'O ÚLTIMO PENSAMENTO" - CAPÍTULO FINAL - SEGUNDA PARTE

Não acreditava no que ouvira dos que a acordaram de um sono bom. Sonhava com os tios e Fernando sob um sol ameno, nas areias brancas de um mar tão límpido que chegava a ver e a brincar com os peixinhos que beliscavam deliciosamente seus pés debaixo d'água. Acordou e pensara estar em um pesadelo. Não. Não. O que lhe diziam era mentira. Pura mentira de gente ruim e invejosa. Invejavam sua felicidade. Enfim, ela havia conquistado a felicidade e eles a queriam tomar dela. Seu amor voltaria da viagem de negócios e traria os pais consigo. Falara, explicara, gritara e, por fim, berrava afastando aqueles braços estranhos que a queriam segurar. Braços de um pesadelo que deveria acabar em algum momento.

Agitava-se perigosamente para quem estava prestes a dar à luz. Clamava por socorro e sua tia não aparecia no beiral da porta com aquele sorriso que iluminava as trevas, trazendo Luz à sua vida. Chamara, num gemido dolorido, pelo tio. Ele que sempre entrava em seu quarto, aos brados, capacete cobrindo-lhe o rosto, armadura em seu tórax proeminente e na mão direita, uma espada medieval pronto a lutar contra os monstros no armário ou embaixo da cama. Chamara por ele. Somente ele poderia, com seus braços fortes e aqueles olhos risonhos, afastar aquele desconhecido que a examinava com os olhos pesados e flácidos a meio-pau, esguio, com um venerável topete grisalho e um pescoço como caniço saindo do colarinho. O homem lhe pedia, com os olhos úmidos para que se acalmasse. Giulia não o compreendia. Por que ele chorava? Por que não a deixava sair dali, daquela cama que agora transformara-se em uma prisão, para lhe mostrar o quanto ele estaria enganado?

- Meus tios viajaram com o Fernando! - Exclamara, olhando-o recostada à cabeceira, olhos dilatados, atônitos, a boca entreaberta, a respiração ofegante. - Ele volta amanhã. Isso é um engano. Vcs estão loucos. Isso é um engano. Espere! - Ela dera um risinho histérico enquanto suas mãos aflitas se apoiavam nos ombros do homem complacente. - Eu juro! Eles falaram comigo pelo telefone. Eu os ouvi. Falaram que fariam uma viagem longa...- Hesitara e ao se lembrar do tom melancólico da voz de Celeste em seu sonho lúcido, da dor que sentira ao ouvir seu chamado, mudara o rumo da conversa. - Fernando! - Falara numa excitação nervosa. - Fernando volta amanhã! Ele vai explicar tudo pro senhor. Por favor, me deixa sair ....o que é isso??? - Ela dera dois passos para trás apontando o indicador na direção da mão do homem escondida atrás de si. Seu olhar aterrorizado quase o fizera desistir. Doutor Alexandre, o médico da família, o mesmo que traria o neto dos amigos mortos ao mundo estava ali, ao seu lado e jurou para si mesmo, cuidar da filha e do neto, em memória da amizade que o unira àquela família que, inexplicavelmente, desmoronava diante de seus olhos. - ME OUÇA! ELES ESTÃO VIVOS! EU FALEI COM ELES! FALEI! FALEI! O que tem aí atrás? Não...não faz isso. Meu filho...- Dissera ela para ele com a voz abafada. Ela estendera a mão para alcançar o abajur. Seria capaz de qualquer coisa para defender seu filho. Foi quando ele deu meia-volta e agira com rapidez. Ela chegou a ver a seringa erguida. A agulha penetrara no seu braço no mesmo instante. Mas ela já estava caindo de lado, como se não tivesse pernas. Em segundos, Matheus, o amigo valente de Fernando, a amparou em seus braços fortes. O abajur virou e caíra no chão. Giulia, antes de perder os sentidos, olhara direto para o fragmento pálido e afiado da lâmpada quebrada. - Quebrou...- Arquejara antes de afundar a cabeça no travesseiro,sucumbindo às trevas.

***

Caminhava por entre os jazigos, as covas abertas, a terra escura e úmida. Os retratos dos mortos com seus rostos tristes em molduras envelhecidas. Protegia com os braços cruzados o ventre, os olhos cismados, inchados de tanto chorar. Vestia seu camisolão branca, comprido, com mangas bufantes porque sabia que seus tios a adoravam. Faria uma surpresa ao tio, chamando-o por "Heatcliff". Ele sempre a respondia e a encontrava onde quer que estivesse escondida nos cômodos da Casa Lilás. Ele viria ao seu encontro agora. Pararia tudo o que estivesse fazendo e correria aos seus braços.

