MORGANA - 'MAU AGOURO'

MAU AGOURO

Eu o vejo caminhando vacilante, com os bracinhos abertos em minha direção. Seu sorriso frouxo e as mãozinhas rechonchudas que ora se abrem ora se fecham em busca de meu colo. O suave ruído de suas risadas se espalham pelo ar, misturando-se às borboletas que o rodeiam enquanto dá passos ligeiros e se distrai com tudo o que descobre ao redor. Ele vem em minha direção e o sol incide sobre seus olhos azuis. Ele pisca várias vezes e seu narizinho se enruga. Ponho a mão no peito com medo de que ele pare a qualquer momento de tanta emoção. Seus cabelos negros e encaracolados. Sua pele alva, seus braços e coxas cheios de dobrinhas que finjo morder enquanto o ouço gargalhar durante o banho, inclinando levemente a cabecinha para trás e então posso beijar seu pescocinho roliço e macio como algodão.

Vejo seu pai, orgulhoso e abobalhado cercando-o com os braços ao seu redor, pisando na relva, impedindo-o de tombar para trás até que nosso filho me alcança emitindo curtos ruídos deliciosos de euforia e contentamento. Sua boquinha aberta está bem próxima ao meu rosto, então posso aspirar seu hálito puro, limpo, reconfortante. Quero beijá-lo, apertá-lo, mordê-lo de tão gostoso que ele é! Seu cheiro aquece meu coração com mais intensidade do que os raios de sol que douram nossa pele. De súbito, eu o tomo em meus braços e o giro como num carrossel vendo seus olhinhos que expressam surpresa e exaltação. Castiel parece assustado, mas sorri. Eu mal me importo com os gritos aflitos de Giovanni para que eu tenha cuidado. Isso me faz rir. A forma como nos cerca, enquanto eu giro, fitando-me como se eu fosse uma louca prestes a arremessar nosso filho à distância tal qual um saco de batatas me faz rir. A maneira como os olhos meigos e curiosos de meu filho me encaram me faz rir...e chorar. Meus olhos se embaçam e então, Giovanni, mais preocupado do que enciumado o toma de mim asseverando que sou muito impulsiva e inconsequente. E isso também me faz rir. Ver o pai de meu filho abraçando-o, acalentando-o junto ao seu peito me faz sorrir e as lágrimas não cessam porque a felicidade me faz rir e chorar sem que eu queira acordar. Estou com Castiel em meu colo, minha testa colada a dele, o vento toca em nossos rostos e esvoaça nossos cabelos. Eu enrugo o nariz porque sei que isso o faz rir. Ouço mais uma vez o som contagiante de sua risada que se emenda a outra e a outra porque não quero deixar de ouvir, de sentir que estou viva e acordada. Giovanni me assusta quando nos abraça, apertando-nos contra seu peito com tanta força que chego a sentir os batimentos de seu coração em minhas costas. Ele me sussurra palavras de amor e me pede perdão por ser tão severo comigo. Eu balanço a cabeça e digo que ele não é severo e sim, tolo. Ele beija meu pescoço e me acende como as chamas de uma lareira. Ainda assim, continuo apreciando o rostinho de nosso filho. Os olhos que sorriem, as covinhas nas bochechas rosadas, as gengivas num rosa claríssimo, a boquinha em formato de coração, a língua vermelha como morangos...

Somos dois adultos emocionados e abestalhados apreciando o primeiro par de dentes que o deixa encantador e que se mostra a cada vez que jogo meus cabelos para frente, sacudindo-os freneticamente, emitindo fonemas sem sentido, patéticos, que me fariam corar diante de adultos que não compreendessem o que é a maternidade e o quão estupidamente dependentes ficamos daquele ser indefeso que ocupa todos os espaços de nossa vida. Percebo que ser mãe é perder a paz para sempre. É saber que nunca mais deixarei de me preocupar com a vida dele, mesmo depois de crescido, casado, pai de seus próprios filhos. Percebo que ser mãe ao lado de Giovanni é uma benção do Criador que parece gostar de mim. Ao lado de Giovanni, tudo fica mais fácil. Tudo fica mais doce. Doce como uma torta de morangos.

