'MORGANA - O DIABO MORA NOS DETALHES'

O DIABO MORA NOS DETALHES

Não quero entrar na casa. Na minha casa. Há muitas recordações e, francamente, após tudo o que já passei, não sei se tenho coragem de enfrentar a culpa de peito aberto. Entrar no quarto de meus filhos, ver seus desenhos espalhados pelo chão, as bonecas de Giordana, o pião de Antoine, as camas, as fronhas com o cheirinho de cada um. Não. Não vou entrar. Não vou conseguir. Eu sei. Recostar a cabeça no travesseiro dele. Sentir seu perfume amadeirado, lembrar dos dias em que ele me fazia sorrir quando o que eu queria era chorar. Chorar por tolices. Hoje eu sei que não havia problemas. Não havia tristezas ou motivo para chorar. A porta que rangia, a sopa rala, o trabalho árduo no campo, a falta de diversão que eu tanto cobrava dele. Giovanni, não houve tempo mais feliz do que o que passei ao teu lado. Pode acreditar. Não há diversão lá fora, amor. Só podridão. E eu...eu me contaminei. Meu corpo está contaminado. Minha alma também. Não posso entrar e macular o nosso lar. Ah...sinto tanto! Eu não posso entrar. Estou defronte a ela. Tão perto! Quero tocar nas paredes de pedra e sentir as impressões que nelas permaneceram. Foram tantas! Quantas vezes vc me pressionou contra elas, prendendo-me entre os seus braços porque brigávamos e vc, supersticioso, dizia não ser de bom agouro dormir sem fazer as pazes? Quantas vezes eu pedi que vc trocasse a porta de madeira que não impedia a entrada do vento cortante no inverno? Quantas vezes eu te xinguei por sua falta de coragem em pedir que lhe pagassem mais por suas aulas aos filhos dos nobres abastados e vc nada fazia além de me lançar um olhar triste, como se não fosse o melhor companheiro que uma mulher poderia desejar ou o melhor pai que meus filhos poderiam ter?

Perdão...

As pedras continuam no lugar, as janelas com brechas por onde o vento continua a entrar, no entanto, não encontra mais os nossos corpos para congelar. Agora, amor, eu ouço, daqui, a brisa a percorrer os espaços vazios, repletos de memórias que dilaceram meu coração. Eu fui má! Como fui burra em não perceber que possuía tudo e que te magoava com meus pedidos idiotas, infantis. Eu me odeio, Giovanni! Eu me odeio por ter perdido tanto tempo com pequenas coisas quando havia uma floresta inteira atrás de nossa casa, flores de todas as espécies e cores e árvores com grandes copas que, agora, me encaram como se soubessem o que sinto. As samambaias continuam aqui, Giovanni! Estranhamente, estão aqui e cheias de vida, viçosas como se fossem diariamente regadas por mãos benditas que mantem a nossa casa limpa. Ao menos, aqui, do lado de fora, tudo parece perfeito, bem diferente daquela noite terrível em que tudo acontecera. Onde os monstros invadiram nossa sala a chutes e pontapés, sacrificando nosso querido Eros sem motivo algum. Eu posso ouvi-lo daqui, Giovanni. Posso sim...

