'MORGANA - TEM QUE SER ELE'

Tem que ser ele!

Sequer cheguei a sentir o impacto de meu corpo contra a rocha. Não senti os ossos se estraçalharem, rasgando minha carne. Não vira a minha vida passar diante de meus olhos como costumam dizer por aí. Não. CLARO QUE NÃO! O Criador não me quer fora do corpo de carne. Um corpo infectado, maltratado, abusado, aviltado, enfraquecido. ELE ME ODEIA! O Criador me odeia, conquanto digam que Ele é Amor...

Agora sei como as bolas de canhão se sentem quando cuspidas violentamente contra o opositor, pois fora exatamente dessa maneira que eu me senti quando seu corpo se chocou contra o meu. Uma força descomunal como a de dez homens reunidos jogaram-me...arremessaram-me de encontro a lápide de meu Antoine. Meu amado Antoine, enterrado em tenra idade, consumido pela Peste Negra.

Sinto tanto a tua falta, querido...

Se me dissessem que um dia eu voaria como uma gaivota embriagada e pousaria, desastrosamente, no túmulo de meu próprio filho, eu riria e, certamente, cuspiria na face do bastardo mentiroso. Mas...aqui estou eu ou o que sobrou de mim. Uma mãe não deveria enterrar um filho tampouco sentar-se sobre seus restos mortais. Mas...aqui estou eu. Sentada na grama que cobre o corpinho de meu filho que deve estar descansando em algum lugar mais sereno, justo, bonito e pacífico do que este aqui onde estou, deitada, esparramada na grama úmida após rolar repetidas vezes até parar e perceber o céu acima de mim. Emudeço por não ter o que falar. Não quero falar. Não há o que falar. Diabos! A Morte, de fato, me odeia. Pois bem. O Criador me odeia. A Morte me odeia. Quem mais me odeia!? Façam uma fila, senhoras e senhores, porque agora é o momento perfeito para me chutarem como o fizeram antes. Agora é o momento para cuspirem em meu rosto molhado pela chuva que se mistura às lágrimas porque eu não consigo alcançar um único e simples objetivo. Um direito meu: o de morrer.

Venham todos!!!

***

Há poucos minutos, estava prestes a voar como uma águia sem asas e, agora, a água da chuva amena escorre por minha nuca, meus ombros e pés descalços, gelados. Estou de bruços e sinto minhas costas arderem por debaixo do vestido colado ao meu corpo. Meu rosto está mascarado pela lama e meus cabelos...Aaah...INFERNO! Meus cabelos estão espetando minhas mãos de tão curtos e desfiados. Dou graças ao Pai por ele não estar aqui. Meu Giovanni me repudiaria se me visse assim. Não quero me levantar e retirar minha bochecha da lama fresca. Não há porque me levantar e olhar para o monstro que me arrancou dos braços da Morte cega, surda, muda e burra. Eu o sinto logo ali, à minha esquerda, mesmo sem olhar para ele. Está à minha espreita. O maldito está sorrindo. Eu sinto. Não vou olhar para ele. Ele que me enfie uma faca nas costas, bem do lado do coração e, talvez - e somente TALVEZ - eu consiga morrer.

Começo a crer que sou imortal. Um ser banido do Paraíso, como Lilith. Um ser fadado a vagar pela Terra à procura do homem que amo e que, por acaso, já não está na Terra há muito tempo.

- Estou sim...- Uma voz. Arquejo de pavor e quase me engasgo com o punhado de lama que inalei puxando o ar pela boca. Ele falou. Ele falou com a mesma voz suave de Giovanni. - Igual porque sou eu, sua boba! - Engulo em seco. O gosto é péssimo. Pior ainda é sentir que o Mal possui tanto poder. Encolho meu corpo imundo, abraçando-me à lápide do meu filho. Agarro-me a ela, pois ouço seus pés amassando a grama alta, criando um espaço até mim. A grama que não tivera tempo de absorver a chuva lenta e fraca. Limpando a boca com gosto de terra, eu o ameaço, entre cuspes e uma tosse inoportuna, mantendo meu rosto virado na direção contrária a dele. Largo a lápide e minha voz sai abafada, pois enterro minha cabeça entre os braços ainda cuspindo, tentando me livrar do gosto de estrume dos bois que costumavam pastar em nosso campo verdejante.