- Acho que ele não vai me pegar no colo desta vez. Estou mais pesada. Muito mais! - Pensara rindo de si mesma. - Certamente estão falando de vc, meu filho. Que estátuas tristes! Por que vieram pra cá? O céu tá tão escuro...vai chover. - Sua mão circundava a enorme a barriga enquanto ela se desviava dos vasos com flores murchas ou se obrigava a ignorar os espectros grudados aos seus restos mortais. - Eles devem estar com saudades. A tia me disse ontem que estava morrendo de saudades...- Seus soluços vieram como algo caindo escada abaixo, seu rosto tenso de dor. Estacara, de chofre, diante de um homem peculiar. Não era mau porque não sentira medo e seus pelos não se arrepiaram. Mas era estranho. Ah! Isso era! Fumava um charuto e a fumaça que ele baforava encobria-lhe quase que totalmente o rosto sem pele. Havia somente ossos em seu rosto e por seus olhos amarelos, mergulhados nas profundezas das cavidades orbitais, perpassavam laivos de desconfiança e um silencioso aviso de que ela deveria tomar cuidado, pois estava em terreno ardiloso. Ela não vira seu cabelos porque ele estava de capuz. Um capuz negro e embaçado pela espessa fumaça. Seu sorriso era feio conquanto não lhe inspirasse receio. Um sorriso sem lábios, ela pensara, tão atônita quanto perdida. Usara de telepatia e exultara quando ele respondera sua pergunta com uma voz soturna, rouca e estranhamente serena.

- Eles estão ali. - A figura sombria erguera lentamente o braço coberta pela túnica escura. Apontava-o em direção a uma sala onde havia choros e velas. - Vc não deveria estar aqui. Corre perigo, menina. Vc sabe disso?

- Não, senhor. - Respondera-lhe reverente. - "Às vezes, eles são feios por fora. Só por fora. Mas possuem um bom coração. E vc precisa respeitar essas entidades e os que já partiram também. Um dia, partiremos também. Vc não gostaria de ser respeitada depois de morta?", as palavras de Celeste ecoaram em sua mente febril enquanto sentia-se hipnotizada por aqueles olhos flamejantes, incisivos e preocupados. - Do que o senhor tá falando? Eu preciso encontrar os meus tios e sair daqui, sabe? Meu marido...- Dera um risinho a contragosto. - Bem...ele não é ainda meu marido, mas já...CÉUS! - Levara as mãos aos cabelos em desalinho. - É no sábado! Nosso casamento! - Olhava para o Homem-Caveira como a lhe dar satisfações. - Nosso casamento é depois de amanhã e eu ainda não peguei meu vestido. Por Deus! Me ajude a tirar eles daqui. Eu vou com a tia pegar o vestido! O senhor pode me levar até eles? É que...tenho medo.

- Posso. Posso sim. Aqui dentro, quem manda sou eu. Aquele que te procura não pode entrar aqui. Eu não vou deixar.

- O homem que me procura? - Replicara, de mãos dadas a ele. Caminhavam e conversavam como bons e velhos amigos. - Quem é esse? E por que eu não consigo ver o senhor que pensa? Não há nada aí dentro. - A figura movera a boca e aquilo pareceu à Giulia com um sorriso.

- Não vê porque já não tenho memórias. Estou aqui já faz tempo. Aqui dentro, eu posso te proteger. Lá fora...- Seus olhos se encontraram e Giulia jurou ter visto um lampejo de piedade nos olhos fundos onde as chamas de uma vela bruxuleavam impacientes. - O que fez pra ele te querer tanto? O que fizeram contigo, filha?

- Não...Não chora. - Gemera, secando uma lágrima com a ponta de seu dedo que deslizava no rosto dele. É osso mesmo! Como pode??? - O senhor está rindo de mim? - Ele assentira com a cabeça, retirando o charuto do canto da boca. - Eu preciso contar pra tia! - Exultara esquecida de tudo. De onde estava, do que ouvira. Alheia à realidade, mergulhava no mundo obscuro da insanidade. - Ela não vai acreditar que conversei com o senhor!! Vem comigo! - Arregalava os olhos vívidos, puxando-o pelo braço, a mão esquelética, dedos longos e ágeis. - Venha!

- Seu nome é Giulia? - Afirmara, numa pergunta retórica. Ela entusiasmada, assentira com a cabeça e um sorriso infantil. Como sabe??? - Vc lê mentes. Eu também. - Respondera-lhe com ternura e como não houvesse mais tempo a perder, disparou sem rodeios. - Escute, Giulia. - Ela franzira a testa, desconfiada. - Não posso te proteger dele. Seus tios também não poderão...

- Podem sim! Estão...

- Não vá lá! Volte pra casa. Existe um homem bom que cuida da saúde dos outros. Ele vai te ajudar.

- Ah...- Arquejara angustiada, revirando os olhos. - Esse aí é o doutor Alexandre. Ele me deu uma injeção ontem e eu dormi feito uma pedra. Por causa dele, meus tios estão me esperando há horas. Não gosto dele.Não mesmo. Se ele entrar por uma porta, eu saio pela outra. E tem mais...

- Giulia! - Seu tom de voz grave assustara Giulia que parava de falar pelos cotovelos. - Se cruzar as porteiras sem ele...

- Não se preocupe! - Gritara distante dele. - Eu estarei bem. Vou levar meus tios pra casa. - Acenara-lhe com o braço esticado, a mão solta, leve. Um sorriso de gratidão nos lábios. - Obrigada por tudo! Jamais o esquecerei! - Os que a viam, julgavam-na louca conversando com o vento. Giulia o vira desaparecer como areia que escorre por entre os dedos. Ouvira-lhe seu último pensamento. - "Não cruze as porteiras sozinha" e, então, sentira um arrepio a lhe percorrer a medula espinhal quando voltara os olhos agora assombrados, à porta.