Meu coração bate como um tambor nos ouvidos e não consigo respirar, meus olhos perdem o foco e me entrego às memórias dos dias felizes sobre a Terra. Antoine acaba de passar por mim, correndo, célere e risonho atrás de Eros. Eu me viro em sua direção e ele desaparece. Meus olhos se enchem d'água. Ouço o relinchar altivo de nosso corajoso cavalo. Não posso entrar. A porta está entreaberta. O antigo balanço, o assento de madeira, apenas um pedaço de tábua, está jogado no capim alto, desbotado e empenado. O jardim lindo, triste e melancólico. O fascinante movimento dos ramos finos e altos, cheios de flores entregues à dança, e a árvore inteira se bate contra a parede da lateral de nossa casa, soltando uma chuva de folhas malhadas, trêmulas, ressequidas, solitárias como eu. Não vou entrar. Estou decidida, embora meus pés não me obedeçam quando ordeno que se movam para trás. Não consigo entrar e não quero deixar de observar os detalhes de nossa casinha que, aos meus olhos, parece-me acolhedora. Perfeita em todos os sentidos. A varanda onde vc contava fábulas fantásticas às crianças que bebiam de suas palavras, com os olhos estatelados, paralisadas, mesmo quando eu as interrompia, chamando-as para o almoço. Ignoravam-me solenemente como se eu não existisse. Certamente, uma mulher adulta deveria ignorar aquela reação espontânea e pueril e aguardaria, pacientemente, até que o contador de histórias se calasse. Deveria. Ocorre que equilíbrio emocional nunca fora o meu forte, logo, eu me enfurecia, sentindo-me preterida, enciumada, diminuída. Subitamente, arrastava Antoine, sempre passivo, pela mão, gritando o nome de Giordana, impetuosa, ordenando que me acompanhasse, sem olhar para os olhos compassivos e irritantemente compreensivos do pai dela. Acabava, em segundos, com a paz que reinava em nossa casa por querer o amor seu amor somente para mim. Sua atenção deveria ser somente minha. Deus...como eu errei! Como não percebia meus erros àquela época?

"De agora em diante, vc cozinha!

- Eu!?

- VC!", rosnei para ele como se a resposta fosse óbvia e, vê-lo sorrir só aumentava o meu íntimo desespero em perder o seu amor porque, eu sempre soube que, perdendo o amor de Giovanni, eu me perderia para sempre.

Eu estava certa.

***

- "Agradeça ao cozinheiro.", repito, intrigada, as palavras de Castiel. Uma lufada de ar frio toca os fios curtos de meu cabelo. Sinto uma leveza desagradável em minha cabeça. Sinto falta do peso dos meus longos fios cultuados desde minha adolescência. Quero-os de volta. Odeio aquele povo. - Não vou chorar! Basta! Cresça! - Repreendo-me a mim mesma, enxugando os cantos dos olhos e semicerrando-os, percebo que havia algo em sua expressão quando Castiel partiu. Ele estava estranho. Definitivamente, ele me escondia informações naquela alegria contida, no ar travesso beirando a euforia. Seus olhos lampejaram quando, entre risos, pedira que eu mesma desvendasse o sentido de suas palavras. Inspiro profundamente e o estonteante aroma da Dama-da-Noite me embriaga como o vinho que tomávamos juntos em noites especiais e, como todas as noites entre meu Giovanni e eu eram especiais, bebíamos todas as noites e nos amávamos todas as noites e mais de uma vez. - Meu Giovanni...- Exalo um suspiro melancólico e minhas mãos deslizam de minha nuca até a base do pescoço. Encolho os ombros e quase posso sentir a doce e marcante presença dele ao meu lado. Um calor reconfortante invade minha alma enquanto a dor da saudade comprime meu peito. Meu esposo, amigo, companheiro e amante.

'Não posso dar brechas aos adversários', repetia ele quando, exaurido em saciar minha sede de luxúria, deitava-se de bruços, enterrando o rosto no travesseiro, deixando-me livre para realizar minhas fantasias. O que, de fato, eletrizava-me!

Sentada em seu tronco nu, massageando suas costas e seus músculos sob a pele lisa e bronzeada pelo sol quente da lavoura, meus seios escorregavam em suas costas mornas que exalavam um cheiro másculo somente dele. Posso afirmar com propriedade, pois, infelizmente, conhecera muitos outros após a sua morte.

Suas costas quentes em contato com minhas mãos, meu sexo nu sobre suas pernas unidas, meus mamilos túrgidos, relaxavam-no e seus gemidos produziam em mim um efeito absolutamente desconcertante. Excitavam-me os gemidos de relaxamento e eu me deliciava tocando com meus lábios cada parte daquele homem que era todo meu. Antes de dormirmos, ao seu lado na cama, eu fitava o teto com um largo sorriso nas faces ruborizadas e, nesses momentos, agradecia ao Criador pela vida perfeita que Ele me dera.

