'MORGANA - UM RITUAL'

UM RITUAL

Quanto mais as árvores se agitam, quanto mais as folhas são açoitadas pela tempestade, com mais clareza eu repito para mim mesma:

- Continue. Não tenha medo. Vc não está só.

Stupida! Como o ser humano pode se enganar com tamanha facilidade quando está em desespero? Estava só em meio à floresta densa, guiada, tão somente, pelo brilho dourado da lua cheia e pelo farfalhar das asas de pequeninos seres que, agora, lembro-me com perfeição, tratar-se de fadas. As mesmas fadas que obedeciam Giordana e, por ela, eram reverenciadas. Sigo-as, sentindo-me uma tola. Mas continuo a seguir, porque não há como recuar. Estou em um daqueles momentos na vida em que se deve optar por matar ou morrer e, com a capacidade de raciocínio bastante afetada diante dos fatos a que fora submetida nos últimos dias, opto por matar antes de ser morta. Mesmo que depois, opte por me matar, logo em seguida. Quem sabe eu o encontre? O homem dos sonhos que, claramente, não está de acordo com o que estou prestes a fazer. Ele me disse. No sonho, é claro. Não disse exatamente. Não com palavras. Mas, me disse, ainda que não consiga ouvi-lo. O zumbido de um vento estúpido cisma em abafar sua voz sempre que nos encontramos. Cazzo di inferno! Ainda assim, ele me disse com um demorado olhar triste, melancólico e amoroso. Paro, em meio à mata somente para voltar a sentir seu toque e a paz que isso me traz. Já estou acostumada a sentir sua mão forte pousar em minha nuca enquanto seu polegar desliza, suavemente, até minha orelha, onde ele brinca com um sorriso infantil. São segundos. Segundos de intensa felicidade para que, num supetão, eu seja tragada de volta ao corpo, como em um pesadelo. Estou enlouquecendo porque acordada, vivo em um pesadelo e quando durmo, penso estar viva e bem desperta. Estou pelo avesso e, talvez, por isso, esteja aqui, parada, feito um tronco de uma das árvores que me cercam, cujas copas vergastadas pelo vento parecem tombar. Mas, são fortes e resistem. Penso ser como elas. Já passei por tantas tempestades. Já tombei por tantas vezes e sempre me ergo. Antes, havia uma mão amiga, amada a me oferecer ajuda. Havia alguém...um homem. Diabos! A realidade mistura-se com a fantasia em minha mente porque estou quase certa de que o homem dos sonhos chegou a existir. Chegou a tocar em meu rosto. Sinto...quero sentir que é real! Precisa ser real! Preciso de uma razão para continuar viva ou a certeza de que, morta, eu o encontrarei.

- Lilith! - Sussurro percorrendo com os olhos assombrados a mata à minha roda. Estou numa clareira e, apesar de não ter contato anterior - não que me lembre - com os elementais da forma como minha Giordana o tinha, estou certa de que eles estão aqui, pois as folhagens e arbustos se movem como que sacudidos. Ouço seus risinhos. Uns, sarcásticos. Outros, divertidos. Outros, arquejam, encantados. Com o quê, diabos!? Estou ensopada dos pés à cabeça. Meus cabelos lambidos, grudam-se ao meu rosto pálido. Meu camisolão está imundo com as barras, antes brancas, pesadas de tanto barro. Meu alforge pesa mais do que eu. Estou exausta, perdida, suja e com medo. E sozinha. - Ela deveria estar aqui. - Resmungo, semicerrando os olhos desconfiados. - Não deveria? - Não. É claro que não, sua parva! É preciso invocá-la e é exatamente, por este motivo que estamos aqui, não é mesmo? Concordo comigo mesma, pois não há outra alternativa quando se está só, cercada por duendes, gnomos, salamandras, dríades, fadas, faunos, sátiros, elfos e ela, que aguarda por meu chamado. Está mais do que na hora de me libertar daquele monstro devasso, insaciável, bruto que me escraviza quase da mesma forma como o padre porco o fazia. O que os separa são a beleza estupenda do maldito e seu poder - irritantemente irresistível - de sedução.