***

Giulia, sentia todo o peso do corpo de seu filho que parecia chorar em seu útero que tremia. Talvez não fosse o útero, mas sim todas as fibras de seu corpo quando vislumbrara morcegos planando sobre a construção tosca com apenas uma porta por onde ela deveria entrar. Havia dezenas de rostos, ouvia vozes gritando, gemendo, orando. Ouvia choros, lamentos e murmúrios. Levara algum tempo até que seus pés inchados e descalços a obedecessem e seguissem adiante. Seus cabelos estavam desgrenhados, as faces transfiguradas, os olhos desesperançados. Puxava o ar pela boca e as mãos sempre pousadas sobre a barriga que agora apontava para baixo. Sunshine estava chegando e ela mostraria a ele que seus avós estavam vivos, contrariando o que ouvia daquela gente, naquele lugar sujo, cinza, com estátuas de anjos de pedras, tristes sempre a fitarem o céu. Não. Eles não estão lá, respondia aos anjinhos enquanto apoiava a mão na coxa fofinha de um deles. Eu vim aqui pra mostrar ao meu filho que os avós deles estão viajando e logo logo estarão de volta. Seus olhos vagos, o camisolão branco, os pés imundos emprestavam-lhe um ar fantasmagórico em meio ao mortos.

Alguém sufocara um grito em meio à multidão. "É ela!", cochichavam vendo a filha dos mortos a caminhar numa lentidão até o grande salão onde os corpos estavam sendo velados. As pessoas ficando à direita e à esquerda, aparentando medo, enquanto ela os olhava com horror e repulsa. Eles mentem, filho. Não liga pra eles. Mamãe tá aqui. Seu pai vai chegar logo e todos nós voltaremos pra casa juntos. Eu preciso...- Seu coração saltava perigosamente. Um acesso de tontura. Encolhera o corpo frágil como um bicho acuado sob os olhares perturbadores daquela gente que mal a conhecia. - Preciso encontrar a tia. Ela não sabe dizer não e fica dando conversa a essa gente. - Falava consigo mesma, num tom baixo, olhos que se comprimiam. Rira de si para consigo e logo notara aqueles olhares acusadores incidindo sobre sua pele, queimando-a.

- Parem de me olhar! - Dera um grito, num tom de súplica, girando o corpo, fitando-os com seus olhos acusadores, irados. Deslizava sob o piso frio e a camisola, antes alvíssima, vinha se arrastando na lama. Ela não se importava. Estava murmurando ou cantarolando.

De onde estava não conseguia ver os caixões. Estava junto à parede mais distante da segunda sala e à medida que a multidão barulhenta se movimentava vagarosamente aqui e ali, ela tivera um vislumbre da madeira bem lustrada, das alças prateadas e do cetim basteado na face interna da tampa aberta. Não! Não, não, não! Não é verdade! É mentira. Uma visão. Vou fechar os olhos e tudo vai sumir. Sumir. Agora...sai daqui. Sai! Sentira uma contração involuntária dos músculos do rosto, recuando, misturando-se aos outros.

Um após o outro aproximavam-se dos caixões e olhavam a mulher ali dentro. Todos queriam ver o que havia restado do casal de amantes que saltaram para a morte sem motivo aparente. Celeste mantivera, milagrosamente, o rosto intocável. Exceto por uma queimadura no lado direito da face onde o legista encontrara fragmentos de batom vermelho. O resto de seu corpo fora cuidadosamente escondido, coberto por rosas e margaridas, em tons de violeta, pelos funcionários da funerária que jamais haviam visto um corpo tão deformado, contorcido, consumido pelas chamas. Tiveram muito trabalho em dar um toque saudável às faces com aquela expressão aterrorizada com a qual Celeste chegara às suas mãos. O caixão de Enzo estava fechado. Não tivera a mesma sorte da esposa e companheira. Seu rosto bem como o corpo chegara ao necrotério reduzido, encolhido, quase do tamanho de uma criança. A criança que costumava ser em vida. Sobre a tampa reluzente do caixão em madeira envernizada, um lindo arranjo floral tão colorido quando o jardim de Celeste. Entre o casal inseparável, havia uma enorme vela da altura de um homem cuja chama bruxuleava ao sabor da brisa que vinha da janela aberta. De súbito, uma rajada de vento invadira a sala, soprando a vela que se apagara. Um grito agonizante, a mão que lhe cobria a boca e ela sufocara um soluço. Agarrara-se ao caixão da tia, pousando suas mãos trêmulas sobre aquele rosto sempre tão doce e agora, tão inexpressivo. Num gesto vigoroso e abrupto, afastara o véu de suas faces e enfiando de qualquer jeito os dedos por entre as flores com cheiro de defunto, alcançara-lhe a nuca, trazendo-a para si, recostando-a ao seu peito. Um gemido de dor fora ouvido por todos. Um uivo dilacerante, tão intenso que tocara o coração dos mais insensíveis.