Eu ainda acreditava n'Ele. No Crucificado.

Trabalhar na lavoura, cuidar da casa e das crianças, dos animais satisfazia-me, por mais que eu me esforçasse em mostrar-me contrariada e, quando o sol se punha, gritar por seu nome, em pé, na varanda, com um sorriso de expectação quase infantil era a melhor parte do dia. Meu olhar distante escondia a intenção libidinosa latejante em meu corpo ardente.

- GIOVAAAANNI!

Gritava mais para libertar a extrema alegria que sentia por ter todos os que eu amava ao meu redor, do que por chamar sua atenção já que ele estava a menos de cinco metros de nossa casa, recostado ao tronco de sua árvore predileta, sempre a ler, estudar, aperfeiçoando-se em algo. Além de belo, viril, sedutor, era inteligentíssimo o diabo! - Se não vier em dez segundos, eu o tranco do lado de fora, meu bem! - Provocava-o, abrindo o primeiro e o segundo dos vários botões de meu vestido, fitando-o com desejo. E como não desejá-lo? Minha nossa! Se ele conhecesse o poder que exercia sobre mim, faria-me de boba, tornando-me sua escrava. - Último aviso! - Como de costume, levantava-se sempre com sua habitual elegância, enquanto eu o apressava, louca para esbofetear aquele rosto com traços perfeitos, a barba por fazer, os olhos negros e atentos, um sorriso discreto que não expunha, com muita clareza, sua vontade. Jamais pudera dizer com certeza se ele me queria na cama ou num tronco, atada por cordas em meus pulsos, gemendo de dor sob os açoites de sua chibata. De uma forma ou de outra, eu seria feliz. Ser dele, estar com ele, viver por ele, sofrer por ele. Respirar por ele. Bata-me, beije-me, engula-me...- Três, dois, um! Acabou o tempo. Estou fechando a pooorta!'

E lá vinha ele, caminhando lenta e perigosamente, como uma pantera negra e seus olhos penetrantes. Numa das mãos o livro e na outra, seus óculos ostensivamente pornográficos, pois me entontecia seu estilo despreocupadamente intelectual, embora não tivesse tempo para seus ensinamentos, já que seu corpo e seus afagos tiravam-me do prumo, jogando meu raciocínio no lixo. Enfim, quando despertava do fascínio que seu andar voluptuoso me provocava, era tarde demais para recuar.

Fingindo contrariedade, deixava-me levar para dentro de casa em seu colo, lambendo seu pescoço, mordiscando sua orelha, pensando se teria suficiente autocontrole para terminar o jantar sem me jogar sobre a mesa, entre os talheres, a sopa, pratos e os olhos curiosos de nossos filhos, implorando que ele me fizesse sua ali mesmo.

***

Infeliz que sou. Só me restam os devaneios...

