'MORGANA - MEA CULPA'

MEA CULPA

Fecho meus olhos e deixo que o vento suave e inofensivo me afague o rosto, esfriando meus dedos escondidos dentro do manto vermelho, minha cabeça, o rosto salpicado de manchas vermelhas, encoberto por um capuz. Os archotes das vielas que se apagam com o vento e depois renascem como flores medonhas avisam-me do perigo iminente que me espera logo adiante, num grupo de aldeões fanáticos que procuram, a todo o custo, sem o uso do raciocínio, culpar aquele que trouxera - o que chamam de "A praga" - à cidade.

- A 'Peste Negra' retornou! - Vocifera um entre a multidão. Recuo dois passos temendo por minha integridade física, pois todos me fitam com os olhos acusadores. 'Não sou eu! Não é a Peste o que tenho!', penso num desespero e, embora nada tenha dito, meus olhos assustados mostram o horror que toma conta de mim quando os vejo caminhar, atabalhoados, em minha direção. O barulho fica mais intenso. O vento cresce e me rodeia como se quisesse me proteger da maldade humana e, depois, some.

- É a vagabunda que espalhou a Peste! - Exclama sibilante e cerrando os punhos, uma mulher de pele enrugada, avermelhada, lábios ressecados e cabelos desgrenhados que, certamente, não veem uma escova há séculos. Engulo em seco. Ela me fita com ódio em seus olhos pequeninos e brilhantes. - A meretriz está doente. Vejam! - De súbito, a risadaria estridente e descontrolada, mais outra e, por fim, uma muralha de barulho que sobe ao meu redor. Estou cercada por rostos patibulares, bocas retorcidas, dedos acusadores que apontam-me por algo que não fiz. Ou talvez, tenha feito.

- Idiotas! - Replico, indignada. - A Peste é transmitida por pulgas que infectam ratos. Não sou um rato tampouco uma pulga. - Afasto-me, receosa, de suas mãos que tocam o meu manto. - E não tenho esta doença. - Acrescento, baixando a cabeça, na intenção de passar pelo grupo reunido numa algazarra. 'Não sei o que tenho, mas não é a Peste', penso, tomada pela tristeza. Cerro meus olhos e os dias de devassidão voltam com tudo à minha mente. Deitava-me com todos, sem reservas e, se não o fizesse, Ga'al me obrigava a fazê-lo com requintes de crueldade e sadismo, presenciando os momentos de intimidade aos quais me submeti com os mesmos homens que, agora, me culpam por espalhar a sífilis entre a população daquele vilarejo. Não foi em mim que ela nasceu. Eu sou uma vítima! Assim como os que me julgam e me condenam! Eu tento falar. Tento gritar ou enxergar uma luz, mas os corpos se amontoam à minha roda, espremendo-me, gritando em meus ouvidos como se eu fosse surda e não os ouvisse a me insultar com palavras chulas...tão chulas quanto eu. Devo aceitar. Devo aceitar!? - AFASTEM-SE! - Ordeno, procurando imprimir calma à minha voz rouca. Repentinamente, uma mão afoita puxa meu capuz. Suas unhas afiadas como as de um falcão engancham-se nos fios de meu cabelo. - Tire a mão de mim! - Exaspero-me. Meu rosto manchado é exposto. Arquejo de expectação e, como se o Tempo parasse, meus olhos enxergam cada homem com quem me deitei. Eles estão ali, em meio à multidão enraivecida. Dentre eles, reconheço aquele que me contaminou. Eu o sinto. Eu posso sentir o seu pavor, a sua culpa mal disfarçada quando toco sutilmente em sua batina.

- Cardeal Ferretti...- Murmuro, desolada, ainda em dúvida. O Tempo volta a correr, célere. O cardeal recua enquanto eu grito por seu nome. Stupida! Como se ele fosse assumir a culpa e me salvar da fúria de um povo tosco, pobre, faminto, usurpado pelo poder dos fidalgos a quem me entreguei nos dias em que eu ainda era uma mulher desejada e invejada por aquelas que agora me cospem no rosto, zombando de mim. CRÁPULA COVARDE! Fuja! Que o inferno o encontre.

