TRANSVIVÊNCIA DISTINTA - capítulo 02

Diante da cama do moribundo Décio, Jorge, que já estava transtornado com o que recém lhe ocorrera, ficou sem ação, quando o seu acompanhante anunciou que o doente era a chave para que pudesse continuar vivo. Como assim? Que papo ruim!

- Sua vida, até agora, tem sido um fiasco após outro. Dias e noites gastos em bobagens, e os únicos relacionamentos que mantém são com os parasitas que o ajudam a afundar, cada vez mais, na lama do desregramento, esgotando suas energias e evitando seu amadurecimento.

- Não tolero que me passem sermão!

- Você não tolera ser contrariado, mas não pode mais fugir ao seu destino, então terá que escolher continuar morrendo, a partir do momento em que o tirei do sufoco ou aceitar a missão que estou autorizado a lhe oferecer. Saudade da espinha de peixe?

Pensar em voltar a sentir asfixia provocou-lhe mal estar. Estava, porém, muito desconfiado de que aquele camarada iria aprontar alguma pra cima dele.

- Sei que não vou gostar, mas do que se trata?

- Terá que assumir a identidade de Décio e viver a vida dele.

- Que vida, se o coitado está morrendo?

- Se concordar com o que proponho, a doença refluirá, e a saúde voltará.

- Vou ser pobre como ele?

- Muito pobre.

- Pensei que você fosse um anjo, mas acho que está mais pra demônio.

- Não adianta elogiar. É sua última chance. Pega ou larga?

Voltar pra espinha de peixe e morrer, nem pensar. Tinha de encarar aquela encrenca.

- Tudo bem! O que acontece agora?

O personagem misterioso explicou que ele assumiria, imediatamente, a vida de Décio, e se recuperaria rapidamente, para que pudesse sair dali e retomar a lida, mas que se não seguisse um bom caminho, as dores voltariam e a morte não tardaria a chegar. Logo sentiu tudo girar e fechou os olhos, para abri-los já no corpo de Décio, olhando para seu “amigo” do outro mundo, que lhe sorria um sorriso meio safado (ao menos foi essa sua impressão).

- Continuarei a vê-lo?

- Talvez! Daqui pra frente é por sua conta.

Enquanto falava, a imagem do esquisitão se desfazia, ao mesmo tempo em que tudo em volta retomava o ritmo normal, se é que poderia ser descrito como normal o que ocorria naquele antro infecto. Jorge, quer dizer, Décio conseguiu levantar, ainda meio enfraquecido, e quando se apoiou na cama próxima, o doente que ali jazia lhe pediu água. Não havia nada em torno, então saiu à procura do que beber, pois também sentia sede. Andou até achar torneira comum, dessas de jardim. Precisava de um recipiente, por isso continuou andando, até achar uma jarra plástica, sobre a mesinha de um quarto, cuja porta estava aberta. Entrou e viu que a criança, na cama contígua, dormia, então resolveu levar o objeto, atender ao pedido que lhe havia sido feito e devolvê-lo em seguida. Porém, quando esticou o braço para pegá-lo, alguém o segurou, forte.

- Não, por favor. Preciso dessa água para aliviar a febre de minha filha.

Era mulher jovem, bonita, olhos grandes, feição crispada de angústia, vestida de modo simples, descabelada. Não demonstrava irritação, mas medo, apesar do gesto determinado.

- Desculpe-me, não tive intenção de me apropriar disso, apenas desejo levar um pouco de água a um senhor que parece estar com muita sede.

- Décio? É você mesmo? Como pode estar aqui, andando?

Nessa hora caiu a ficha e ele percebeu que assumira mesmo a identidade do outro rapaz, então teria de aprender a lidar com a nova situação, a começar daquele instante.

- Sou eu, mas estou confuso e não lembro de nada antes de agora.

- Não consigo acreditar! Falei com o médico há poucas horas e ele me disse, taxativamente, que até esta noite você não estaria mais entre nós.

- Ainda bem que ele errou, né?

Um silêncio constrangedor se instalou entre os dois.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 24/11/2019
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