blá, blá, blá..."até que a morte nos separe. Não quero te perder, Celeste, mas não posso te fazer sofrer assim. Liberte-me. Seja forte por mim. Quando chegar a hora, liberte-me. Prometa."...tão lírico e poético. - Dissera-o num tom de deboche, embora a voz continuasse doce, terna assaz firme. - Está ouvindo, Celeste?

- Sim...- Ela suspirou e, enfim, conseguira mover os pés, desacelerando o carro à medida em que seu coração batia descompassadamente. Já não o temia. Sua presença maligna não mais a incomodava. Ao menos, tinha com quem falar. Alguém que a ouvisse após tantos dias de solidão. Seus olhos semicerrados percorreram, vasculharam à sua roda quando desligara o motor super aquecido. Uma placa pequena, quase invisível, coberta pelos arbustos exibia, em letras garrafais o aviso: "PERIGO. NÃO ULTRAPASSE ESSE PONTO". O céu estava pincelado, listrado de nuvens branquinhas. Aquilo enternecera o coração dolorido de Celeste que vira beleza no cenário árido, o chão revestido por terra de um laranja fortíssimo e as árvores secas que se retorciam como se implorassem por carinho ou algo que as fizesse voltar à vida. Mais adiante, o vertiginoso vertedouro das rochas que mergulhavam até as profundezas do mar. Sim. Ela gostava daquele cenário dramático, dos declives perigosos, do mar que se agitava logo ali, após a estrada interrompida. - É tão parecido com o filme. - Murmurou enquanto seus olhos se perdiam na vastidão que se alongava até o horizonte. Uma estrada inacabada, um desfiladeiro com a vista deslumbrante do mar bravio e as rochas pontiagudas lá embaixo, banhadas pelas ondas enfurecidas. - Tem que ser aqui. - Afirmara, tomando-lhe a mão fria entre a sua.

- Querida, já pensou nas consequências? Ele quer partir. Vc não. Ele não pediu que...

- De que adianta ficar aqui sem ele.

- Meninas más não entram no Céu.

- Então, que o inferno me aguarde...

- É assim que se fala, mon petit. Voar como pássaros.

- Sim. - Sorria embevecida, olhos alucinados, extasiados. - Voar como pássaros. Juntos...para sempre. - Entrelaçara sua mão a dele, procurando por seus olhos agora levemente embaçados, a boca entreaberta, a cabeça que pendia para a direita, as mãos grandes enrugadas sobre as coxas, as grossas sobrancelhas e as pálpebras ligeiramente violáceas provocavam nela um terrível sentimento de desesperança. Tentara sorrir ao dizer. - Dois para sim, um para não, Enzo. Consegue me ouvir? Eu sei que sim.

- Ele não está aqui, Celeste.

- Me deixe em paz! O que quer de mim??? - Lançava um olhar angustiante pelo interior do automóvel agora tomado pela densa fumaça que os envolvia, acolhendo-os como mãos invisíveis e afáveis. Lá fora, um súbito vento fazia turbilhonar as folhas secas num intenso redemoinho de poeira que seguia direto ao precipício. Parecia querer indicar à Celeste, vendo-a relutante, o caminho a tomar. - Quando surgiu em nossas vidas!? O que quer com minha filha!? Por que não nos deixa em paz???

- Muitas perguntas ao mesmo tempo, Celeste. - Sua voz era grave e atemporal. - Basta saber que a conheço muito antes dela ser quem parece ser. E é esse lado obscuro que me pertence.

- Não, senhor! - Falara entre os dentes, sentindo o peito espremido, um aperto, o pulso forte e uma dormência que subia pelos dedos da mão esquerda. Ainda assim tivera força em confrontá-lo. - Ela pertence ao Criador e o meu neto também! Não ouse tocar nela. - Os pelos no dorso dos braços de Celeste estavam arrepiados quando o ouvira gargalhar maliciosamente.

- Tenha dó, Celeste. Mencionar o nome d'Ele quando está prestes a renegá-Lo! Vcs humanos são desprezíveis. - Ela se afastara, instintivamente do encosto do banco quando sentira um estranho calafrio em seu couro cabeludo como se algo a estivesse tocando. - Não se preocupe. Não farei mal algum a ela tampouco ao seu filho. Eles me são preciosos e úteis, vivos.

- Vc não vai conseguir o que quer. - Ela sussurrara, com os olhos fora de foco, distantes dali. Havia inclinado a cabeça e juntado as mãos como que em oração, com os dedos encostados nos lábios. - Não. Não vai. - Confirmara, com um lento sorriso que se formava em seu rosto transfigurado. - Eu vejo...ela nunca será sua.

- Veremos. - A voz replicara, insidiosa. - Uma pena vc não estar aqui para reconhecer seu erro.

- De onde estiver, eu protegerei os meus. - Afrontara a densa nuvem negra que pairava sobre a cabeça de Enzo, e com a voz baixa e fria, tomara para si as mãos inertes de seu homem, com suas próprias mãos quentes e trêmulas. Num gesto desamparado de carência e saudades, afagara seu rosto com as mãos dele, ásperas e ternas. O rosto dele apertado contra o dela. Ela soluçava, aconchegando-o nos braços e apenas cobrira-o de beijos. - Não me importo se não está aqui, meu amor. Mas ainda vive e, de onde estiver, está me ouvindo. Eu sei. Eu sinto...