Praguejando, empurram-me de um lado para o outro. Cambaleante, tento passar pelo bloqueio esticando meus braços, fechando meus olhos, guiando-me pelas vozes irritantes das mulheres num frenesi dantesco. Acerto seus rostos girando vigorosamente meus braços como as pás de um catavento destrambelhado. Não vou morrer aqui! Não desta forma vil, entre porcos que me usaram e agora se encondem por debaixo das saias de suas esposas contaminadas. Recuso-me a sair apressada como um passarinho assustado, constrangida, humilhada. Giro de um lado para o outro à procura de um rosto amigo. Não o encontro. Tola. Não há amigos. Eu não os cultivei. Com raiva de mim mesma, reteso ainda mais os punhos, socando o que vejo à minha frente, amaldiçoando o dia em que o invoquei. Ga'al, o maldito. Vc me faz mal mesmo depois de morto. Nunca te perdoarei. Nunca. Eu me odeio por ter te invocado. Eu sequer me lembro porque te invoquei. - Que gente fedorenta! - Resmungo, sem temer ofendê-los. - Me deixem passar! - Ga'al! Espero que esteja sofrendo como eu! Seu verme maldito! Abro caminho através da multidão cerrada de homens e mulheres até quase tropeçar no pé de alguém e finalmente parar. Sinto uma mão tocar na barra de meu manto. Imediatamente um pouco de minha energia é sugada por aquele toque repleto de inveja, ira, desejos de vingança, cobiça. A raiva nasce um ponto abaixo de meu ventre e vem subindo como as lavas de um vulcão prestes a entrar em erupção. Estou tonta, mas preciso continuar. Abafada, tento respirar. PRECISO RESPIRAR! - Eu te odeio, Ga'al! - Grito afastando-os para os lados. Olhos ressabiados me fitam quando menciono seu nome. Uns se amontoam à esquerda. Outros, à direita. Um riso histérico sai de minha boca porque lembro-me de Moisés abrindo o Mar Vermelho. Aproveito-me do efeito paralisante que meu grito, seguido de uma estridente risada diabólica, causam em suas mentes crédulas e ignorantes. Eu os empurro, derrubando-os como as peças enfileiradas de um dominó. Tenho tanta força dentro de mim que, por instantes, sorrio, vitoriosa. Escapo da muralha claustrofóbica. Alcanço o centro da praça. A igreja pequenina parece abrir seus braços para mim. Como eu gostaria de acreditar que...'Deus...eu não queria. Ajude-me!', suplico, erguendo os olhos aos céus. Como sou contraditória! Invoco um ser que se disse um demônio para salvar o amor de minha vida. Não deu certo, pois ele está morto. Entrego minha alma à 'Rainha dos Condenados' a fim de matar o monstro a quem invoquei - que não era, de fato, um demônio - por estar convicta de que o Criador me deserdou. Estou entre seres diabólicos que me querem morta e, podendo invocar Lilith, imploro a ajuda d'Ele. Eu não me entendo. E, francamente, não há tempo para me compreender. Ainda que deseje a morte, não a quero agora. NÃO MESMO! - AAAI! - Grito, sentindo uma dor aguda em minha testa. Estou confusa, desnorteada. Filetes de sangue embaçam minha visão. O gosto metálico em minha boca. Meu cérebro custa a entender o que se passa. - Covardes! - Grito do alto da pedra. Sim. Cá estou eu, novamente, sobre uma pedra, assistindo-os, bem acima deles. Pobres coitados. Apiedo-me da sujeira que os cerca; dos rostinhos esquálidos, melequentos das crianças que sorriem