- O PADRE PORCO! - Sua figura me vem à mente. Gargalho, de chofre, dando tapinhas nas coxas, curvando-me para frente, com a mão na barriga. - Teve o que merecia. - digo, ainda rindo, diminuindo a intensidade à medida em que percebo o alarido que causo à minha volta com meu gestos intempestivos. Alguns deles são respeitosos. Outros, nem tanto. Não os vejo como minha filha os via, mas os sinto e sinto suas intenções. Enfim, essa porcaria de dom me serve para algo. Inspiro profundamente, soltando o ar pela boca. Não é hora para brincadeiras. Tenho um propósito. Um sério objetivo a cumprir. A chuva está cada vez mais fraca. Agora não passa de uma garoa que molha meu rosto. Bebo a água que escorre até meus lábios. Ouço as batidas aceleradas do meu coração. Posso jurar que meu coração bate em minha garganta de tão nervosa que me encontro. - Bem. - Digo, vacilante, com os punhos fechados ao longo do corpo trêmulo de frio e uma macabra expectação. - A lua está cheia, os elementais estão presentes...- Enumero as etapas do meu plano altamente elaborado em questão de minutos, encostando meu indicador direito em todos os dedos da mão esquerda até chegar ao mínimo. - E eu trouxe o cálice, conforme vc pediu. - Sufoco um soluço de pasmo quando uma brisa fria toca minha face. São dedos finos, delicados. Um vulto me circunda. E nada mais faço além de segurar, com força, a alça do alforge, aguardando por um sinal. Estou terrivelmente assustada. 'Queria tanto a companhia de Antonella aqui, ao meu lado', penso, desolada como uma criança perdida. Não, não!!! Com certeza, ela também desaprovaria o que farei daqui a segundos, pois já tirei da bolsa os objetos de que preciso para a conjuração.

São três da manhã. A chuva cessa, a lua resplandece no céu sem nuvens. O vento ruge e, ao longe, o uivo de um lobo indica que o momento é agora. 'Coragem!', incentivo-me enquanto agacho-me, deixando de lado a bolsa, ajoelhando-me na lama com o dorso curvado para frente, os cabelos que cismam cobrir meus olhos, dificultando minha tarefa que, compenetradamente, executo. Com as mãos em concha, enfurnadas na terra úmida, vou formando um grande círculo a começar direita para a esquerda. Sinto-me como os ponteiro que marca os minutos de um relógio, engatinhando para trás, vagarosamente, gemendo a cada naco de terra que atiro, sofregamente, atrás dos ombros. Retiro os fios de meu cabelo colado ao meu rosto, sujando-o de lama. Mascaro-me como uma guerreira pronta para o combate. Dou de ombros. Não estou aqui para ser apreciada. Quero-o morto. Longe de mim. Quero Ga'al longe de minha vida. Quero consertar um erro cometido há alguns anos, mas não sei como matar um morto - e isso soa patético - sem o auxílio de um dos demônios mais poderosos do qual ouvi falar.

Paro por um instante, apoiando-me em meus tornozelos. Olho para o céu, fitando as estrelas. Sinto a lama repuxar os músculos faciais. Sorrio assim mesmo, pois, daqui, as estrelas nunca me pareceram tão brilhantes. - Impeçam-me. - Imploro aos anjos e santos ou a quem quer que habite aquele lugar tão distante de mim. - Eu vou continuar. - Ameaço o Criador que parece nunca ter se lembrado de que existo. - Minto. - Murmuro com o coração dolorido, baixo os olhos culposos, macerando as mudas de plantas, jogadas ao meu redor, entre meus dedos. - Houve uma época em que Ele e eu nos dávamos bem. - Aspiro o cheiro peculiar do Alecrim, voltando ao meu lar. Estou profundamente triste e então, começo a divagar. - Uma época em que eu corria pelos campos, sorrindo, dançando e cantarolando canções em outro idioma, ao lado de meus filhos e...dele. Dele. Ele. - Seu nome está prestes a sair de minha boca. Aaah! Eu daria tudo para validar essa insuportável sensação de que havia alguém ao meu lado e de que não estou louca quando afirmo isso. - É uma questão de lógica! Se havia filhos. Havia um pai para eles. Eu não os fiz sozinha. - Continuo a cavar o círculo com minhas mãos afundadas na terra fofa, falando sozinha, cabelos desgrenhados, andando para trás, rindo e chorando ao mesmo tempo. Se algum sátiro lascivo me desejava, agora eles me teme. Va bene! - Havia um pai! - Exulto, levando as mãos negras ao peito. Mancho a camisola enquanto choro, curvada, apoiando os braços no chão e a cabeça entre eles, dentro do círculo. - Havia um pai. - Repito com a voz entrecortada por soluços. Meu corpo dói. Meu coração dói. Minha alma chora. Quero me afundar na lama e ser tragada pela terra até desaparecer por completo deste mundo. - Seu nome. Seu nome. Seu nome. - Ergo o rosto, enlameado, molhados por lágrimas abundantes, amargas. A saudade tem um nome. - DIGAM-ME SEU NOME! - Ergo os braços numa súplica. - NÃO QUERO MAIS NADA DE VCS. - Falo para o céu. - APENAS O NOME DO PAI DOS MEUS FILHOS! - Aguardo por um segundo. O tempo exato em que uma nuvem branquinha desliza sobre a superfície da lua. - O nome...- Repito, baixinho. - Era só isso que eu queria. - Choramingo, desiludida. Baixo os braços, cerro os olhos, os ombros caem. Baixo a cabeça. Uma onda de calor toma conta de meu corpo. Cravo as mãos na terra e sinto o ódio subir por meus braços até atingir meu coração. Abro os olhos, desmesuradamente, inflando as narinas. - Eu os odeio. - Rosno, entredentes.

