TRANSVIVÊNCIA DISTINTA - capítulo 06
Décio (ex Jorge) não conseguia parar de chorar, ouvindo a confissão de Marina.
- Não imaginava que tivesse começado assim, nem que fosse tão triste para você.
- Vivíamos como amigos, em nossa união conjugal. Você não me procurava como mulher, não havia sexo entre nós, mas me tratava o melhor que podia, e se dedicava muito a Sara. Embora grata, eu sentia a ausência de um afeto mais íntimo. Chorava escondido.
- Que droga! Como pude ser tão alheio aos seus sentimentos? Você é tão carinhosa!
- Um dia, você foi trabalhar e não voltou mais.
- Não voltei mais? Como assim?
- Caiu doente no serviço e foi internado. Disseram ser problema grave no sangue. Agora que se recuperou, tenho medo de que se lembre que não me ama, realmente, e queira ir embora.
- Isso nunca vai acontecer! Aprendi a ver a vida de modo diferente, depois do apuro que passei, e acho que pus ordem na cabeça. Você e Sarita são meus tesouros e nada, nem ninguém, vai roubar isso de mim, sem passar sobre meu cadáver.
- Credo! Nunca mais repita isso. Venha, então, dormir aqui juntinho comigo!
Ela se aconchegou a seu corpo e adormeceu, mas ele ficou pensando em quanto tudo mudara. Não era a mesma pessoa de antes (não era mesmo, mas isso é outra história), e agora não pensava só em si mesmo, porque elas eram parte importante de seu mundo. Não entendia como mergulhara de cabeça naquela realidade; mas estava contentíssimo com o resultado.
De repente, veio-lhe à mente o Décio original, de quem assumira a vida, e imaginou o que lhe teria acontecido. Sentiu-se tomado por um redemoinho de luz e puxado pra outro local, aonde chegou meio tonto, mas logo distinguiu a figura do personagem que originara a toda a mudança.
- Vejo que ainda se lembra de mim, Jorge!
- Pensei que achasse melhor me chamar de Décio, agora.
- Não neste instante, porque causaria alguma confusão.
- Explique melhor!
- Trouxe-lhe uma visita. Este é Décio.
Jorge (Vamos tratá-los pelos nomes originais, para não confundir) não sabia o que dizer, e ficou esperando a reação do outro. Décio o abraçou e agradeceu o que fazia por Marina e Sara. Explicou que, embora amasse a filha, não sentia o mesmo por Marina. Obrigara-se a cuidar de ambas e prover-lhes o necessário, o que ficou cada vez mais difícil de conseguir.
- Mas estou vivendo sua vida, Décio!
- Agora é sua! Viva-a plenamente!
- E quanto à sua filha?
- Sinto falta dela, mas está melhor com você do que estava comigo.
- E o que acontece agora, fantasmão?
- Bom! Assim que você assumiu a vida de Décio, ele assumiu a sua.
- Peraí! Quer dizer que eu sou mandado pra favela e ele pra minha fortuna?
- Isso mesmo! É claro que tenho de ter sua aprovação pra isso.
- Minha aprovação? Quer que eu autorize essa loucura?
Se pudéssemos enxergar a situação íntima de Jorge, veríamos que sua cabeça girava, os nervos se agitavam e os sentimentos, uma montanha russa. Apesar da confusão mental e mesmo se sentindo despojado de bens que considerava ainda seus, não conseguia tomar a iniciativa de exigir a vida anterior de volta, com tudo que lhe pertencia. É verdade que na atual condição enfrentava dificuldades, mas as figuras da esposa e filha tomavam, completamente, sua mente. Nem pensar em perdê-las. Sentiu que elas valiam muito mais que a fortuna perdida.
O antigo Décio e o fantasmão olhavam para o antigo Jorge e se emocionavam.
Estavam, todos, irmanados naquela aventura insólita e transcendental.
E foi o tal fantasmão que rompeu o silêncio lacrimoso, dirigindo-se ao antigo Jorge.
- Quero ser o primeiro a lhe dar os parabéns.
- Parabéns? Por que?
- Enfim entendeu o que vale a pena. Enfim aprendeu a ser gente.