- Ora, Celeste.

- Cale-se. - Ordenara à voz que se calara. - Voltara os olhos complacentes e ainda avermelhados aos olhos azuis dele notando, examinando seu rosto tranquilo, bonito de se olhar e suave ao toque. - Agora ouça com atenção. O que farei é de livre e espontânea vontade. É porque te amo tanto que...não faria sentido ser de outra forma. Desde que nos vimos no campus da faculdade, eu tive a certeza de que seria eterno. E será. Vivemos juntos e terminaremos juntos, meu grande amor. - Continuara com as lágrimas a deslizarem por seu rosto lívido, com os vestígios de um profundo desgaste físico e emocional. - Aonde vc for eu vou. Agora aperte minha mão. Vamos...me aceite como sua companheira nesta grande aventura. Como no filme que assistíamos em casa...- Ela fraquejara ao se lembrar das crianças espalhadas pela imensa cama do casal, as pipocas, a algazarra, os risos estridentes, as brigas entre Fernando e Giulia disputando sua atenção. - Com um hercúleo esforço, afugentara de sua mente exausta aquela visão de um passado que não mais voltaria e com a voz firme, perguntara-lhe, segurando as mãos dele. - Vamos viajar juntos? Vamos procurar a felicidade em outro lugar bem distante daqui? Duas para sim e uma para não, Vincenzo Tomazzini!

- Ele não pode se mover. - Uma voz rouca, raivosa ecoara entre as paredes do carro. - Estúpida!

- Duas para sim e uma para não, Enzo! Ouça a minha voz, amor! EU NÃO POSSO CONTINUAR SOZINHA! ME DÊ UM SINAL! UM SINAL! - Mergulharam em um silêncio sepulcral até que ela sentira, de maneira lenta e suave, a mão esquerda dele comprimindo a sua. Um toque seguido de outro. Fracos, distintos e inegáveis. - EU SABIA! - Ela o abraçara, sentindo falta de seus braços ao redor de sua cintura. Aquele abraço forte que a protegia jamais seria sentido novamente. Chorava em seu pescoço, sentia seu cheirinho de talco de bebê e quase enlouquecera ao pensar que seria pela última vez.

- Desista. Deixe-o sozinho...

- PRO INFERNO! - A raiva, o horror, as saudades, o amor, a culpa, o medo, a loucura misturavam-se, mesclando-se uns aos outros, impelindo-a, impulsionando-a, fortalecendo-a quando pisara fundo no acelerador logo após virar a chave na ignição. Esticara drasticamente os braços, recostando-se ao banco e dera um risada escrachada quando ouvira a voz amaldiçoando seus descendentes. - EU NÃO TE OUÇO. EU NÃO TE VEJO. VC NÃO EXISTE! - Acelerava, fazendo os pneus levantarem poeira que embaçava o caminho à sua frente. Melhor assim, pensara mantendo a velocidade e um bizarro sorriso no rosto ao vislumbrar a imensidão que a cercava. O azul profundo do céu contrastava com o verde intenso da vegetação que vicejava, agarrada às grandes pedras rochosas banhadas pelo sol que ofuscava-lhe a visão. Soltara, enfim, as mãos do volante quando cruzara a linha onde terminava a estrada e, segurando firme a mão dele, sentira seu corpo ser impulsionado para cima desgrudando-se do assento. Pensara em estar num parque de diversões, ao lado do filho sempre inconsequente e destemido, numa íngreme descida de uma gigantesca montanha-russa. Não sentira medo. A mão dele entre a sua a acalmava enquanto a ponta do Jaguar mergulhava, livre, sem barreiras, no desfiladeiro. - Como pássaros...- Murmurou, de olhos bem abertos, sentindo-se pressionada contra o encosto do banco de couro. Ocorrera-lhe que seu coração estava prestes a parar porque batia no peito com violência. Quisera ver pela última vez o rosto dele, mas a força do vento contra seu rosto não lhe permitia mover um músculo sequer. Então é assim que acaba? Eu deixei a porta aberta? Apaguei o fogo antes de sair de casa? De onde surgiu a mulher de cabelos de fogo? Talvez não seja tão má assim. Giulinha ainda dorme? Senhor, não a deixe morrer. Foi culpa minha. Proteja meu neto e meu filho. Uau! Daqui o mar é tão verde! As gaivotas...tão lindas! Ai...meu coração...amor...tenho medo! Fernando já acordou para a escola? O enxoval ainda não está pronto. Há tanto o que fazer. Preciso buscar o vestido de noiva. Giulia, meu anjo. Eu não quero morrer. Deus...mamãe! Tenho medo. Me perdoa, Pai! Enzo...te amo. Não! Não quero! Fernando, meu filho! Filho...te amo. Senhor!!!! PERDÃO! Dói...

De encontro às pedras banhadas pelas ondas cristalinas, o carro explodira em fração de segundos. O fogo consumira os corpos do casal que se mantivera unido pelas mãos, mesmo após a queda de mais de dois mil metros de altura, o que causara espanto e comoção na equipe de busca que se empenhara em resgatar o pouco do que sobrara de Celeste e Enzo.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 15/11/2019
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