- Não se aproxime! - Grito tossindo com força e cuspo o que me entalava a garganta. A voz sai rouca e fraca quando prossigo, enfurecida. - Fique onde está ou eu te mato...novamente. - Paro de ouvir os passos. Isso significa que ele parou de caminhar, mas creio que me observa de onde está. Ergo minha cabeça e, sem olhar para ele, permito que a chuva lave meu rosto. Já não tenho medo dele. Sei que não quer me matar porque se o quisesse, seria estúpido demais de sua parte, salvar-me da morte para me matar. Aaai...minha cabeça dói.

- Deixa eu te ajudar, amor. - O mesmo som de suas súplicas. A mesma respiração ofegante. Ele faz rolar uma pedrinha até mim. Eu prendo o riso. Eu quero que seja ele. Eu preciso que seja ele, mas sei que não é ele. - Para de bobagem! - Ele resmunga de uma forma tão gostosa...

O infeliz se aperfeiçoou na faculdade da telepatia e isso, de fato, me irrita.

- Morgana! - Seu tom de voz se altera enquanto meus pelos se eriçam dos pés à cabeça. - Pare de duvidar. Eu tenho muito para contar, explicar. Deixe que eu me aproxime...- Implora num murmúrio rouco, sentido. Solto todo o ar dos meus pulmões pela boca quando o ouço suplicar. - Por favor.

- Não se atreva a falar como ele, seu verme...- Queixo-me contra o vento porque não tenho força ou vontade para lutar. Estico o braço direito e, com pesar, abraço a pedra tosca que cravamos na terra quando oramos, seu pai e eu, unidos por um abraço, por nosso filho e imploro ao Criador que o ame como eu o amei. Eu sei. Sei que não mereço o amor do Pai do Crucificado. Reconheço que Ele tem razão em não me amar, mas, que ame ao meu filho. Que aceite minha filha. Que proteja meu Giovanni e que, se possível, não deixe que o padre porco me faça sofrer por muito tempo. - Faça o que tiver que fazer. Estou em suas mãos. - Digo com a voz tão fria quanto o vento que toca o meu rosto. Afasto-me do túmulo, arrastando-me como uma minhoca. Ainda de bruços, nego-me a vê-lo. Ainda estou em choque e os fatos levam um tempo para se ajeitarem em minha mente entorpecida. 'Não quero ver. Não posso ver'. Um leve tremor de pânico percorre meu corpo quando arrisco-me, num relance, a olhar para ele. Ele parece respeitar meu estado de demência, pois não se move. O padre porco apenas me olha de onde se encontra. Arquejo de surpresa e espanto, voltando a esconder meu rosto entre os braços cruzados. Isso o faz sorrir. Volto meus olhos à lápide, embora meus pensamentos sejam todos dirigidos ao que acabo de ver. Minha nossa! A semelhança é fantástica! Os mesmos traços finos, elegantes. O mesmo jeito sutil e irreverente em se apoiar no chão, estendendo o corpo apoiado em suas mãos, a cabeça reclinada para trás apreciando cada gota d'água. A mesma expressão insistentemente doce em seu olhar que incidiu, por frações de segundos, sobre o meu. Ouço o sangue correr nos ouvidos enquanto o coração ameaça sair pelo peito quando o escuto a cantar em gaélico. Por Deus...não. A mesma canção que entoava aos ouvidos de nossos filhos, antes de dormirem em paz...

'Shule, shule, shule aroon

Shule go succir agus, shule go kewn...'

Não faço ideia do que ele diz, mas me faz tão bem que chego a repousar minha testa nos braços e o fito por debaixo deles. Isso é patético, porém, sua voz e seu sotaque são inebriantes e me transportam ao dia em que o conhecera quando tentei morrer pela primeira vez e ele me impedira.

Ainda bem...

"O demônio usa de mil artimanhas", dizia minha mãe. Minha mãe. Por que diabos ela me veio à mente agora!? A senhora me vendeu a ele, mãe. Foi embora e me deixou nas mãos de um monstro que usou o meu corpo e adoeceu a minha mente, mãe. Por que não me amou? Por que me abandonou? Devo ser desprezível, pois sequer minha mãe me amou.