Vejo um borrão branco em meio às árvores. Desperto, abruptamente de minhas doces memórias. Não há tempo a perder com o passado. Todos se foram. Todos. Então, porque este som me desagrada? Sufoco um grito de pavor. Afasto-me da casa, da porta escancarada pela rajada de vento, súbito e frio. Ouço o ranger das tábuas vindo do quarto das crianças. Alguém caminha em direção à porta da frente, vindo dos fundos. Há dois sons distintos. Apuro minha audição e, além dos meus batimentos cardíacos acelerados, ouço o retinir rítmico, agudo e renitente de algo metálico contra o solo. O som se aproxima e, então, distinguo o segundo: passos de botas que se intercalam ao do metal tateando o chão. Não. Não pode. Abano a cabeça com tanta veemência que chego a ficar tonta. Recuo dois, três passos. Escondo-me por entre os arbustos. Há um vulto que se agiganta à medida que vasculha a casa e se apoia ao objeto que produz o som metálico, agora, insuportável aos meus ouvidos, pois atingem um ponto em meu inconsciente que deveria permanecer adormecido. Tenho a certeza de algo devastador está por vir. Minha razão não quer aceitar o fato de que há um homem que anda em minha casa com o auxílio de uma bengala. Um homem que invadiu a minha casa! Por que diabos Castiel me trouxe até aqui e fugiu como um covarde!? Para que eu sofresse ainda mais!? Meus instintos estão à flor da pele quando, tapo a boca com com as mãos reprimindo um grito de cólera e repulsa. Prendo a respiração, instintivamente. Cerrando meus olhos, imploro que aquilo desapareça. Aquele vulto medonho, ameaçador. Não pode ser ele. Eu mesma o matei. Eu mesma cortei sua cabeça. Não. Não fui eu. Eu sei. Foi Ga'al. Mas...mas eu me lembro. Lembro-me com detalhes de ter pego a cabeça. Chutado a cabeça. POR DEUS! EU COLOQUEI A CABEÇA NO ALTAR DA IGREJA! - Ele não pode ter voltado do mundo dos mortos. Ele não, Senhor! - Suplico, com as mãos entrelaçadas, ajoelhada, tronco curvado numa atitude de humildade. - Não deixe que seja ele.

Padre Pietro está vivo. Um vivo morto que voltara para me assombrar. E está em minha casa, mexendo, esgaravatando os pertences de meus filhos, maculando meu lar. MALDITO SEJA! ELE NÃO MORRE NUNCA!?

Ele para no batente da porta do quarto onde meu marido e eu dormíamos como se houvesse levado um choque. Dá um passo adiante, cruzando o umbral. Desaparece do raio de minha visão por instantes. Solto o ar aliviada. Tola! Ele retorna de imediato. Um gesto com sua cabeça me faz crer que ele ouviu o meu grito, pois parece aguardar por algo, com a cabeça e parte do corpo levemente inclinados para fora do quarto. Por Deus! Eu gritei em pensamento! Não é possível que todos, o planeta inteiro use de telepatia! Que inferno! Não sei quanto aos outros, mas, ele sim, porque, saindo do quarto, caminha a passos lentos, hesitantes, envolto em sombras, como se soubesse onde estou. Emito um gemido de espanto. Ele dá um passo em minha direção. Comprimo os olhos, cerrando os pulsos. Estou pronta para o ataque. Ele recua e vai ao encontro da lareira. SAI DA MINHA CASA, SEU PULHA! Odeio-o tanto que mal posso me conter quando o vejo, através da janela escancarada, a deslizar o longo indicador por sobre os livros de Giovanni, empoeirados e enfileirados, na estante de madeira. Num gesto ligeiro de sua mão, retira um volume dentre os outros. Estico-me ao máximo, mas, não o suficiente para saber de qual livro se trata. Ele o folheia e seu jeito de passar as folhas me faz pensar que...