Morangos. Eu os odeio. Odeio morangos. Aos domingos, há tortas de abacaxi, banana, chocolate, pêssego, cereja, limão, framboesa, manga, exceto morangos. Morangos não. Não sei porque, mas odeio morangos. Odeio noites de lua cheia. A lua que me abençoou; que me fecundou. Odeio a chuva fina que molha meus cabelos e lava minhas lágrimas. Onde estão os raios de sol que incidiam sobre os olhos claros de Castiel? Por que ele parou de gargalhar? Eu faço caretas e ele não ri como agora há pouco. Em seu rostinho há indícios de medo. Sua boquinha treme de medo. Ele ameaça chorar, fazendo bico e tudo o que quero é protegê-lo do mal. Mas o Mal está tão perto e é tão insidioso, perspicaz, sedutor. Malditos morangos. Por que não deixou que o sol apontasse no Leste? Por que saiu às pressas? Está escuro e frio. A barra de minha camisola está suja, imunda e já não há como regressar. Meus pés estão úmidos, a grama está molhada. Os seixos, escorregadios. Preciso avisar a Giovanni para que tome cuidado quando vir, correndo, ao meu encontro. Venha devagar e em silêncio. Não deixa que ele o perceba. Venha cantarolando e então, comunique-se comigo por telepatia. Não o deixe ouvir, amor. Cante. Cante. Cante e venha me salvar.

Daqui de cima, tudo fica tão pequeno...tão ínfimo. Dá vontade de mergulhar.

Ele me diz que não devo pensar nisso. Que isso é pecado. Ele me diz que o Criador não gostaria que eu o fizesse.

- O Criador me odeia. - Digo contra o vento, sentindo-o logo atrás de mim. - Não sabia? - Eu o indago com a voz fraca de raiva. Minhas mãos cobrem meu ventre. Minhas mãos protegem meu filho de todo o Mal e todo o Mal está bem perto e possui a voz mais melíflua que já ouvira antes. Ele me diz que estou enganada. Eu o pergunto se já conhecera o Criador para saber o que Ele pensa. Ele responde que sim.

- Fui um de seus melhores soldados. - Eu fico fraca de tanto rir. Chego a cair de joelhos e, ajoelhada, permaneço sem vontade de me reerguer. Tenho as mãos cheias de terra. Terra escura e úmida. Tenho o camisolão molhado que delineia meu corpo, minhas curvas, o volume dos meus seios. Eu fito seus pés descalços à minha frente sem coragem de elevar minha cabeça e encarar sua face. Seu cheiro adocicado me deixa tonta. Eu sorrio, desapontada, abanando a cabeça. Não consigo acreditar que Giovanni tenha mentido para mim. Não consigo acreditar que ele mentira ao falar dos Degredados, Exilados, Banidos. Dos que foram para nunca mais retornarem e reverberarem a maldade cometida entre os homens na Terra. "Vc se enganou, amor". Pela primeira vez em nossas vidas, eu estou com a razão. Eu daria meus dois braços para não estar com a razão, amor. Mas estou.

Seus braços vaporosos me envolvem e sua boca carnuda sussurra.

- Afaste-se daí, meu bem. É perigoso.