para mim ou de mim. Não sei. Apenas as encaro, lembrando-me de meu Antoine. Ahhh....meus filhos. Tento e não consigo conter as lágrimas que brotam dos meus olhos como se caíssem de uma calha de chuva. Uma dor excruciante toma conta do meu peito. Num repente, arregalo meus olhos, assustada. Uma outra pedra e mais outra atingem diferentes partes de meu corpo. Quero chorar de dor. Preciso de alguém que me acolha. Quero chorar no colo de minha mãe, mas...ela me abandonou. Ela me vendeu ao padre que matei. Eu matei...eu matei. Eu mereço o castigo. Mas eu matei por um bom motivo. E há bons motivos para se matar alguém? Há sim! Ora bolas! É claro que há! Acordo de minhas reflexões, atingida pela última pedra que se choca contra minha têmpora direita com tanta força que caio, quase inconsciente. Encolho-me sobre a pedra. Sou um montinho vermelho cercada por eles que ainda me temem...e me odeiam. Eu não os culpo. A dor que sinto é tão aguda que mal consigo respirar. Não a dor da pedra que abre uma fenda por onde o líquido quente escorre na lateral de minha face. Não. Creio que me acostumei ao sofrimento. Sinto até que, sem ele, a vida não teria mais sentido. Não é essa a dor maior. A dor que dói, que massacra meu coração é a da solidão. Estou completa e devastadoramente sozinha sobre a face da Terra e não há quem me queira bem. Então, deitada na superfície áspera, fixo minha visão desfocada em uma criança. Não deve ter mais do que dois anos. Ela sorri para mim. Está se divertindo, inocentemente, entre os gritos e risos, sentada no ombro do pai. Minha nossa! Que tipo de pai traz uma criança para assistir a uma cena como esta!? Estúpido! Tire-o daqui! Ensine seu filho a amar, a respeitar o próximo! Ensine-o bons valores como o pai dos meus filhos o fazia. Giovanni jamais permitiria que Giordana estivesse aqui, diante do linchamento de uma mulher, em praça pública. NUNCA. - Tire-o daqui...- Articulo com a boca, sem emitir som algum. Meus olhos cruzam com os do pai da criança. Ele parece aturdido, confuso. Culpado. "Foi vc? Foi vc quem me contaminou?", pergunto em pensamento conquanto não espere resposta alguma. Como poderia esperar que um camponês pudesse ouvir meus pensamentos e respondê-los com a facilidade de meu Giovanni? Surpreendida, vejo assentir com a cabeça, num movimento lento, os olhos marejados e culposos. Penso em acusá-lo. Pior. Quero matá-lo com minhas próprias mãos, sufocando-o até a morte. Encontro os olhinhos castanhos e mansos de seu filho. Ergo meu tronco, cobrindo meu rosto. Não quero que me vejam chorar. Não posso destruir mais um lar. Ele não tem culpa. Não sabia que estava doente. Talvez, tenha sido contaminado por sua esposa infiel e, então, transmitido a mim. Talvez, o cardeal covarde que fugira com medo de se juntar a mim e ser apedrejado, tenha me contaminado e eu, desconhecendo a doença, entregue à promiscuidade, deitando-me com o homem que agora me fita com um misto de compaixão e súplica, tenha contaminado a esposa que contaminou o amante que contaminou a esposa dele. E eu sou culpada!? 'Vá embora e leve seu filho daqui', penso enquanto fixo meus olhos úmidos no homem de bom coração que um dia me implorou para aceitar suas moedas em troca de momentos de prazer.