Sinto meu coração palpitar e por segundos, penso...não. Tolice. Esqueça. O velho babão se demora na leitura. Parece apreciar o que lê, pois, de cabeça baixa, anda até a varanda sem retirar os olhos, cobertos pelo chapéu, das páginas folheadas. - Isso é ultrajante! - Ergo meus olhos às nuvens acinzentadas que se aglutinam num céu azul. - O Senhor não pode permitir que ele faça isso! - Queixo-me ao Criador, braços esticados ao longo do corpo, punhos cerrados, narinas infladas pela raiva e o desejo de vingança. - São os livros do seu filho! Giovanni! O Senhor o amava! Eu sei! - Exclamo, num tom acima do sussurro, com o dedo em riste. - Ele era um bom homem. Do jeito que o Senhor gosta! Tire este verme daqui! - Ouço o baque seco do livro sendo fechado às pressas. Volto meus olhos assustados ao monstro. Ele está de pé, braços soltos ao longo do corpo e a cabeça baixa. Sei...sinto que fareja minha presença enquanto volta sua atenção ao pasto, á direita de minha casa. Não posso mais pensar. Mas, como não pensar se já penso quando penso em não pensar? "Jesus!" - Sussurro em meus pensamentos, na ridícula tentativa de que ele não me ouça. Erro outra vez. Seu pescoço gira para frente tão rapidamente que, por pouco, não se quebra e mata o desgraçado. Meus joelhos estão ardendo. Já não suporto ficar na mesma posição por mais tempo. Não posso me erguer tampouco me deitar e fingir que morri. Culpa da Morte burra, cega, surda e muda. Deus...ele está ali, diante de mim com o livro em uma das mãos e a maldita cabeça que não se ergue. DIABOS! Erga-se para que eu tenha a certeza de que estou louca ao imaginar que há um morto que voltou do inferno no lugar onde meus filhos ouviam as histórias com finais felizes inventadas pelo pai amoroso. Erga-se, demônio. Meus pés estão me matando. Minha coluna dói. Meus ossos estalam. Imploro aos anjos, santos ou demônios que ele tropece em uma pedra, caia e parta ao meio a perna sã, tornando-se uma presa fácil. O que, OBVIAMENTE, não acontece. Os anjos e santos obedecem ao Criador que me detesta! - Pare onde está! Eu ordeno! Não se atreva a...- Ele parece desobedecer meu comando deliberadamente enquanto enxergo a ponta de seu queixo elevando-se lentamente...MALDITO SOL! Seus raios incidem sobre mim como flechas, impedindo-me de ver com clareza o canalha que há pouco, retirou o tosco chapéu de sua cabeça que, um dia, eu vi rolar nos degraus da igreja. Juro que vi! Por questão de milissegundos, não vira seu rosto repugnante, novamente escondido pelo infeliz do chapéu. Ele caminha de um lado ao outro da varanda, mancando, cutucando com a bengala as tábuas, fazendo ranger as tábuas soltas, mais próximas aos degraus. Ele manca. O porco manca. Desde que eu tentei matá-lo pela primeira vez, ele manca. INFELIZ! Só pode ser ele! Ele se agacha e, a despeito de meu asco por ele, devo admitir que possui um porte distinto o padre porco que, se não fosse tão vil, passaria por um homem de bem. Por que permanece agachado? O que procura com aquelas mãos profanas? O que o faz retirar a tábua solta!? - Não.Não.Não. - Sem atinar, estico o braço que chega a atravessar as folhagens. Eu o estrangularia se pudesse, no entanto, engulo em seco quando o vejo retirar da fenda entre as tábuas, um dos muitos graciosos sacos em veludo, verde musgo, onde guardávamos nossas economias. COMO!? Como descobriu nosso segredo se até eu mesma havia me esquecido!? - Se o Senhor não fizer nada...- Lanço meu olhar dardejante ao céu agora completamente coberto pelo cinza. A chuva não tardará a cair. - Faça algo ou eu mesma faço! - Revolto-me contra o Filho do Criador, inutilmente. O velho covarde e ladrão acaba de enfiar o sacos de moedas nos bolsos do casaco. INFELIZ! Ladrão! É o dinheiro do trabalho de meu marido. Deixe-o aí...por favor.

Ele ergue, de chofre a cabeça e eu, estúpida, desespero-me, cobrindo minhas orelhas com as mãos, cerrando os olhos e, como uma criança, imagino estar invisível. Perco a rara oportunidade de encarar o ladrão, porco, imundo. Ouço o som suave de sua risada. Suave? Nada naquele homem era suave tampouco sua gargalhada diabólica. Meu coração está a um palmo de minha boca quando ele desce o primeiro degrau e, com uma mão, puxa a aba do chapéu para baixo, ainda rindo, pois ouço o som, sem ver o rosto, o que me deixa atônita. Devo estar louca. O padre que conheci não possuía a leveza dos movimentos que vejo diante de mim ou o calor que sua risada me provoca. Preciso ver sua boca, seu rosto, seus olhos. Coragem! Enfrente-o!