- Volte para o inferno. - Resmungo, chorando e rindo ao mesmo tempo. Pareço embriagada, mas nada bebi. É só o ódio. Ergo-me num repente, girando o corpo com um pedra na mão. Quero atingi-lo em cheio bem no meio da cabeça porque o odeio. Quando giro, ouço seu grito desesperado. E sei que seu desespero não é por ele, mas por mim. Eu me desequilibro, perigosamente próxima ao barranco de terra fofa. Ele, como um sopro quente, circula meu corpo, empurrando-me para longe do despenhadeiro. Tropeço nas pedras e caio de cara na lama. Amparo meu corpo com as duas mãos espalmadas no chão. Ergo a cabeça e me pergunto qual o seu interesse em me manter viva. Meus olhos estreitos o procuram na escuridão. Ele me quer viva. Então somos dois, porque eu não quero morrer. Não mesmo. Não agora que encontrei a felicidade, embora a ausência prolongada de Giovanni me preocupe em demasia.

- Ele talvez tenha se perdido. - Sugere ele, num tom irônico. Puxo o ar pela boca, balançando a cabeça com determinação. Ele não conhece o meu marido. Nunca o vira antes e, se depender de mim, nunca o verá. Tenho a pedra novamente em minha mão. Aperto-a entre os dedos com força até que as pontas fiquem brancas. Arremesso-a contra o mar, a cerca de dois mil metros de altura. Ele me conhece bem e sabe, sente, fareja o ódio em mim. - Talvez não volte. - Diz a voz.

Ele é apenas uma voz idiota que pensa conhecer nossas vidas. Uma voz sem corpo e, talvez, seja fruto de minha imaginação. Imaginação fértil de uma mulher grávida, com frio, fome, medo frente aos imponentes penhascos brancos cobertos de vegetação em seus arcos brancos. Giovanni diz que não trocaria este pedaço de terra por palácio algum. Diz encontrar aqui um pedaço do Céu e que pretende me ver envelhecer aqui, ao lado dele e de nosso filho e netos. Eu concordo, desde que ele cerque todo o perímetro da casa com cercas altas, estreitas por onde nosso menino, cada vez mais esperto e desbravador, não consiga passar. Castiel não para de andar de um lado para o outro como um bonequinho de corda, deixando minhas costas arrebentadas ao final do dia. Eu não me importo em segui-lo, gritando, rindo, agachando, levantando, girando, correndo, gritando, ralhando, sorrindo, tombando na relva, exausta, desde que ele jamais chegue perto de onde estou.

Ele é tolo se pensa que me engana. E se estiver me ouvindo, melhor ainda. Saiba que já não tenho medo.

- E não precisa ter...- Seu braço se estica em minha direção chamando-me para perto de si. - Quero o seu bem. - Eu cruzo meus braços atrás das costas e deixo bem claro que não aceitarei sua oferta. Não quero que ele me toque. Embora não o veja com os olhos do corpo, eu sei que ele sorri e em seus olhos esverdeados, eu vislumbro o receio, o pânico, pois eu me encontro, novamente, à beira do abismo que me atrai como um ímã. - Venha, meu anjo! Venha!

- Que o Diabo o carregue! - Eu passo por ele - eu passo através dele - e o deixo falando sozinho. Apresso meus passos, pois ouço o choro de Castiel lá dentro de casa. Ele chora e eu me descontrolo. Sinto dor. Um dor pungente no peito. Nos seios que acabaram de amamentá-lo. Ele chora, mas não é de fome. Não. De fome não há de ser. Eu tento acalmá-lo com minha voz. Digo que estou chegando, mas estou mentindo porque não sei onde ele está. A casa se agiganta, as portas se expandem e eu me apoio ao batente de uma delas. Estou no quarto de nosso filho. Aproximo-me de seu bercinho e ele não está lá! Grito, horrorizada porque ele não está lá, mas ainda continua a chorar, a me chamar. Seu choro é de medo. Medo do escuro, assim como meu Antoine. Castiel teme a escuridão como Antoine. Antoine que dorme abaixo da terra escura. Antoine que sente frio e fome dentro de sua caixinha de madeira, isolado de todos os que o amaram enquanto vivia. Eu me odeio por não tê-lo tirado de lá. Odeio Giovanni que me impedira de retirar seu corpinho sem vida, gelado, sem cor, da cova imunda onde o depositaram e o esqueceram. Eles o esqueceram.