- 'Guarde suas moedas para sua família.' - Eu disse a ele há muito tempo. - ' Com vc, deito-me de graça'.

Não foi de graça. Paguei um alto preço por meus desvios de conduta. Errei. Agora devo expiar meus erros. Apoio minhas mãos na pedra, ajoelhando-me. Ergo-me com dificuldade sob os gritos guturais que se espalham, ensandecidos, na escuridão iluminada por tochas cujas chamas bailam sedutoramente diante do meu olhar perdido. Trinco os dentes, apertando a base da palma de minhas mãos contra meus ouvidos, impedindo que o som medonho de suas vozes cheguem ao meu cérebro. 'Raciocinar. Tente raciocinar.' Uma voz interior, talvez minha intuição, fala comigo. E eu, calmamente a ouço. 'Use seu legado'. Uma voz profunda, sedutora, cheia de reverência reverbera em minha alma trazendo-me alívio e confiança em um momento de trevas. - Use o seu legado. - Repito, abobalhada como se estivesse em casa, a salvo de tudo e de todos.

Risos, gritos e berros de deboche. Gargalhadas e maldições e, antes da quinta pedra me atingir, elevo, sem pensar, minha mão direita, mantendo-a suspensa no ar por segundos. Estou tão perplexa quanto a plateia que arqueja de horror. Um silêncio sepulcral nos cerca a todos. A pedra cai. Estou olhando os loucos e recebo de volta o mesmo olhar de incredulidade que lhes envio. O que faço agora? Quem fala comigo? Que diabos de legado é esse que surge quando menos espero!? - 'Lilith?' - Abano a cabeça numa negativa. A voz era masculina. Ga'al está morto. Ele não ousaria! 'Diabos! Seja quem for, o que faço agora!?' Desespero-me porque eu os vejo caminhar, vacilantes, em minha direção e em seus olhos há o medo e a maldade. Uma combinação nada atraente para quem está em uma posição como a minha. Sozinha, de pé, sobre uma pedra gigantesca. Sinceramente, não saberia dizer como a escalei e cheguei ao seu topo. - Ei, vc! - Falo baixo, cerrando os olhos, alheia ao perigo que me espreita. - Fale comigo novamente. Me ajude. - Havia tanta doçura em sua voz. Eu a conheço. Certamente, eu a conheço. Sorrio, imaginando-me distante dali, longe do povo que me quer morta. - Vc me conhece. - Afirmo, choramingando. - Fica comigo. Eles estão perto demais. Como usar o legado? Diga. Deixe-me ouvir sua voz uma única vez.

- Minha doce Morgana. - Ouço seu lamento doloroso, aqui, dentro de minha cabeça onde ainda há sangue a escorrer, lentamente, grudando os fios de meus cabelos desalinhados à minha pele. - Morgana...- Seu sussurro faz meu corpo ficar tenso. As palmas de minhas mãos estão suadas. Ouço o barulho do sangue em movimento ressoando em meus ouvidos. Estou êxtase. É a voz do homem dos meus sonhos que fala comigo. Rio como uma louca acima dos tolos que já se encontram em torno da grande pedra. 'É vc? Diga! É vc, eu sei!' Exulto, abrindo os olhos cheios d'água. - Vc veio me buscar! - Antes de ouvir sua resposta, sou empurrada pedra abaixo por um moleque maldito que, sorrateiramente, chega até mim, pelas costas. Tombo violentamente contra o chão de terra, sob os aplausos dos miseráveis que iniciam uma série de chutes furiosos em minhas costelas e em meu ventre. Os chutes dos que me usaram. Os chutes das mulheres que me invejaram. Os cuspes nojentos das bocas imundas que me xingam. Meus braços lanhados, a custo, cobrem o meu rosto. Meus olhos me enganam enquanto minha alma escapa do corpo brutalmente atacado pela turba desvairada.

Um clarão se abre e, então, já não sinto dor alguma. Choro, sorrindo. Ele está aqui. Diante de mim, entre as brumas que embaçam minha visão. Mas eu o sinto. Toco seu rosto. Uma brisa mansa afasta a névoa e seu sorriso vale cada minuto de dor pelo qual passei na Terra. Entrego-me ao seu abraço reconfortante. Choro intensamente, engasgando-me porque quero falar com ele, ficar com ele. Aos poucos, minha visão se apura como se despertasse, de súbito. Estou quente, mas meu corpo não para de tremer. Ele me abraça forte enquanto sinto meu coração bater descompassado no peito. - Vc! - Suspiro, enlevada. - Vc é o meu Giovanni! O homem dos meus sonhos sempre foi vc! - Ouço um soluço sair de minha própria boca. Não há palavras. Apenas lágrimas e seu abraço forte, reconfortante de onde não quero sair. - Amor! Sempre foi vc! sempre! - Bato com os punhos cerrados em seu peito como o fazia quando ele raramento me irritava. Ouço seu riso irresistivelmente tímido. Agarro-me a ele como uma criança que reencontra o pai amado após longos dias de ausência. Beijo sua boca, esquecendo-me da doença que corrói o corpo que deixei para trás. Embaralhando as palavras aos pensamentos acelerados e as mãos que o tateiam para me certificar de que não estou sonhando, explodo de emoção, implorando. - Não me deixa, Giovanni. Me leva contigo! Eu sei que sou má, mas, deve haver um jeito de vc me levar, amor! Fale com eles. Peça a eles! Eu sei que vc vai conseguir dar um jeito para que me deixem aqui. Vc é bom. Eles vão te ouvir. Posso ficar de castigo num lugar sombrio. Não me importo, desde que vc venha me visitar com frequência! Gio! Fala com eles! - Ele sorri conquanto seus olhos tristes são inundados por lágrimas que molham seu rosto. Eu as enxugo com a ponta de meus dedos, beijando-lhe a testa, a ponta do nariz, as bochechas, os cabelos, recostando minha cabeça exausta em seu coração. Não quero olhar em seus olhos e ver a verdade que ele tenta me dizer, sem palavras. - Gio, me deixa ficar. - Falo baixo, sem fitar seus olhos. - Não suporto mais viver longe de vc. Não deixem que me...- Subitamente, mãos invisíveis me arrancam de seus braços, afastando-me dele que só faz chorar, mordendo o lábio inferior como se fosse mudo. - GIOVANNI! NÃO DEIXA! - Erguida no ar, quase esmagada por uma força que desconheço, estendo meus braços a ele. Enfim, ele desperta de sua letargia e corre em minha direção. Sinto seus dedos tocarem as pontas dos meus. - Me ajuda...- Suplico, enquanto nossos dedos se separam. - GIOVANNI! FAÇA ALGUMA COISA! - Berro até a garganta arder, vendo-o desaparecer entre as nuvens densas e sombrias.