- Tia, acorda. A gente precisa ir pra casa. Tia. - Cochichava ao seu ouvido. - Eles não sabem que a senhora tá cansada. Pensam que tá morta. - Ouviram seu riso histérico e nenhum dos presentes ousara interromper aquele momento, embora o médico temesse pela saúde da gestante. - Acorda! Tirem ela daqui! - Voltara os olhos à multidão que permanecia calada, contrita, perplexa. - TIREM ELA DAQUI! Ela vai sufocar. Vcs não entendem??? Tirem essas flores! Ela gosta de Lavanda e não dessas flores...Jesus! - Um clamor de protesto veio de todas as direções, com vagas expressões de indignação e piedade quando, por impulsividade, ela retirou as flores que cobriam o corpo da tia. Giulia agora via o que havia restado da pele clara e suave de sua tia. Nada poderia prepará-la para aquilo. O cheiro fétido de carne e ossos misturados à gordura invadira suas narinas chegando à sua mente. Através de um breve e acidental toque, relances da queda, dos últimos pensamentos, dos rochedos, das gaivotas, do mar cada vez mais próximo, a parada cardíaca antes mesmo do choque violento e rápido. O fogo, os baixos gemidos de uma dor lancinante de seu tio agarrado às ferragens, destroçado, queimado vivo, os olhos azuis demasiadamente abertos, a fumaça em seus pulmões, um grito engasgado em sua garganta, a mão que apertava a da esposa, o último suspiro. - Não, não, não, não...- Sua voz saíra num lamento tão doído! Seu corpo ora agarrava-se ao tio ora à tia, abraçando-se a esta e com a voz embargada subitamente e as lágrimas se avolumando nos enormes olhos castanho-esverdeado voltara a olhar para o tio. - Por quê? Por que, tia? Por que fugiram? Por que me deixaram aqui sozinha? Não me deixem. Voltem... - Sua voz entrecortada por soluços abalavam todo seu corpo. As pernas fraquejaram e Giulia quase caíra quando os braços do velho doutor a detiveram. - Quero morrer...- Ela falara baixinho, largando-se nas mãos dele. Empurrara-o para trás e num acesso de fúria, pusera-se entre os caixões. - POR QUE ME DEIXARAM? NÃO ME AMAVAM? Sunshine...tia. Tia! - Voltara a tocar em seu rosto. Beijar seus lábios. - Eu te amo, mãe...minha mãe. Como vou seguir agora sem a senhora? Diz. Quem vai me ajudar a cuidar do seu neto? Tio! - Com os punhos cerrados, socava a madeira, puxava o cadeado. - Abram isso aqui! Pelo amor de Deus! Ele precisa respirar! ABRAM! - De braços erguidos e o olhos injetados, investia contra os amigos mais chegados que falavam-lhe algo que ela não chegara a ouvir. Via seus lábios se movendo, os olhos comprimidos, as faces ruborizadas, mas não os entendia. - ELE VAI MORRER LÁ DENTRO! ABRAM! - Tio, seu filho vai chegar...seu filho. - Sussurrara abraçada à urna, exausta, ofegava e, num repente, erguera a cabeça, sentindo a sala diminuir e o ar lhe faltar. Com as mãos no peito, coração descompassado, falara baixinho. - Cadê o Fernando? Os pais dele estão...e ele não tá aqui! Cadê o meu Fernando??? - Correra até a porta, afastando com os braços estirados, em movimentos enfurecidos como as pás um catavento, separava os vivos dos mortos que se compraziam com seu sofrimento. Entre eles, havia alguém que a ajudaria se ainda tivesse força e vitalidade para alcançá-la quando a vira cruzar o batente da porta, aos gritos.

- FERNANDO! - Aos berros, chamava por ele. Clamava por sua ajuda, seu abraço, sua força. - Seus pais...seus pais, amor! Onde vc tá? NANDO! - Perdia-se entre os anjos de pedra, as velas acesas, as rosas mergulhadas em água podre nos jarros transparentes. Embrenhava-se pelas árvores e mausoléus tão célere que fora impossível ao velho amigo de Enzo acompanhar-lhe o passo. Explicaria tudo. Diria tudo se a tivesse alcançado. Lamentara a atitude dos que se calaram ou dos que nada fizeram por ajudarem a moça.Vagara pelas ruas do cemitério à sua procura, sem encontrá-la.

***

- Fernando, aparece. Eu tô aqui. Isso não é um sonho. Eu não tô inventando nem cantando. Ou estou? - Abrira-se diante dela um enorme espaço. Ouvira um barulho insuportável enquanto um homem viera em sua direção, pisando nos corpos dos outros. Giulia ofegava porque sabia estar diante de algum fenômeno e como estava fraca, frágil, simplesmente não tentou reagir. Apenas cerrara os olhos, cruzando os braços sobre o ventre, protegendo o filho, encolhendo-se, aguardando pelo pior. Havia vozes em toda sua volta, mas havia uma, uma voz clara, muda, cortante que pronunciara secamente assim que a fitara nos olhos.

- Fernando está morto.

- MENTIRA! NUNCA!

- Parei o que estava fazendo somente para te dar este aviso.

- É mentira! Ele tá viajando. Volta hoje.

- Não volta. Está morto como os pais. - Giulia sentira uma violenta convulsão e a dor num círculo ao redor das suas costelas. Tudo jorrou de dentro dela. Ela se voltara para um canto, tentando afastar-se do homem com a expressão dura, rancorosa. - Meu tempo aqui acabou. Recado dado. - Ela ficou ali parada, de olhos fechados. Ouvia alguém falando com ela num tom desagradável, debochado. Abrira os olhos espantados, fixando-se nas próprias mãos pousadas na lápide de um general falecido e enterrado no século passado. No entanto, ele ali permanecia, de pé, tão imponente quanto a sua patente. Seu corpo apodrecia e Giulia via os vermes a lhe corroerem os ossos, entrando pela boca, saindo pelos ouvidos. Ela se voltara para um canto, tentando se afastar daquele monstro tão podre quanto mau. Sua boca estava azeda e cheia de vômito, mas mantivera-se de pé apesar da pressão em seu baixo ventre. Calma, filho. Agora não! Por favor, agora não! Não...não agora...- Estava caindo, de volta à Escuridão.