- Tem alguém aí? - Sua voz rouca e pausada se faz ouvir e, tomada pelo pânico, jogo-me contra o chão. Fico ali, estirada, imóvel, sobre os seixos, na esperança de que ele não venha ao meu encontro. Agarro-me aos seixos e tudo volta à minha mente. Dispersa, entrego-me à torrente de sensações que inundam meu ser. Revejo meu menino catando as pedras, dia após dia, lavando-as cuidadosamente e, então, orgulhoso de seu trabalho, espalha as pedras sobre a mesa da cozinha, fitando-me com um sorriso tão inocente quanto seguro.

"São para a sopa, mamãe." - Dizia ele, satisfeito, sem imaginar o quanto suas palavras calavam fundo em minha alma. Fui uma péssima mãe. Deveria ter me calado. Deveria ter pensado nas crianças antes de elevar minha voz em discussões infundadas com seu pai, no quarto ou na sala ou na cozinha enquanto preparava a sopa. Antoine e Giordana nos ouviam, lá do quarto. Ouviam-me afrontar Giovanni em meus rompantes de revolta contra sua dignidade que o impedia de aceitar propostas ilícitas dos mais ricos, poderosos e corruptos de nosso vilarejo, em troca das curas e prodígios que ele, vez por outra, operava graças ao seu vasto conhecimento em Alquimia e ao poder das ervas cultivadas em sua estufa.

"Nada!? Vc não cobrou pelo que fez!?", dizia eu, num tom colérico enquanto ele balançava a cabeça, numa negativa, sentado em sua cadeira, cotovelos nos joelhos afastados e as mãos apoiando a cabeça. Conquanto eu o amasse e não quisesse feri-lo, eu o insultava, quando, na verdade, eu o admirava exatamente pelo que ele deixava de fazer. Incorruptível. Este era o meu Giovanni. Ainda assim, eu o feria. - "Então hoje teremos sopa de pedra. Perfeito! Delicioso!" - Batia palmas, desdenhando, humilhando-o, mesmo que o visse mergulhado em um silêncio doloroso. - "Meraviglioso! Sopa de pedra!", repetia em alta voz enquanto ele escondia o rosto entre as mãos limpas, quando a vergonha era minha.

Perdão, amor. Perdão.

Minhas mãos acariciam as pedras que meu filho, preocupado, procurava para que não passássemos fome. Comprimo os olhos e permito que as lágrimas lavem meu rosto tocado pelo sol. O sol que cega minha visão e desperta-me do transe. POR DEUS! O PADRE MANCO! Ergo-me subitamente e volto a vigiá-lo por entre as folhas largas. Mal consigo controlar minha respiração cada vez mais ofegante. Abro somente um dos olhos. Ajeito-me por detrás dos arbustos de Petúnias Mexicanas. São lindas! Extravagantemente coloridas, no entanto, um péssimo esconderijo. Com o pescoço erguido, cabeça elevada e os olhos bem abertos, eu me nego a deixar a minha casa nas mãos daquele velho decrépito, sujo, porco e morto, sentado no primeiro degrau da escada que dá acesso ao jardim. Estreito os olhos e somente consigo ver o queixo, pois ele voltou a ler o livro que, agora, identifico. É o livro de capa preta do santo e mago, grande manipulador das forças da natureza que lidava com demônios e, mais tarde, arrependido, voltara seus olhos a Deus. Sorte a dele ser visto e aceito por Ele! Eu já não tive a mesma sorte. Fazer o quê? Perdera a conta de quantas vezes Giovanni lera este livro. Que diabos o padre quer com o livro do meu marido? O seu predileto?