- Mas eu te amo. Seus filhos te amam. - Ele interrompe a canção e em sua voz há tanta compaixão, ternura e segurança que agora o encaro, estreitando meus olhos duvidosos. - Morgana. - Outro lamento que me aquece. - Deixe que eu me aproxime. Sei que deve estar chocada, perdida...

- INFERNO! - Bato meus punhos na terra molhada. A lama respinga em meu rosto. Ele ri porque me conhece e sabe que eu me irritaria e, me irritando, perco o controle e descontrolada, sou uma presa fácil de ser caçada. - CALE SUA BOCA! - Ergo meu tronco de supetão, joelhos no chão, apoio-me em meus tornozelos. A visão do mar me alivia. As nuvens, as árvores, as flores, as gotas da chuva que engrossam num repente. Ele ameaça se aproximar. Estico meu braço esquerdo apontando em sua direção como se meu braço fosse a extensão de uma espada afiada. Ele estaca como uma estátua ante minha voz soturna. - Fique exatamente onde está ou.eu.te.ma.to. - Ameaço-o, estreitando meus olhos, inflando as narinas, cerrando minhas mãos, inspirando e expirando profundamente. Tomo coragem e giro meu corpo coberto por um vestido branco, mesclado de marrom e verde musgo gosmento. Os pingos da chuva atingem meu couro cabeludo com tanta facilidade que me irrita. Seu olhar de suave expectação me irrita. Seu sorriso, seus dentes brancos perfeitamente enfileirados, suas covas nas bochechas me irritam. Sua barba crescida, a fisionomia sedutoramente sofrida me irritam. Então, irritadíssima, faço o que sempre fizera: ataco! Enterro as mãos na areia escura. Arranco o capim alto pela raiz. Na ponta, um punhado de terra úmida e escura. Ele ergue um dedo num gesto de aviso onde se lê: 'Cuidado, mocinha!' Por segundos, volto ao passado onde brincávamos de brigar. Eu quase sorrio quando ele curva os cantos da boca para cima. Arremesso o capim, a terra, o estrume das vacas em sua camisa, bem no meio de seu tórax incrivelmente desenvolvido para quem estava morto e sem cabeça. Ele é real. Ouço seus resmungos enquanto ele se limpa diante de mim, ali, de pé, ereta, impassível, imponente, invencível, inabalável, inatingível...quase imortal. Uma vontade absurda nasce em meu estômago e eu a mato em minha boca que se fecha a custo. Quero gargalhar, rir dele, rir com ele que sempre se sujava quando teimava em me contrariar, embora eu soubesse que as roupas sujas parariam, de um jeito ou de outro, em minhas mãos, na beira de um tanque. Abro um sorriso largo e bobo, os olhos vagos, perdida nas lembranças. - 'ACORDE!', grita meu inconsciente ou seja lá o que for. Ele não é ele, sua tola. Ele não pode ser ele. Se fosse ele, já teria me tocado, me convencido de que ele é realmente ele. Mas está parado, de pé, feito um poste, fitando-me com as sobrancelhas arqueadas, confuso, hesitante. Céus! O padre está caducando. É isso! - Caduco, porco e sujo! - Exclamo, entre risos histéricos. Cerro meus olhos e sinto-me tonta e tão insana quanto ele. Tão fraca e confusa que, tropeçando em um punhado de seixos, tombo para trás, batendo a cabeça contra o tronco da árvore velha, torta e retorcida pelo vento e o tempo, onde nossas inicias ainda devem estar gravadas. Exalo um suspiro, largando meu corpo ali, sobre as longas e grossas raízes, sem a menor disposição em lutar. Abro os olhos e o fito com carinho. Enlouqueço porque me permito pensar que ele é quem parece ser. Daria a minha vida para ter um momento com ele, se ele fosse ele. Ele retira a longa casaca preta e, antes de cerrar os olhos, vislumbro-me ao notar que ele veste uma camisa branca com decote em 'V' com as mangas bufantes que me seduziam e agora, caminha em minha direção. - Complicada a vida...- Sussurro e cerro os olhos, inclinando a cabeça para frente. Meu queixo encosta-se em meu peito. Estou um caco, mas não me importo. Nem tenho forças para me importar. O frio me faz tremer. O medo me faz tremer. A maneira como ele me encara me faz tremer. - Faça o que quiser...- Falo baixo, vencida, dando de ombros.