Com um movimento repentino e violento, ela fora levantada do chão. Sentira um braço forte ao redor de sua cintura e alguém de uma força enorme que a tomava em seus braços.

- Meu Deus! - Dissera-lhe com um pequeno sobressalto e antes que pudesse raciocinar ou começar a resistir, ela reconhecera o Homem-Caveira que agora a fitava com uma doce rispidez.

- Volte pra casa com o homem de jaleco! - Ordenara-lhe severamente. - Eu te disse que aqui dentro eu posso te proteger. Lá fora, não!

- Ei! - Ela se voltara para ele, mas a criatura já estava seguindo adiante e a multidão que pranteava outros mortos praticamente o havia engolido. - Me ajuda! Encontra o Fernando. - Perdera-o de vista. - Meu Fernando não tá morto. Eu sei. Eu sinto. Eu acho que está, Giulia. Vc sabe. - Não. Eu não tô ouvindo vc. Eu não ouço. Eu não ouço. Eu não ouço. Ouve sim. Não se medicou. Não se curou. Então me aguente. - Vai embora. Meu filho...me ajuda. Eu sei. Eu sei. Vai nascer. Vc só me arranja problema. Desde criança. Não sei como ainda te aturo. Meus tios. Chama a tia. Giulia. Vc sabe. - Não. É um sonho. Vou voltar pra casa e eles vão estar me esperando como sempre. Não chore, Giulia. Não. Não agora. Não aqui. É perigoso! - Quero meu tio...- Ela choramingou em frente à entrada do cemitério. - Fernando...não morreu. Não tem corpo. Não tem. Eu vi. ELE NÃO TÁ LÁ! - Giulia, olha lá o tal do médico! Vamos! Ele tá te chamando! Ele vai te ajudar. - Não! - Exclamara colérica, enjoada, com a boca azeda, os olhos avermelhados, a roupa imunda, os pés arranhados, joelhos lanhados. - Não quero ir com ele! Não corre dele, sua burra! Me ouve uma vez na vida. - PRO INFERNO! - Giulia, meu bem, vc está assustando os pedestres. Eles pensam que vc é louca. Não é divertido? - Cadê a Jezebel??? - Estacara num repente. Seguia na direção contrária ao carro do senhor que acenava-lhe com a mão para fora da janela do motorista. - Cadê ela??? Estou aqui. Tsc, tsc, tsc. O que a falta do remédio lhe faz. - Eu te conheço. Não é a Jezebel! Eu quero a Jezebel de volta. Ela vai me ajudar a encontrar o Fernando. Fernando morreu, meu bem. De agora em diante, somos eu e vc, juntas...para sempre. - Vc é...- Hesitara, receosa antes de mencionar aquele nome. Ela estava presa há tempos.Trancafiada em uma jaula escura e fétida, algemada lá dentro do inconsciente de Giulia. Por que voltou, Morgana?, perguntara-lhe mentalmente, sentindo a brisa mansa, aos poucos, transformando-se em um vento cortante que esvoaçava seus cabelos desgrenhados. - Eu quero o meu Fernando! Não grite ou irão te internar, sua tola. Venha. Vamos embora daqui. - Não. Não vou. Meus tios...BURRA! ESTÃO MORTOS! ACABOU! È FINITA! HAI CAPITO???

Giulia continuava ali parada, com os punhos cerrados, a boca trêmula, os olhos encharcados de lágrimas e, talvez por se sentir devastadoramente só se deixou levar pelas vozes que agora a dominavam por completo. Já não havia mais a tia e seus conselhos ou a luz que a protegia do mal. Já não havia o tio guerreiro empunhando sua espada azul, flamejante, ou seu amor que, num abraço, a libertaria das forças sombrias que não a permitiram ouvir os gritos do pobre senhor que, com a ajuda de muletas, ainda tentara alcançá-la, cruzando a rua apinhada de carros e ônibus num tráfego intenso. Desistira Doutor Alexandre, momentaneamente. Assim que ela estiver em casa, eu conto tudo, ele pensara com um sorriso confiante, erguendo os olhos bondosos aos Céus. - Que o Senhor a proteja.

****

- Pra onde a gente tá indo? Quero ir pra casa. Vc não tem mais casa, meu bem. Agora só tem a mim. Vamos! Acene para o táxi. Vamos! Muito bem. Entre e diga a ele o destino. - Que destino???

- Senhora? - O taxista a fitara desconfiado através do retrovisor. Compadecera-se, de imediato, da figura abatida e desnorteada no banco do passageiro. - Pra onde?

- Siga adiante, meu bem! - Ele a vira piscar sedutoramente e um sorriso malicioso estampara-se no rosto másculo do motorista. - Eu te digo tudo. Tudo o que quiser saber eu te direi. Continue! - Fizera um ligeiro gesto com a mão e o seu corpo se movia com lascívia no assento. - Olhe para frente, querido! Não quer nos matar a todos. Quer? - Giulia o vira sorrir. Ouvira seus pensamentos devassos e nada pudera dizer ou fazer. Entregava-se, derrotada. Pensava no filho. Guardava sua energia para salvá-lo das Trevas que os abraçava dentro daquele carro. Seguiriam em direção às montanhas ou seja lá o que Morgana havia dito em italiano. - Comporte-se, querido e eu te darei um presentinho.

- Grávida!? - Ele a fitara ao volante, intrigado e já excitado.

