'MORGANA - BRECHAS'

BRECHAS

Seu pai costumava me dizer que pessoas boas não poderiam ser vítimas do Mal ou manipuladas por ele. Dizia que a Bondade consistia em um poderoso escudo contra o que ele considerava "A ausência do Bem". Sim, porque, seu pai não acreditava no Mal ou em seres devotados à maldade pela Eternidade. Seu pai não acreditava que o Criador houvesse dado vida a seres distintos. Indignava-se quando ouvia falar em anjos e demônios como criação de um mesmo Deus. Seu pai acreditava em Deus. Seu pai acreditava no Bem. Seu pai acreditava. Acreditava em pessoas boas. Seu pai acreditava em mim. E em pessoas boas.

Não em pessoas que jogam esmolas aos esfarrapados nas vielas somente por serem vistas e admiradas ou por acharem que, com isso, comprariam um espacinho no céu. Não. Seu pai se referia àquelas pessoas que lutavam contra as trevas que possuíam em si próprias. Seu pai se referia àqueles que reconheciam suas fraquezas, portanto, tornavam-se mais fortes a fim de enfrentá-las, dia após dia. Ele dizia que eu era uma delas. Uma Luz em sua vida. Uma Luz que se negava a brilhar por medo. Eu. Eu era a Luz da vida dele. Ele dizia.

Obviamente, ele não precisava se esforçar em nada. Nada mesmo. Sempre foi puro, bom, altruísta desde pequeno. Eu o via por entre os arbustos cuidando dos escravos e dos filhos dos escravos como se o fizesse aos brancos, amigos da família ou mesmo aos próprios pais. Seu pai foi um bom homem. O melhor homem que conheci em minha vida. Não houve e não haverá alguém como ele. Seu pai, meu esposo. O homem da minha vida.

'O Mal se aproxima através de brechas', advertia ele, fitando-me por sobre os óculos, mergulhado entre livros espalhados sobre a mesa de madeira que, de tão velha, rangia a cada vez em que ele apoiava seus cotovelos nela, cruzando as mãos abaixo do queixo. Ele me olhava como se estivesse vasculhando minha alma. Eu sorria, pois não o compreendia àquela época. 'Brechas'. Que tipo de brechas? Que diabos seriam as tais brechas?

- Pensamentos tortuosos. - Explica ele com a voz grave e sombria, erguendo-se vagarosamente, da cadeira. Ela range. Ele ri do meu riso estridente e quase histérico. Ele sabe como me atiçar, olhando-me daquele jeito, fingindo estar brincando de lobo mau, esgueirando-se por entre a mobília.

- NÃO SOU UMA CRIANÇA! - Grito entre risos, pois sei que o joguinho começou. - O jantar está no fogo! - Aviso-o, arremessando-lhe o que me vem à frente: um chinelo largado no chão. Por sorte não havia uma faca em seu lugar. - PARA! - Ele continua.

- Desejos de vingança, ódio, inveja, mesquinhez. - Solto o ar pela boca, estreito meus olhos, mordo o canto da boca. - Raiva, impaciência, agressão física. - Ele dá a volta em torno da mesa, deixando os óculos para trás. Sua camisa desalinhada é larga, as mangas bufantes e o decote em 'V' exalta seu tórax desenvolvido. Sua calça larga não esconde o que seu corpo sente naquele instante. Há volume entre suas pernas. Seus pés descalços me deixam louca. Arquejo, antes mesmo dele enumerar outros desvios morais, ronronando, movendo-se tão lenta e elegantemente como uma pantera negra em uma floresta sem clareiras. - Pensamentos devassos...lascivos. - Ergo minha sobrancelha, cravando as unhas no batente da porta. Rosno de raiva porque acabo de quebrar uma de minhas unhas tamanho o desejo que ele provoca em mim. Nossos filhos já estão crescidos e eu ainda me sinto uma adolescente perto dele. Isso é desprezível...incabível.

- Lascivos também!? - Exclamo, indignada, como se ele tivesse ameaçado furar meus olhos com seu abridor de cartas em metal tão afiado quanto uma espada. - Isso é ridículo! Então não devemos mais fazer amor!? - Dou um passo adiante, apoiando minhas mãos na cintura. - Não!? - Afronto-o. Ele encolhe os ombros. Finge estar resignado, abana a cabeça e, com mais um passo e os dentes à mostra, ele me alcança. - Então estou perdida. - Declaro arfante, baixando os olhos. Levo a mão à boca e, abafando meu riso, acuso - E vc também! - Do riso, passo a gargalhar porque o volume dentro de sua calça aumenta consideravelmente. Ele definitivamente está excitado e excitação leva ao sexo e sexo leva à lascívia. Logo...