- Morgana...- Este é o meu nome, mas em sua boca, soa como uma canção. - Vc sabe que sou eu. - Diz ele, cobrindo-me com a casaca tão molhada quanto meu vestido, mas, algo naquele gesto, naquela voz, no cheiro que ele exala me aquece, esquentando partes do meu corpo que eu julgava não mais existirem. Aaaah...a inconfundível fragrância amadeirada. Até nisso o verme acertou. - Olhe para mim, amor. Abra os olhos e olhe para mim. - Eu o obedeço e encontro um par de olhos profundos, melancólicos, a testa que ainda sangra, os cabelos em desalinho, a barba por fazer. Sua mão se ergue vagarosamente, na proporção em que seus olhos sorriem. A mão forte e macia em minha nuca, o polegar que desliza em direção ao lóbulo de minha orelha...

- NÃO! - Protesto, atordoada, usando os cotovelos e as mãos para me afastar. - Isso não! Só ele...somente ele fazia isso! Somente ele poderia fazer isso! - Estou atormentada, abismada, assombrada, acuada como um animal prestes a se defender. Minhas mãos estão fincadas à terra e meu tronco curvado como o de um gato contrariado. - Por que faz isso!? - Ele exala um suspiro de dor levando as mãos ao rosto, cobrindo-o como o fazia quando precisava de um tempo para se acalmar. Não há nada nele que indique que ele não seja ele, porém, eu ainda temo...morro de medo em crer que meu marido esteja de volta e, crendo nisso, deixe-me envolver por algo ou alguém que o esteja imitando nos mais íntimos detalhes. Não suportaria perdê-lo uma outra vez, então, prefiro não alimentar falsas esperanças.

- NÃO SÃO FALSAS AS SUAS ESPERANÇAS, MORGANA! - Ele explode, esfregando as mãos nervosas pelo rosto, desalinhando suas sobrancelhas, o que verdadeiramente me inquieta. Eu sempre as penteava com meus dedos sutis e a boca sempre sedenta carimbando cada parte daquele rosto perfeitamente meu. - POR DEUS, ME OUÇA!

- Não eleve o tom de voz para mim, bastardo! - Erguendo-me, dou um passo à frente, inflando o meu peito enquanto, desajeitada aliso a saia de meu vestido. Estou um trapo. - Quem vc pensa que é!? - Eu o afronto com o punho em riste.

- Seu marido!

- Ele está morto! MORTO!

- Vc viu o corpo!? - Sufoco um soluço. Meus olhos se embaçam. Retenho as lágrimas nos olhos. - Pode afirmar que morri!? Vc me enterrou!?

- Pare...- Suplico com a voz entrecortada. - Para de me machucar. Seja quem for, termine o que veio fazer.

- Não posso...- Do grito ele passa a um sussurro e em seus olhos há um brilho que reconheço. Jesus, Maria e José. Esse olhar provocante, os dentes que mordiscam o lábio inferior, os braços ao longo do corpo delineado pela camisa ensopada. - Não posso fazer o que desejo. - Seus olhos brilham.

- O que te impede de fazer o que quer fazer!? - Falo alto para ser ouvida em meio à chuva que cai abundantemente. Eu quase não o vejo e ele está a pouco metros de mim. Ouço sua voz um tom mais alto do que a minha, quando responde, dando um passo adiante.

- O que quero fazer com vc não pode ser feito aqui, debaixo de tanta água, em meio à lama! - Maldito. Que sorriso pornograficamente terno. - Necessito de privacidade!

- Não sou surda! Já ouvi! - Grito, ofegante.