- E por que não, amore??? Olhe pra frente! - "Imbecille!"

***

Não soubera como fora parar ali, deitada sobre a grama alta, sob um céu estrelado. Enxugara o rosto úmido e umedecera a boca seca. Estava com fome e com sede e seu corpo todo doía. Ouvia o canto dos ventos que sopravam em todas as direções. Sentira a presença de algo que a afagava com carinho quando se julgava sozinha no mundo. Ouvira seu nome num murmúrio, erguendo-se com dificuldade. Pusera de pé. Adentrara no nevoeiro sem enxergar as árvores nem o caminho do bosque. Avançara entre as moitas sem medo através da cortina branca, conduzida pela lua cheia que clareava o caminho. Pensara estar sonhando e que dentro do sonho, descobriria seus tios e os traria de volta ao mundo dos vivos. Recusava-se a crer no que vira. Recusava a crer que naquele dia: o mais triste de sua vida. O nevoeiro se desvanecia passo a passo, metro a metro e a água do mar cantava com tranquilidade a alguns minutos dela. Aspirou a longos haustos o ar puro da relva verdejante e do infinito oceano, logo ali adiante, a um passo de seus pés cansados, sujos e inchados. Lançara um olhar indulgente ao jardim triste e melancólico ao seu redor o que a fizera se lembrar de Celeste. Chorou sozinha sob a luz da lua. Implorou aos Céus que os devolvessem a ela, mas nada ouvira além do eco de sua voz fraca. Catara do chão, jabuticabas maduras espalhadas ao redor da árvore de copa baixa. Sorria por poder alcançar mais frutas dos galhos generosos.

- Gostosa filho? Vou pegar mais! - Comia com gosto e rapidez cuspindo, à distância, os caroços. - Seu pai e eu...- Cerrara os olhos, sentindo o gosto salgado das próprias lágrimas. Continuara, abrindo um sorriso nostálgico repleto de tristeza. - A gente competia, sabe? Pra ver quem cuspia mais longe e eu sempre ganhava! - Rira para logo voltar a chorar, embora continuasse a comer a fruta. Fizera uma careta ao sentir o leve amargor, mas logo aliviava as feições reconhecendo o doce sabor da polpa. - O caroço é azedo, amor e a tia disse que causa prisão de ventre. Ela não vai gostar que eu coma isso. Não mesmo. Mas...logo logo a gente vai voltar pra casa e seu pai vai ser obrigada a comprar uma caixa de sorvete de flocos com cobertura de chocolate. Ah...ele que reclame! Foi viajar e não me ligou um só momento. Ou será que ligou e eu estava dormindo???

- Ele morreu, Giulia. Todos se foram.

- Quem é...? Vai embora. Some daqui. Me deixa em paz. Meu filho precisa comer pra voltar pra casa. - Giulia desconhecia a voz aveludada, espanando o ar como quem espanta um inseto repugnante. - Vc não é Jezebel nem Morgana. Não pense que me engana!

- Não. Jamais. Não quero te enganar. Só quero que encontre a paz.

- Do que tá falando?

- Encontrar os três num mundo colorido e cheio de borboletas.

- Uau! Seria fantástico! Como posso fazer isso?

- Logo ali. Abra os braços e voe como um pássaro.

- Pular dali de cima??? - A boca entreaberta, os lábios escuros e borrados de um azul-arroxeado, as pernas cruzadas sob o ventre distendido emprestavam-lhe um ar de inocência, pureza. Confiante, pusera-se a se imaginar de volta ao lar. Um lar mais claro, mais alegre. Seu tio saudável, a tia sorridente e jovial, seu homem e aquelas covinhas encantadoras.

- Estão todos à sua espera.

- Não sei não...

- Estão. Eu os vi.

- Quando? Fernando estava lá? - Abrira seus olhos esperançosos com uma pitada de insanidade.

- Sim. Eu te disse que ele morreu.

- Como??? - Levara as mãos ao rosto, dando vazão a um pranto doloroso. - Ele não estava com os tios! - Fungara, assoando o nariz na barra do vestido sujo.

- Do coração. Vc sabe que ele tem...digo...tinha problemas no coração e nunca se tratou.

- Eu sei...- Suspirou, baixando a cabeça.

- Não aguentou o choque. Infarto fulminante.

- Como pode saber?

- Giulia, meu bem! Eu sei de tudo. Quer que te mostre?

- NÃO! NÃO! Chega...quero me encontrar com eles novamente! Como faço?

****

Caminhava a passos lentos até a beira do abismo. Deixou-se acariciar pela forte rajada de vento em seu rosto exaurido. Fixou os olhos extasiados na lua amarela que beijava o mar lá no horizonte. O som das águas no rochedo, o farfalhar das copas das árvores que dançavam à sua roda.

- É tudo tão lindo...- Inspirou, de olhos cerrados, as pontas dos pés que já ultrapassavam a linha imaginária entre a vida e a morte. Um espreguiçar de Sunshine a trouxera de volta. - Não posso! - Recuara um passo. - Ele merece viver!

- E quem vai sustentá-lo, Giulia? Morrerão de fome os dois. Ou prefere vender seu corpo em troca de comida?

- Não! Nunca! - Horrorizava-se ante a possibilidade de macular seu corpo agora santificado por ser abrigo de alguém tão iluminado. - Se eu mergulhar, serei considerada suicida? Eles não vão para o céu. - Balbuciara, de olhos voltados às pedras pontiagudas lá embaixo.