- Somos todos pecadores. - Ele complementa, com a voz rouca contra minha boca seca. Sua língua a umedece. Eu me umedeço em partes que somente ele toca. - Somos dois pecadores com as portas escancaradas para o Mal, meu amor.

Sou dele. E sempre o serei. Ainda que tenha me deitado com dezenas...centenas de homens, serei somente dele pelo resto de minhas vidas. Meu corpo pertence à escória. Minha alma, a ele. O pai de vcs, meus filhos. Seu pai jamais acreditaria no que um demônio é capaz de fazer, pois ele não acreditava em demônios. Não. E ele me fez descrer deles também. No entanto, hoje sou dominada por um desses seres que, segundo seu pai, foram criados à imagem do Todo Poderoso. Talvez seu pai tenha razão. O deus que conheço é tão mau quanto Ga'al. É pior por permitir que ele continue a me tratar como me trata. É pior por permitir que me machuque e me engane.

Seu pai, de onde estiver, certamente passou a crer no Mal e no poder que ele possui. Seu pai, de onde estiver, não terá olhos para me enxergar. É tudo o que peço. É tudo o que imploro quando fito as estrelas no céu todas as noites antes de deitar em minha cama luxuosa e descansar meu corpo...tenho nojo de meu corpo!

Não permita que meu Giovanni saiba no que me tornei, peço às estrelas, apoiada à balaustrada que dá para o lindo jardim do palácio onde sou recebida para ser venerada como uma deusa pagã. Usada com um pano de chão imundo. É isso o que sou. Um pano de chão imundo com um coração que ainda bate por vc, meu anjo bom.

O Mal existe, Giovanni. Ele existe e tem nome: Ga'al.

Se estiver me ouvindo, submeto-me a ele, amor, somente para vingar a morte de nossos filhos. A sua morte e a minha. Meu corpo é deles, Giovanni. Il mio cuore è tuo.

***

O ar no salão está quente e se movimenta como a água numa panela antes de ferver. Encantada e assustada, estou de pé, imobilizada, imersa na fumaça. Os lustres se mexem, embora não emitam som. Há uma corrente de ar tão imperceptível que a custo eu a noto.

- Vc está aí? - Minha voz é tão baixa. Contraio os olhos, procurando ver formas e desenhos na escuridão. Minha voz está cada vez mais grave e longe de mim, quando repito o chamado. - Ga'al, o que faço? Tenho medo. Vc disse que ficaria ao meu lado. Disse que me salvaria...

- E não salvei? - A turbulência no ar se concentra e torna-se tão tensa quanto a voz dele. Eu não o vejo. Apenas o ouço bem próximo a mim. O ar se aquece. A turbulência sombria está cada vez mais densa como uma enorme teia de aranha numa corrente de ar. Estou com medo, embora eu sinta seu calor reconfortante ao meu redor. É tão acolhedor. Havia tantos que me odiavam há bem pouco tempo, desejando minha morte, gritando, urrando meu nome com tanto ódio e rancor que, sentir seu afago me traz um pouco de alívio. Estou só neste mundo desde que fora resgatada por Ga'al. Parece ter sido há séculos. Não tenho certeza do tempo que me encontro aqui, neste salão, nesta mansão sem vida, sem móveis, sem habitantes. Esta mansão e eu temos muito em comum. Somos ocas. - Ga'al, apareça! - Suplico de braços abertos, olhando para os cristais do lustre logo acima de minha cabeça. Ainda que cobertos de poeira, são tão lindos! - Vc é meu amigo. Vc disse que seria meu amigo. - Digo entre soluços. Meu corpo todo se estremece porque tenho que perguntar. Preciso perguntar, mas não quero...não quero ouvir a resposta. Tenho medo. Muito medo do que ele possa responder. Não quero. - Vc o viu morrer?

- Sim. Eu já disse que sim. - Responde ele com ternura em sua voz. Uma voz interior que parece estar dentro da minha cabeça. - Perto do fim, ele chamou por seu nome. - Levo minha mão à boca do estômago, embora a dor venha da alma. Viajo até aquele dia em que o vi pela última vez. Revejo seu sorriso triste, suas mãos em meu rosto. Seus olhos inquietos. Quero dormir para sempre até que ele volte para mim. Inspiro pela boca repetidas vezes. Ga'al continua a narrar o que não quero mais ouvir. - E quando ele finalmente parou de respirar, jogaram seu corpo inerte sobre outros cadáveres, vítimas da Peste. - Tampo meus ouvidos com as palmas de minhas mãos. Será que ele não percebe que estou sofrendo? Que estou a um passo do fim?