- Então não grite porque estou bem perto agora! - Ele berra em meus ouvidos, entrelaçando minhas mãos as dele. O Tempo para. A chuva cai em câmera lenta. O ruído do vento, das folhas, do mar contra as rochas cessam por segundos, então ele murmura contra minha bochecha molhada. - Tudo o que quero é ficar com vc. Falar com vc. Voltar para vc. - Nossas mãos estão atadas. Unidas. Mal consigo respirar de tanta emoção. Ouço seu coração bater tão apressadamente quanto o meu. Sinto seus lábios roçando minha nuca. Toco em seu peito onde quero recostar minha cabeça cansada. Percebo que ele perdera peso, embora esteja ainda mais sedutor com aquela expressão sofrida em seu semblante. Ele sorri. Eu sorrio de volta. Engulo o sorriso, carregando meu cenho. Tudo deveria ser como antes. Mas não será. Ainda que ele seja o meu Giovanni, eu já não sou mais a sua Morgana. Não a mulher inocente com quem ele se casou. Não a mãe íntegra de seus filhos. Não...nada será como antes. Não quero. Não posso lhe contar a verdade. Não posso narrar tudo o que vivi e no que me transformei em sua ausência. Não. NÃO POSSO. Não sou tão forte assim. - Não me importo! - Eu o ouço entre a chuva que cai em cascata acima de nossas cabeças, nublando nossa visão, mas finjo não ter ouvido.

- O QUÊ!?

- NÃO ME IMPORTO! - Repete ele, revirando os olhos.

- PARE DE LER MINHA MENTE! - Levo as mãos aflitas à cabeça. Arregalo meus olhos, emitindo um ruído medonho. Diabos! Meus cabelos! Aflijo-me, agachada, à cata de um capuz ou algo que me cubra a cabeça devassada. Estúpida! Como se em meio à floresta eu fosse encontrar um capuz ou um chapéu com abas largas e fitas coloridas. Ele parece me compreender, no entanto, recostado à árvore, observa-me, abanando a cabeça, desolado. Sinto que ele sabe que sofro. MALDIÇÃO. A mão que tateava o chão encontra uma pedra. - NÃO SINTA DE PENA DE MIM! - Aviso num berro, cobrindo meu rosto com o antebraço esquerdo enquanto ergo o direito, com a pedra na mão fechada em punho. Quero acertá-lo em cheio. Quero matar esse homem que se parece tanto com o meu. Não quero que me veja sem os meus cabelos. POR DEUS! NÃO SEI O QUE FAÇO OU NO QUE PENSO. Eu sei. É ridículo pensar em cabelos num momento como esse, mas eu penso. Penso que se fosse o meu Giovanni, ele me fitaria com piedade, mas o que vejo em seus olhos nada tem a ver com piedade. É algo diferente. É um olhar de compreensão e naturalidade. É pacífico, paciente. Sigo em sua direção como um trem desgovernado. Paro, de súbito. A pedra está acima de sua cabeça, nossos olhos se entrecruzam. Eu vejo meu reflexo em seu olhar tranquilo. Ele sorri, possivelmente da minha careta de ódio, fúria, rancor, mágoa e saudades. - CANALHA! NÃO TENHA PENA DE MIM.

- Não tenho.

- Mostre alguma reação! - Minha voz é tão grave que chega a me arrepiar. Desço o braço com tudo. Num ligeiro gesto, ele agarra meu pulso, apertando-o. Eu solto a pedra. A pedra rola para o canto da árvore e meu plano de matar o morto se dissipa, num piscar de olhos. - Larga meu pulso! - Rosno para ele, cuspindo em sua face, o que tenho feito com uma certa regularidade. Não sei ao certo quando adquiri esse apetite feroz em cuspir na face dos outros tampouco me importo em saber desde que seja eficaz. E foi. Ele larga meu pulso e sequer faz menção em limpar o cuspe de seu rosto. MINHA NOSSA! Somente uma pessoa no mundo não teria nojo de meus fluidos corporais! POR SAN DIEGO! Não, não, não! Não, Pai. Não deixe que seja ele. Estou feia, magra, quase careca, doente, sem viço, suja, fedida...aaah, Pai, tenha piedade. Curvo meu tronco e num ato dramático, ajoelho-me, encostando minha testa nas coxas unidas. Sou uma bola de vergonha em meio à Natureza exuberante. Os pingos engrossam. Um trovão ribomba ao longe. Um raio atinge a árvore acima de mim. Um tronco se parte e eu espero que caia em minha cabeça, esmagando-a, principalmente, a parte despida de meus longos cabelos.