- Deus nos julga pela intenção. Ego te absolvo a peccatis tuis!

- Vc é um padre? Já fui há muito tempo...vamos. Eles te esperam.

- É...me esperam. - Envolvera seu filho num abraço forte e demorado. - Vc vai ficar bem, meu anjo. Eu prometo. Não vai doer. Mamãe vai encontrar o papai e nós três seremos felizes para sempre. - Sorrira à Constelação de Orion, lembrando-se da primeira vez em que fora beijada por Fernando aos quinze anos. - Ele me chamou de Bellatrix. - Suas feições se abrandaram. Seus braços se abriram, esticados como uma cruz humana. - Espere por mim, morena. Espere que eu chego já...- Cantarolou a canção com a qual ele a acalmava. - O Amor por vc, morena, faz a vontade...- Antes mesmo de terminar, sentira uma mão espalmada na altura da lombar. Um empurrão e seu corpo pendia para frente, reto, rígido, tensionado como os de uma bailarina. - Perdão, Senhor...

- AINDA NÃO! - Giulia despertara de seu transe quando, num solavanco, fora trazido de volta à terra. Arquejava de susto, as costas sobre o tapete verdejante, os olhos que se abriam lentamente ao ouvir aquela voz que reconhecia. Seu sangue fervera. Seus olhos lançavam faíscas quando a vira ali, de pé, com o tronco curvado, fitando-a com uma insondável expressão no rosto emoldurado pelos cabelos da cor do fogo. - Vc quase estraga tudo, sua tola! Dando ouvidos à escória.

- O que faz aqui, sua víbora???

- Eu salvei sua vida e vc ainda me xinga, amore?

As mãos lutavam para se firmarem no chão agora molhado pelo líquido amniótico. A bolsa se rompera num repente. O bebê estava prestes a vir ao mundo. Pensara Giulia que não teria momento pior para Sunshine nascer. Não deixaria que ela o tocasse. Não. Não mesmo! Nem pense! Um vapor quente agora atrapalhava seus pulmões enquanto ela procurava respirar arquejante. Mais um espasmo de dor a atingira e um jorro de sangue saíra dela. Aos soluços, deixara-se cair, tonta, incapaz de comandar os braços ou as pernas. Olhava fixamente para cima, esforçando-se para se levantar com os braços em movimentos desconexos e a escuridão borbulhante sobre ela. Exclamara com a voz fortíssima.

- Não toque em mim!!!

- Não há mais ninguém aqui! Vai ter que se contentar comigo! - A dor a envolvia num grande círculo de açoites, em ondas e mais ondas e ela sentia o sangue a jorrar dela e a água do útero, jorrando também sobre a terra úmida. Não quero morrer aqui, pensara num total desamparo. Olhava a mulher a quem odiava sem mesmo saber o porquê. Em meio às dores, ao desespero e à decepção por estar sozinha num momento tão especial, calculado e ansiado por Nando, compreendia que fora injusta ao duvidar das intenções daquela que estava ali, com ela, limpando seu corpo imundo, acalmando-a com palavras de conforto. - Continue respirando conforme te ensinaram no hospital. Isso. - A mulher lhe enviara um sorriso espontâneo e, por mais que agora se esforçasse em vê-la com bons olhos, sentira um arrepio ao fitar aqueles olhos eufóricos e cheios de júbilo. - Em breve, vcs terão atendimento.

- Vc ligou pra emergência??? - Berrava entre uma contração e outra, com as pernas abertas, os joelhos flexionados. E lá estava Orion a observar o nascimento de seu filho. - Se eu não sobreviver, salve meu filho, por favor.

- Hoje, meu amor, ninguém aqui vai morrer. - Afirmara, ajeitando-lhe a cabeça sobre um travesseiro improvisado com uma manta que trouxera dentro de seu carro. - Estão chegando...não tardarão. - Aquela expressão sombria fora a mesma que vira na ocasião em que seu tio, ainda vivo, havia se perdido. Giulia poderia jurar ter visto o mesmo brilho fanático naqueles olhos que agora voltavam-se para trás, sorrindo à escuridão da noite. - Ele chegou. - Anunciara num deleite. - Eu posso sentir...

- Dóooooi! Manda ele se apressar, pelo amor de Deus! Eu não vou...- Uma outra contração ainda mais forte e dolorosa. - Senhor, me ajuda.

- Ele não está aqui.

- Ah, não! Vc não vai me ajudar. - Declarou, num desalento. - Eu sabia!

- Por mim, eu a deixaria morrer, mas ele a quer viva. - Sua voz era fria e os olhos de um verde-esmeralda dardejavam quando Giulia pressentira aquela presença. Ele dera alguns passos em sua direção. Ela se preparou para não ter medo. Seu filho a protegeria de todo o mal. Afinal, era Luz. Recusando-se a ter medo, transformara-o em raiva. A raiva aumentara, mas era mais amarga e dolorosa do que qualquer outra raiva que já houvesse sentido. Chocada e furiosa, ela olhara com espanto para ele. - Como me achou? O que quer de mim?

- Quero-a para mim. - Dissera-o simplesmente com aquela voz suave, deliciosamente provocante e relaxante, agachando-se para olhá-la de frente. - Deixe-me cuidar de vc? De seu filho?