- Não importa! É ele. O demônio! - Decreto, sentada, de pernas cruzadas sobre as pedinhas decorativas que nos serviam de tapete. Lilith matou um deles em troca de minha alma, agora, já não tenho mais nada a oferecer a ela. Ofereceria o que tivesse ao próprio Lúcifer a fim de vê-lo morrer pela terceira vez. Ergo os olhos aos Céus, lastimosa. - Ajude-me. - Arrisco um pedido. Dou de ombros, resmungando sozinha. Desolada, faminta, arrependida e tremendamente contrariada. A CULPA É DO MALDITO! Tudo em minha vida deu errado por causa dele. Ele foi o culpado por todos os meus desvios e então eu o vejo em minha casa, livre como um pássaro. EI! SAIA DA CADEIRA DE BALANÇO DE GIOVANNI! - Bastardo...ele sorriu!? Ele está sorrindo!? - Indignada, aumento o tom de voz. - É isso!? - Minha boca aberta e meus olhos arregalados se mantêm imobilizados por um bom tempo sem que eu possa crer no que vejo. Ele está sorrindo...rindo por detrás do chapéu! Maldito seja! Encare-me! Sim! Olhe para cá! Procure a dona da voz, seu biltre! Vc não é um te.le.pa.ta.!? - Eu hei de te matar de novo e de novo e de novo! Mesmo que leve vidas e mais vidas! - Rosno num tom baixo. A raiva toma conta de todo o meu ser nublando a pouca sanidade que me resta. Sem titubear, lanço mão da primeira pedra que vejo ao meu lado. A maior delas. PERFETTO! Arredondada, larga, pesada...veloz! Uno, due, tre! -

- TOMA, MALEDETO! - Exclamo eufórica, enfim, erguendo-me, esticando meu ossos e músculos, elevando minhas pernas alternadamente, com as mãos na barra do vestido na altura dos joelhos, tal qual uma dançarina de 'Cancã'. Ouço um arquejo de surpresa e espanto. Jogo uma segunda pedra que o acerta no peito. Ele tosse, engasgando-se. - POR MINHA FAMÍLIA! - Trovejo, sem poder controlar meu diafragma que mais parece uma sanfona nas mãos de uma criança curiosa. - Cazzo! - Ele se ergue com mansidão. Eu giro em meus calcanhares e antes mesmo do medo tomar conta de mim, olho de relance para trás e me certifico do estrago causado pela primeira pedra que atingira o meio de sua testa. Um rasgo bem acima do nariz faz o sangue escorrer por entre as sobrancelhas, contornando-as e formando filetes em suas têmporas. O lenço branco com que ele cobre a ferida também cobre o rosto. Não posso aguardar por mais tempo, apesar da estranha sensação de piedade que me toma de súbito. - Volte para o inferno! - Grito com todas as forças que ainda possuo, embora meu coração idiota acelere seus batimentos, não por medo. Viro-me e dou-lhe as costas e, rindo como uma louca, ponho-me a correr na direção contrária a dele que, mancando, segue meus passos.

- VC NUNCA MAIS VAI TOCAR EM MIM, PORCO IMUNDO! - Profetizo enquanto livro-me dos sapatos como se houvesse pisado em um formigueiro, tropeçando, correndo, fugindo, sempre em frente, sem direção, sem destino, com uma única e definitiva decisão: a de nunca mais pertencer àquele homem.

Logo adiante, o horizonte. Ouço o bater das ondas nas rochas. O mar me chamar, baixinho.

- Estou indo! - Respondo, saltitando, galopando, rindo entre lágrimas, as mãos erguendo meu vestido, coração partido, obstinada. - Espere-me. - Sussurro, sentindo a maresia, o gosto de sal na boca, um estranha leveza em minha nuca. Se os tivesse, meus cabelos esvoaçariam agora e eu abraçaria meu Geovanni, deixando-o aspirar o doce cheiro de lavanda dos óleos que ele preparava para tratar dos meus fios. Aperto o passo enquanto ouço a voz do louco a me gritar. Quem ele pensa que é? Depois de tudo, ainda quer que eu pare e sente para tomar um cafezinho ao seu lado? MONSTRO! MORRA! Porque eu já tenho um encontro marcado com a Morte. Avisto, logo ali, o despenhadeiro. A voz clama por meu nome, mas não a ouço. O diabo pode ser bastante convincente e mora nos detalhes. Há afeto e preocupação em sua voz . Desgraçado, até na hora de minha morte, ele me atrapalha porque me faz hesitar e voltar aos dias em que o MEU Giovanni corria atrás de mim e, logo em seguida, tomava-me em seus braços.