Preciso dizer que o tronco caiu ao meu lado, deixando-me ilesa? CREIO QUE NÃO. Praguejando contra os céus, eu me jogo debaixo da árvore atingida. Assusto-me com seu grito de pânico. Ele se ajoelha ao meu lado. Consigo ver o movimento desordenado de seu diafragma. Sinto vontade de dizer a ele que sou imortal. 'Não tema. Não morro'. Nossos olhos se cruzam uma segunda vez. Ou terceira. Não sei. Não contei. Ele se senta ao meu lado e me acolhe em seus braços, puxando-me contra seu peito. Estou prestes a crer que seja mesmo o meu Giovanni. Ainda há dúvidas após tantas evidências. Ele sempre me dizia que meus neurônios eram lentos o que dificultava meu aprendizado. Eu o odiava por isso, mas, agora...certifico-me de que ele está coberto de razão.

Há manchas escuras, concentrações que parecem pontos nas fibras da íris, em tons de ouro claro a negro como borboletinhas que jamais vira em outros homens. E eu conhecia os olhos do padre porco morto. Eram embaçados, acinzentados, sem brilho ou vida.

Meu Giovanni sempre dizia que se pode conhecer um ser humano através de seus olhos. Pode-se detectar doenças e curá-las através dos olhos e que ninguém tem o mesmo olho que o outro. "São como as nossas impressões digitais. Nunca serão iguais as de outras pessoas no mundo inteiro!", dizia ele, exultante, quando, em vão, tentava me ensinar algo. Mas, os olhos...o que ele me dissera sobre os olhos, eu gravei em minha caixola. Agora, vendo-os bem de pertinho, reconheço os pontinhos em formato de borboletas douradas que pertencem somente a ele. - "Como não ser ele?", pergunto-me aninhando minha cabeça cansada no espaço entre seu ombro e seu pescoço, contendo meus impulsos em lamber sua pele, suas veias que saltam, vigorosas, azuladas, apetitosas. - Quem é vc? - Sussurro em seu ouvido, aspirando seu cheiro de sândalo, ardentemente natural e picante. Tem que ser ele. Tem que ser ele...

***

Estou a um centímetro de seu pescoço, deslizando a mão em seu braço ainda musculoso. Elevo meus olhos cheios de culpa e remorso por meu passado repleto de máculas. Nossos lábios estão muito próximos e tudo o que quero é provar de sua boca, de seus beijos avassaladores, meigos onde o verdadeiro amor habita.

- Te amo tanto...- Eu o ouço gemer em meu ouvido. Sua boca procura pela minha. Nossos lábios se esbarram. Seus dentes mordiscam minha boca e meu gemido o impele a me tomar em seus braços, puxando-me num arroubo de lascívia. Agora estou em seu colo. Rimos como dois adolescentes sobre os pingos da chuva que amaina. Jamais sairia dali...se pudesse. Mas sonhos são desfeitos pela realidade esmagadora. E é hora de acordar.

- PARA! - Meus braços o repelem com tanta força que sua cabeça colide contra o tronco úmido. Fito-o com repulsa. Estapeio seus braços que me querem de volta. - Não posso...- Eu o repudio retorcendo a boca como se eu sentisse asco por ele, quando, na verdade, tenho nojo de mim mesma, dos homens com quem me deitei, do demônio que me possuiu e me degradou, das famílias que destruí, da doença que contraí. - Não encosta em mim! Não sei por onde andou. Não sei o que fez durante esses anos! Não sei com quem andou! - Ele me fita com perplexidade, embora haja um brilho de benevolência em suas feições. Seus braços estão cruzados abaixo do tórax enquanto parece esperar que eu termine o meu show de lamúrias. A chuva fina se mistura ao vento cortante. Rolo meu corpo para longe dele, curvando-me de frio e vergonha em meio à clareira. No entanto, mesmo enlameada, continuo a despejar sobre ele a minha angústia. As mãos espalmadas. Os braços em movimentos desconexos. Os olhos que vão de um lado a outro sem coragem de enfrentar os dele. - Por que nunca me procurou!? Por que me deixou pensar que havia morrido!? Por que me fez chorar todos esses anos!? - Ele se ergue lentamente sem tirar os olhos de mim. Eu o imito. - POR QUÊ!?

- Não grite. - Fala baixo, num tom controlado. Isso me irrita.