- Dóoi! - Do chão, ela erguera os braços implorando ajuda. Ele a tomara em seus braços fortes, os cabelos longos cobriam-lhe os ombros. O rosto perfeito, a pele fina e suave, um cheiro inebriante de algo doce e inigualável. - Me ponha no chão!

- No carro, querida. - Ele a deitara no confortável e extenso banco traseiro da lumosine preta. - Descanse. Seu filho nasce hoje e será tratado como um rei. E vc, será a minha rainha. - A dor era tão intensa que Giulia pensara estar delirando quando vira o homem elegante trajando terno de linho puro, olhos negros como as asas de um corvo e a voz hipnótica se dissolvendo numa enorme nuvem de trevas fervilhantes. Ela berrara, recostada na porta traseira daquele carro imenso e luxuoso. - Senhor, proteja meu filho. - Murmurara numa oração, enquanto vira, antes de perder os sentidos, os cabelos vermelho da mulher que, elegantemente, sentara-se à sua frente, observando-lhe com laivos de inveja em suas feições frias, enigmáticas. Giulia se voltou para a ruiva bem devagar e a encarou de frente.

- Eu vou morrer?

- Não. Agora, vc vai começar a viver, meu bem. Ele a quer para si. - Dera de ombros, olhando-a sobre a borda da taça de champanhe. - E ele sempre consegue o que quer. Sempre. Bem vinda às Sombras.

Um último arquejo de dor e ela tombara a cabeça para o lado e seu último pensamento pertencera ao amigo de infância, o amor de sua vida, o pai de seu filho.

***

A cama era larga e alta. O aço pintado de branco. As cobertas finas não impediam que o frio gerado pelo potente ar-condicionado central ligado por vinte quatro horas durante todos os dias, o dia inteiro congelasse seu corpo nu por debaixo dos lençóis ralos. O vai e vem ininterrupto dos funcionários era tão constante e rítmico que mais parecia uma coreografia. Uma cortina verde, claustrofóbica, que pendia de argolas, separava-o do paciente ao lado. Um desconhecido que atraíra a atenção dos médicos e enfermeiros e estagiários porque estava prestes a partir para o Outro Lado. Seus olhos ainda pesavam, atordoados. Sua respiração voltava, aos poucos, ao normal. Seu coração voltara a bater após duas paradas cardíacas. Dera trabalho à equipe médica quando chegara à emergência de um hospital no sul do país, carregado por Genaro, seu amigo Seu coração, fraco, não suportara a dor intensa. Falhou. Agora, monitorado, ligado a vários aparelhos conectados a ele por agulhas, eletrodos e uma incômoda sonda nasogástrica enfiada desde as narinas até o esôfago, retornava de um longo período de ausência. Um bipe contínuo que monitorava seus batimentos cardíacos o irritava, conquanto nada poderia superar o que sentia em seu coração. Daria seus dois braços pela volta dos pais. Lembrava-se de tudo agora. Chorou em silêncio enquanto a enfermeira aferia-lhe a pressão. Ele a vira sorrir de satisfação.

- O senhor está ótimo. Em breve, descerá ao quarto e, em poucos dias, poderá retornar à sua vida normal. - Estúpida, ele praguejara, arrependo-se logo em seguida. Ela fizera seu papel. Não lhe conhecia a tragédia pessoal. Nunca mais voltarei à minha vida normal, moça. Nunca mais. Me dá alguma coisa pra eu dormir pra sempre. Por favor! - agarrava-se ao pulso da estagiária que se assustara com sua impulsividade. - Deseja alguma coisa, Sr. Fernando? - Ele cerrara os olhos e ela, francamente comovida, vira suas lágrimas silenciosas lavarem aquele rosto bonito, jovem e profundamente debilitado. - Peça que eu trarei ao senhor. - Ele limitara-se a abanar a cabeça numa negativa, olhando fixamente para o teto rebaixado, quadriculado.

- O pobrezinho perdeu toda a família de uma só vez. - Ouvira o cochicho da enfermeira de plantão, a poucos metros de distância. - Um pedaço de mau caminho!

- Não fala assim, Geovanna. - Ambas, simultaneamente, voltaram os olhos piedosos ao leito dele. - Perder os pais, a esposa e o filho é devastador. Não sei se ele vai aguentar.

- Vai sim. - Afirmara Geovanna do alto de seus vinte anos de experiência. - Não dou dois meses pra ele encontrar outra, se casar, tem filho e refazer a vida. Já vi muitos como ele passarem por aqui.

- Deus te ouça.

Fernando as ouvia sem compreender se estava dormindo ou acordado. Estava fortemente sedado e, lá no fundo, jazia a esperança de que aquilo ali, dentro do hospital, fosse parte de um grande pesadelo. Acordaria. Sim! Acordaria em sua cama, beijaria a boca carnuda de Giulia, fariam amor antes de se levantarem e ela o repreenderia por não ter beijado o filho em sua barriga. Tomaria café com seus pais e ririam das piadas picantes de Enzo. Ele apreciaria o rosto ruborizado de sua mãe e lhe diria o quanto a ama. Ela o beijaria na testa e o abençoaria antes de partir, como o fizera durante todos os dias de sua vida. Seguraria seu filho no colo e o ensinaria a andar de bicicleta, sem rodinhas

Abrira os olhos úmidos e antes de fechá-los novamente e mergulhar na Escuridão, seu último pensamento fora para a amiga de infância, sua companheira, mulher e mãe de seus filhos.

- Giulia...eu sei que tá viva. Me espera, morena.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 17/11/2019
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