****

Estou nua , dentro do círculo. Desenho, no centro do círculo, um símbolo que copiei do livro de capa preta que roubei de Antonella. Não faço ideia do que ele significa. Apenas o reproduzi com perfeição. Espero que Antonella me perdoe um dia. Este livro tem mais valor para mim do que para ela. Não há dúvida. Sei que ela e Vincenzo estão bem e isso aquece meu coração gelado.

Estou nua, dentro do círculo com um espelho em minhas mãos. Está frio e estou nua, o que não faz o menor sentido já que estou no meio da mata, cercada por seres lascivos. Por que tem de ser assim? Por que não me levam embora? POR QUE NÃO TIRAM A MINHA VIDA? - Estou exausta. - Deixem-me ver o homem dos sonhos. - Imploro, sabendo que não serei atendida. Algo me diz que ele é o pai de meus filhos. Fito-me no espelho. Grito, assustada com minha própria aparência. Se eu me encontrasse em uma esquina mal iluminada correria de mim mesma. Dou risos espremidos ao meu reflexo, embora saiba que aquele objeto não se destina a me refletir. De súbito, o medo. Baixo o espelho, virando sua face espelhada para baixo. Não quero continuar. Quero dormir em meu quarto limpo, com os lençóis cheirando à lavanda, deitada no peito de...- Por Baco! Quase me lembrei do nome dele! Que ódio! - Reviro os olhos, irritada. Abro a boca para falar e como as letras se negam a formar seu nome, eu a fecho novamente. - Inferno.

Com a ponta do indicador suja de lama, escrevo um 'Y' em minha testa. Para isso, volto a me fitar no espelho que treme em minhas mãos. O 'Y' sai torto. Dou de ombros. Ela vai saber que se trata de um 'Y'. Vai sim. Em meus mamilos, escrevo um 'W'; outro 'Y' em minha virilha. Este saiu perfeito. Finalizo com outro 'W' nos calcanhares. Pronto. Estou nua, suja, com frio , com medo e rabiscada como uma lousa escolar. Deitada sobre um lençol branco, dentro do círculo, eu me toco de forma íntima até chegar ao clímax. Sim. Eu sei que é terrivelmente perturbador, mas, Lilith se alimenta de sangue ou energia sexual e, como não pretendo me cortar ou ter relações sexuais com um sátiro ou fauno, lido com o que sei fazer de melhor...ou pior. Coloco meus fluídos sobre o símbolo no círculo e, então eu os percebo ao meu redor, curiosos, excitados. - A.fas.tem.se. - Fito os duendes, gnomos e outros seres masculinos com meus olhos flamejantes de ódio. Funciona porque eles retornam aos arbusto e, de lá, continuam a me observar.

Segundo o que li, meu corpo é o templo do Criador, logo, para invocar alguém que O odeia, devo profaná-lo, escrevendo em meu antebraço, o meu pior pecado. Receio não ter espaço suficiente para isso. Solto uma gargalhada histérica enquanto escrevo com o indicador, as palavras 'prostituta', 'puta', 'assassina' nos dois braços. Dessa forma, eu abro as portas para Lilith, sem antes desenhar símbolos em hebraico em meus peito, perto dos mamilos. Estou prestes a conjurá-la. Um súbito arrepio sacode meu corpo. Com a voz tímida, eu inicio, num tom baixo e inseguro.