- AO INFERNO! - Com as palmas das mãos, eu o empurro para trás. Uma, duas, três vezes. - Por que me deixou sozinha no mundo, Giovanni!? Por quê!? - Eu me perdi, amor. Eu me perdi para sempre de vc. - FALE ALGUMA COISA! - Ele abana a cabeça lentamente e me observa como se estivesse lendo meus pensamentos, tentando compreendê-los. E está! - FALE ALGUMA COISA! - Insisto, colérica, voltando a empurrá-lo. Ele permanece mudo, firme, deixando-me extravasar a raiva de anos de solidão. - Diga alguma coisa, Giovanni! Diga! - Suplico, exausta. Ele abana a cabeça uma segunda vez sem nada falar, o que me faz recobrar as forças. "A raiva é uma ótima fonte de energia quando bem direcionada", lembro-me de suas palavras quando o chuto, empurro, soco seus braços, berrando sem controle. - Diga que sabe de tudo, seu verme! Diga que sabe de tudo!

- Nada mudou...

- MUDOU! - Bato em seu rosto. Arrependo-me, cobrindo meu rosto, chorando, praguejando. Xingando. - NÃO MINTA! - Meus olhos raivosos o fulminam. Eu o odeio, pois ele continua impassivelmente sereno. Doeria menos se ele me chamasse de vagabunda, suja, prostituta. Se cuspisse em meu rosto, jogando-me ao chão, chutando a boca de meu estômago. - Por que não faz nada!? - Cerro os punhos e, num átimo, meu braço sobe com força atingindo a base de seu queixo. Seu pescoço se inclina dolorosamente para trás. Eu o aguardo. Eu quero beijar seu queixo, me desculpar. Pedir que compreenda a dor que sinto. A vergonha. Seus olhos úmidos me fitam com tristeza e sem palavras. - INFERNO! DIGA QUE SABE DE TUDO!

- Eu sei.

- Eu sei que sabe! - Replico, enfaticamente. - E não vai fazer nada!?

- Não me importo.

- NÃO SE IMPORTA!? - Exclamo, aturdida. Sinto a dor de mil agulhas em meu peito. - Como não se importa? - Falo baixo. Muito baixo porque me sinto um nada. - Como não se importa que eu tenha me deitado com todos os homens da cidade?

- Pare. - Beirando à loucura, reviro os olhos e vejo as copas das árvores bailando, murmurando algo que não compreendo. Quero que meu coração pare de doer. - Vc não me entendeu ou não quer me entender. - Sua voz grave me avisa de que ele está prestes a ultrapassar o limite de sua vasta paciência. Porém, eu continuo, com um sorriso macabro em meu rosto sujo de lama onde lágrimas abrem caminhos finos e verticais.

- Vc não se importa!? - Aos poucos, aumento o tom da voz esganiçada. - Não se importa com o homem que me acompanhou durante meses!? Com o espírito que me violentou, me vendeu, me usou das formas mais vis que um ser humano pode ser usado? Não se importa que eu tenha gostado de ser sua escrava na cama!? Que tenha chegado ao ápice com ele dentro de mim!?

- Pa.re. - Agora vejo o fogo em seus olhos. As mãos que se fecham e se abrem em movimentos lentos assaz intensos. - Não continue...

- Não se importa que eu tenha vendido minha alma a um demônio para me livrar desse espírito insaciável, viciado em sexo? Não se importa que eu tenha dividido minha cama com mais de um homem, por vezes, mais de dois de uma só vez? - Meu tom sarcástico o incomoda, pois ele leva as mãos ao rosto, cobrindo-o. Meu tom sarcástico incomoda a mim também, mas sou incapaz de parar. Chorando, prossigo, ignorando seus avisos silenciosos. - Não se importa que eu tenha matado, roubado? Que eu tenha sido venerada por todos e, logo depois de usada, ser jogada no lixo como um pano sujo?