O ar úmido e o sol nascendo lentamente lá fora. O jardim se enchendo de uma luminosidade que dava vida às árvores me fazem lembrar do nosso lar. Do nosso quintal onde corríamos atrás das crianças, escutando suas risadas estridentes, seus gritinhos eufóricos. Lembranças de uma vida feliz, agora, tão distante.

- Eu quero morrer... - Penso alto, cruzando meus braços sobre meu peito. Instintivamente, minhas mãos deslizam pelos meus braços porque necessito de proteção e da força de um outro alguém. Jamais estive sozinha em minha vida. Imagino Giovanni abraçando-me pelas costas. Suspiro. Subo as mãos e acaricio minha nuca e meus dedos resvalam em meus lóbulos. Era assim que ele costumava mostrar o quanto me amava, o quanto me entendia. - Não quero continuar sem ele. - Meu sussurro é quase que um pedido. Engulo em seco, livrando-me do nó em minha garganta. Sinto uma punhalada de dor. - Sei que está aqui. Por que se esconde? - Um silêncio prolongado. Um vago espanto e minha expressão muda. A ideia de não estar totalmente só provoca-me um sorriso. Sinto estar à beira da loucura, mas, sorrio. - Por que não o salvou? - Falo baixo, olhos distantes. Ouço seu riso e me enfureço. - Por que naquele dia terrível vc não o salvou!? - Exaspero-me. - Responda! Eu exijo! - Choro, caída sobre o piso lustroso. Observo as figuras que se formam com os pingos de minhas lágrimas. - Uma flor. - Digo, tocando com o indicador a pocinha d'água. - Giordana certamente veria uma flor aqui. - Fixo meus olhos úmidos no piso frio. - Ela ama flores, borboletas, fadas, gnomos...

- Amava. - Ele me interrompe. Há algo em sua voz que me aflige. - Ela amava.

- Ama! Ela está viva! VIVA! - Ergo-me, resoluta. Vasculho com os olhos o local. Há somente cortinas que se movem, em um balé encantador, espalhadas pelo salão, cobrindo as extensas janelas por onde a luz teima em entrar. - ELA.ESTÁ.VIVA! - Insisto, berrando e girando em torno de mim mesma.

- Acalme-se.

- NÃO! - Paro, de súbito, pois agora ele me segura pelo braço. Seus dedos são fortes, porém, seu toque é suave e também intenso. Quero parar de chorar, parar de me lembrar de tudo. De tudo o que tive e de tudo o que perdi, por nada. Pela inveja dos que nos odiavam. Odiavam nosso amor. - Vc deveria ter me deixado morrer na fogueira. - Lamento, cerrando os olhos, levando minha mão ao peito. Minha pulsação está perigosamente fora de controle. Estou tonta. As emoções, as lembranças, as saudades, o cheiro doce e exótico que ele exala. - Não quero viver! - Revolto-me. - Mate-me.

- Já não é mais vc quem escolhe, meu amor. - Contraio os olhos e posso ver mais uma vez a perturbação no ar. Enquanto ele me envolve como um véu que lentamente se enrola nos meus ombros e braços.

- Não entendo. - Replico, inocentemente.

- Entenderá. - Ele geme em meu ouvido. Estou ao seu lado há tanto tempo que perdi a noção das horas, do espaço e de mim mesma. Estou vestida. Uma longa camisola branca com mangas compridas e o tecido é fino e delicado...e transparente. Estou nua por baixo da roupa. Ele diz que não é uma questão de escolha e eu tento entender o que há de implícito em suas palavras. Ele é astuto. Disso eu me lembro. Ele me quer. Isso, eu sinto. - Agora somos só nós dois. - Diz ele roçando seu nariz em minha nuca. Se ainda pudesse vê-lo, estapearia sua face por conta de seu atrevimento...ou não.

- Não se aproxime! - Ouço o inevitável suspiro, tão eloquente de dor. Fecho meus olhos. Estou exausta. - Afaste-se! Sei o quer de mim.

- Como queira, amor. - Sua voz sibila enquanto penso, parada, em meio ao salão. - Vc tem tooodo o tempo do mundo. - Arrepio-me com o tom sarcástico em sua voz. Seu dedo toca em minha testa, bem no meio de minhas sobrancelhas e a última lembrança que guardo é a dos números contados de maneira decrescente, vagarosamente. - Vc é minha. - Ele sussurra e eu apago como uma vela.

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 20/12/2019
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