- Vinde a mim, Lilith. - Pigarreio, após um acesso de tosse inoportuno. Recomponho-me, ajoelhada, erguendo o tronco desenhado. Imprimo força e determinação à minha voz quando declaro. - Vinde a mim, diante deste círculo e apareça em sua forma humana. - Imediatamente pego o espelho e olho bem no meio de meus olhos, sem piscar uma vez sequer. Ela está aqui. Sua presença é grandiosa e se espalha por toda a floresta como uma grande nuvem negra, suave e borbulhante. Não é à toa que é conhecida por sua devassidão e lascívia descomunais porque eu me sinto estranhamente excitada, desejando me tocar uma outra vez. Por Deus, o que há comigo? Contenho-me a custo e prossigo, ofegante. - Eu imploro que mate Ga'al! - Sinto o vento atingir meu rosto, esvoaçar meus cabelos, tocar o meu corpo de forma voluptuosa. Estou arquejante quando a ouço murmurar em meu ouvido.

- Repita o que quer.

- Desejo que a senhora mate Ga'al. Um ser que se diz...- Ela me interrompe, materializando-se diante de meus olhos abismados. Está nua e é belíssima como um quadro de Michelangelo, um pouco mais ousado. Seus olhos são negros. Totalmente negros sem pupilas ou íris e me fitam com um interesse sinistro. Como os de um homem para uma mulher. Engulo em seco e, perturbada com seu olhar, falo baixo. - Preciso de sua ajuda. Ele me faz mal. Eu o invoquei faz tempo para salvar a vida de meu...meu...minha...CASPITA! - Minha memória falha. Estapeio minha testa que estala. Ela sorri. Seus dentes são alvos e seu sorriso é repleto de luxúria. Espanto-me com meus próprios desejos que tento esconder. Ela é extremamente sedutora, até mesmo para mim que jamais pensei estar com uma mulher. Cubro os meus seios cruzando meus braços, sentindo-me invadida por seu olhar.

- O que tem para me oferecer em troca?

- Minha alma. - Disparo, atônita. Já estou no inferno e, quando morrer, certamente, haverá uma cadeira com meu nome à minha espera. Nada tenho a perder. - Ofereço minha alma. - Ratifico, engolindo em seco.

- Tem certeza de que quer ir adiante?

- Sim! - Afirmo, exaltada.

- Gosto disso...- Subitamente, sua mão toma meu queixo puxando-me para perto de sua boca carnuda, vermelha. Ela me beija com ardor e eu me deixo beijar. Num repente, ela some e eu, de olhos fechados, ainda ouço sua voz aveludada ecoar por entre as árvores. - Está feito. Aguarde-me.

Minha boca entreaberta ainda sente o gosto de seus lábios quentes. Meu coração dói por, talvez, perder a chance de me encontrar com o homem dos meus sonhos. Vou para o inferno e lá, de certo, não o encontrarei.

****

- Seu nome...seu nome...- Balbucio contra o travesseiro umedecido pelas lágrimas. - Diga seu nome. - Meus olhos estão pesados de sono e cansaço. Levei horas para tirar dos meus cabelos, unhas, seios, ventre e coxas a lama bem como os símbolos que se desmancharam na água, em tons de marrom, da banheira, escoando pelo ralo. Não havia rastros, pois eu queimei a camisola, espalhando suas cinzas ao vento. Ga'al não saberia de nada. Jamais. Não até ser morto. Céus. Até ser morto pela segunda vez. - Miserável. - Resmungo, afofando minha bochecha úmida no travesseiro. Espanto-me, abrindo os olhos. Uma cutucada nas minhas costas e eu rolo na cama. Ga'al está deitado de lado sobre um cotovelo, camisão de flanela branca, cara a cara comigo. Seu sorriso lindo e macabro antecede suas palavras.

- Ela continua bela como antes? Perguntou por mim?

Paraliso-me de pavor. Eles se conhecem? São amigos? Ela ainda está do meu lado?

Uma vez, ouvi dizer que o inferno é aqui, na Terra. Hoje, sei que é verdade.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 31/12/2019
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