- CHEGA! - Ele cerra os punhos e eu vejo sua mão tremer bem próxima ao meu rosto. Seu cotovelo se eleva e cerrando os olhos, estou pronta para ser atingida. Ouço o som de um baque surdo. Abro os olhos e o vejo encostar a testa na árvore. Os nós dos dedos de sua mão estão sangrando. Ele desviou a mão de meu rosto e descontou sua fúria no tronco cujas cascas se espalham pelo chão. Essa é a hora de lhe pedir perdão, de beijar os nós de sua mão. De dizer que o amo mais do que a mim mesma. Mas eu estou sempre errando. Volto a atacá-lo com socos e pontapés. Ele se defende com os braços que tentam me controlar. - PARA COM ISSO! - Ordena ele, cravando suas mãos em meus pulsos, enquanto eu me contorço, chutando lama em sua calça, misturando meu choro à palavras desconexas. Estou surtando e ele faz o que sempre fizera. Espera a minha tempestade passar, evitando que eu me machuque. Abraça-me com força, virando-me de costas para ele. Minhas costas estão junto ao seu peito. - Se acalma, amor. - Sua voz é suave conquanto vigorosa e seus movimentos rápidos e precisos. Ele me prende, cruzando meus braços sobre meus seios. Eu mordo sua mão. Ele grita de dor, no entanto, não me solta. Estou chorando, enlouquecendo. Tenho medo de falar...de tocar no que mais me aflige. No que certamente irá me separar dele, justo agora que eu o reencontrei. Cerro meus olhos e, enfim, perco as forças, reclinando minha cabeça para trás, encostando-a em seu peito. Não posso falar que estou doente. - E nem precisa. - Arquejo de dor porque sei que ele me ouviu. MALDITA TELEPATIA! - Eu sei, amor. Por onde andei, em pensamentos, sempre estive com vc. - Aos poucos, meu coração desacelera, minha visão perde o foco. Minhas pernas estão bambas. Ele me toma em seu colo. - Eu nunca me afastei de vc, amor.

- Vc sabe? - Cochicho, com a expressão insana, em seu ouvido como se houvesse mais alguém ali que não devesse conhecer a verdade. - Se sabe, sabe que não ficaremos juntos, não é? - Agarro-me à gola de sua camisa, fitando-o com os olhos avermelhados. - Não sabe? - Enterro meu rosto coberto pela vergonha em sua camisa úmida, colada ao corpo. Encolho-me sentindo seus braços envolvendo minha cintura. - Vc não entende...- Ele me aperta contra ele, beijando o topo de minha cabeça. Não me atrevo a fitá-lo nos olhos. - Sabe que não tenho cura? - Ele me ergue pelas pernas e pelo tronco e me carrega em seu colo. Agarro-me em seu pescoço. - Vc é tolo. - Suspiro sorrindo contra sua camisa. Ele me joga para cima a fim de me ajeitar em seus braços. Eu me assusto, embora não me afaste de sua nuca, do cheiro amadeirado que deixou de fazer parte de minha vida durante anos de dor e solidão. Enfim, eu sei que ele é ele. O meu Giovanni.

- Para tudo se tem uma solução, mocinha. - Ele ainda brinca. Após ouvir tantas barbaridades, ele ainda brinca. Eu o amo tanto! - Exceto para a morte. - Suas palavras estão tão cheias de convicção que uma onda de esperança me inunda de alegria. - Ervas, poções, Alquimia...- Ele ergue uma sobrancelha, lançando um olhar insinuante, tosco, místico. Isso me faz sorrir entre lágrimas. A cada palavra, um sopro de vida. Eu penso em beijar sua bochecha, mas desisto. Contaminá-lo é a última coisa que faria em minha vida. Prefiro morrer. Não me surpreendo quando, de súbito, ele beija demoradamente minha face. Seu beijo chega a estalar. - Não confia em mim? - Assinto com a cabeça que volta ao seu peito. Ele caminha em direção à nossa casa. Meu corpo chacoalha enquanto ele anda, então percebo que ele manca. Meu Giovanni foi ferido e manca.

- Meu amor...- Suspiro ao seu ouvido, antes de ser tomado pelas impressões que minhas mãos captam. - O que fizeram contigo...- Lamento e as visões tomam conta de mim. Arquejo, à procura de ar porque eu sei que o que verei daqui por diante vai acabar comigo. Esse é o meu dom. A minha maldição.

Entrego-me à Escuridão e, então, as cenas chegam com tudo. Sangue e dor embaçam meus olhos distantes...

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 29/01/2020
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