'Miserável! Pare de gritar! A culpa é toda sua! CALE-SE', penso enquanto corro, pisando na grama macia. A mesma onde meus filhos pisaram antes. Olho por sobre os meus ombros e o vejo quase a me alcançar. Meus olhos me enganam. Meu coração bate tão rápido que, por pouco, paro e o encaro, apagando, de vez a estúpida esperança que tremula em meu peito. Giro em sua direção, encarando-o. - Não ouse me tocar, demônio traiçoeiro! - Declaro aos berros enquanto recuo, arfando, piscando por diversas vezes a fim de desembaçar minha visão. - Feiticeiro! Maligno! Como faz isso!?

- Sou eu...- Ele tira o chapéu, lançando-o longe. Abre um sorriso e, por pouco, me engana. - Morgana...- Aquela voz doce...serena. Os olhos risonhos, os cantos dos olhos que se franzem quando ele sorri...

- NUNCA! - Antes que ele emita outro som e me toque com suas mãos impuras, eu corro. Corro porque tenho medo. Corro porque não posso acreditar que o padre tenha tamanho poder. Corro porque não posso crer que o Criador permita sempre que o Mal vença. Corro porque acabo de ver o rosto do homem que mais amo na face da Terra. Corro porque quero ficar e me entregar a ele. Mas, ele morreu. Eu sei. E o padre é ardiloso, peçonhento. Corro porque já não suporto mais sofrer e não vou deixar que ele me domine outra vez. Não vou. Aquele não é o meu Giovanni. Não é. Corro porque quero me encontrar com o verdadeiro e único, mergulhando no abismo onde o mar e o horizonte se encontram.

O sol se despede ao sul, ao norte, ao leste ou ao oeste. Pouco me importa! Ele, ainda claudicando, consegue ser mais ágil do que eu e sinto suas mãos resvalarem na barra de meu vestido. Giovanni sempre soube do meu dom. Sempre soube que não poderia mentir para mim e me tocar, pois eu descobriria tudo assim que as impressões chegassem ao meu cérebro. Um outro toque e eu acelero o passo sem perceber que corro porque agora sinto, ouço seus pensamentos.

- 'Pare, por favor! Sou eu, amor'.

- Maldito seja...- Praguejo com os olhos turvos, atordoada. Ando a passos largos sem olhar para trás. Não preciso, pois o sinto caído na grama úmida, sob os pingos da chuva que começa a cair. Ele rasteja e aquilo me dói na alma. Já não sei o que pensar ou sentir. A razão se despediu de mim. Não posso ceder às artimanhas do velho maligno. - Viva, padre Pietro. Viva sozinho porque eu não estarei aqui...- Falo contra o vento, arrastando-me, seguindo os chamados do oceano profundo logo à minha frente. Faltam poucos passos até a minha liberdade. A Morte não me quis enquanto eu a esperava, pois então, eu a encontrarei, sem lhe dar avisos.

- Louvado seja o meu Senhor!!! - Exclamo com a voz desdenhosa. Abro um sorriso macabro e meus braços estão estendidos como os do Crucificado. Olho para baixo e vejo as pedrinhas, as ondas, os rochedos, as gaivotas que voam assim como eu...voarei.

- MORGANA! NÃO! - A voz é a mesma. O rosto é o mesmo. O aroma amadeirado...a doce sensação de segurança. É tão parecido com o meu Giovanni.

- Vade retro Satana...- Murmuro, com os olhos embaçados.

Dou um passo adiante e percebo que já não há mais grama sob os meus pés. Desequilibro-me. Nada há que me impeça de cair. Um súbito arrependimento e...

"Sinto falta do meu cabelo..."

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 25/01/2020
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