Esquecer. Esquecer. Esquecer.

O choro parou. Aaah, graças a Deus ele parou de chorar. Estou exausta. Preciso descansar. Preciso da ajuda do pai de meu filho e não o encontro. Eu não pedi nada. Não pedi comida. Não disse que tinha fome. Por que me deixou no meio da noite? Eu só queria ficar recostada em seu peito, amor. Ouvir seu coração, contar as batidas, ouvir sua voz rouca, sentir seus dedos emaranhados em meus cabelos e dormir ao seu lado.

Dormir e dormir e dormir.

Por que só tivemos direito a uma noite de amor? Após tantos anos de separação, uma única noite de amor!? Isso não me parece justo! DIABOS, ISSO NÃO É JUSTO!

- Ah, não chore! - Zomba ele. - Talvez ele retorne. Talvez não.

- Cale a sua boca, imbecil! Por que voltou!? Como escapou??? - Eu o espano com os braços girando como as pás de um catavento enfurecido. - Eu vi quando vc se desintegrou! Eu vi! Lilith te matou!

- Mortos não morrem.

- Ela te levou. - Digo num lamento.

- Eu fugi.

- Cale a boca. - Imploro, baixando a cabeça.

- Eu fico quieto desde que não comprometa a saúde do bebê. - Assevera ele, num tom de voz tão soturno que chega a eriçar o pelos de minha nuca. Eu inspiro e seguro o ar nos pulmões tempo suficiente para compreender o sentido de suas palavras. A intenção por detrás delas. Solto o ar com força, bufando, praguejando, vasculhando, derrubando as panelas, os copos. Os copos se espatifam no chão e centenas de diamantes brilham sob a luz incandescente das chamas crepitantes da lareira. Ouço o uivo do vento a soprar lá fora. Piso nos cacos de vidro. Solto um gemido e deixo uma trilha de sangue por onde ando. A porta está aberta e o sol custa a surgir no horizonte. Estou cambaleando de cansaço. Quero voltar à minha cama, aos braços de Giovanni. Ele disse que faríamos tudo novamente. Disse que me amaria como o fizera no início da noite. 'Ou foi na noite passada?', dou de ombros. Ele disse que descansaria um pouco porque eu o havia consumido com minha fome de prazer. Disse que, assim que abrisse os olhos, faria amor comigo estando eu acordada ou não. Levo a mão à boca contendo uma risada histérica. Sinto meu rosto arder quando me lembro de seu membro dentro de mim e do prazer devastador que me causara. Eu o quero novamente. Eu o quero. Quero meu homem de volta. Não quero morangos. Odeio morangos.

MORANGOS MATAM!

Está escuro dentro de casa. Ele não está em seu berço. Deveria estar, mas não está. Crianças de sua idade não saem sozinhas de seus berços. Isso não parece real. Nada parece real. Giovanni montara o berço um mês antes de Castiel nascer. Eu o avisei.

- "Isso é mau agouro!"

Giovanni não me ouviu. Giovanni não me ouve. Meu bebê não me ouve. Eu grito por ele atravessando o longo corredor que se estica a cada passo que dou adiante e, a cada passo que dou, pareço estar recuando. Os gritos! O choro de meu filho! Eles voltaram. Peço, imploro ao Criador que o proteja. Grito que espere por mamãe. Estou chegando. Estou chegando. Aspiro a brisa do mar. Ouço o estouro das ondas contra as rochas pontiagudas.

Meu filho parou de gritar, de chorar. Meu filho não está no berço ou debaixo dele. Ele me explica, calmamente, que meu filho ainda não nascera. Eu gargalho em seu rosto. Eu cuspo em seu rosto que se dissolve como o vapor que sai de uma chaleira. Ele mente porque é mau. Mente porque tem algum objetivo. Estou prestes a descobrir. Basta que ele fale um pouco mais e...pluft! Eu o pego!

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 09/02/2020
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