- Não desista de me encontrar! - Sua voz distante, serena e amargurada, chega aos meus ouvidos, minutos antes de ser arremessada de volta ao meu corpo, no chão de terra, com a intensidade de um meteoro atravessando a atmosfera terrestre. Abro os olhos, estarrecida. A dor é excruciante. Minhas costelas doem. Mal consigo respirar quando vejo um facão subindo, a lâmina descendo, o sangue espirrando do talho em minha mão que tenta proteger meu rosto. Ouço um grito esganiçado e, atônita, percebo ser o meu.

- Os cabelos não! Por favor, os cabelos não! - Minha voz sobe novamente num berro. - GIOVANNI! EU TE ODEIO! - O eco retorna como se meus gritos fossem serpentinas. - Parem! Eu suplico! - O ritual tem início. Cortam-me os fios de meus cabelos com um facão enferrujado, mal afiado, puxando-os com brutalidade e volúpia. A dor do couro cabeludo sendo castigado não se compara à dor de ser abandonada por ele. Estávamos tão próximos. Ele poderia ter salvado minha vida, mantendo-me morta.

***

Estou sentada no chão e, ao meu redor, as longas madeixas pesadas, negras que ele amava pentear. Passo a mão trêmula no que restou delas. Sufoco um grito de horror. Já não há espectadores para o grande show. A Grande Meretriz recebeu o seu castigo. Estou doente, horrenda, machucada, cabelos curtos. Tufos de cabelos cobrem minha cabeça latejante. Estou avassaladoramente só. Meu coração se parte. Minha boca tem gosto de sangue. Nada mais me resta. Arrasto-me porque não quero permanecer ali, embora não tenha ideia do que fazer. Arrasto-me até o poste. Agarro-me a ele, e me lembro do abraço do homem da minha vida. Raiva, amor, ódio e saudades se misturam dentro de mim. Do que restou de mim. Ainda tenho minhas vestes. Cubro com o capuz minha cabeça dolorida sentindo falta do peso dos fios que eram o meu orgulho desde minha juventude. Inspiro profundamente o ar frio da noite. As costelas se ressentem. Não pareço ter quebrado os ossos. Ainda estou andando, ereta. 'Certamente, uma dádiva divina', penso com ironia.

- Eu te odeio, Giovanni. - Murmuro, fitando o chão de pedras. Dou dois, três passos vacilantes. - Odeio te amar tanto. Por sua causa, fiz tudo errado. - Sigo em frente, contra o vento cortante açoitando minhas faces lívidas. Minha túnica esvoaça. Meus cabelos...não mais. - Por sua causa.- Repito, olhos distantes, tremendo de frio e fome. - Por sua causa...- Ergo meu queixo, olhando as estrelas com uma tristeza tranquila. - Vou terminar o que comecei no dia em que vc tocou minha mão pela primeira vez, amor. Lembra? - Enxugo meu rosto com o dorso da mão, então percebo que ela ainda sangra. Sou um lixo ambulante. Uma doença com pernas e braços, sem cabelos, vagando como um fantasma. Meu Antoine tinha medo de fantasmas. Giordana não! 'Não existem!', dizia para ele enquanto Giordana sorria, enigmática. - Meu Antoine! Mamãe já está indo, amor. Espere por mim.

***

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 12/01/2020
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