'MORGANA - EPÍLOGO'

EPÍLOGO

A chuva cessa. O vento para de rugir. As copas das árvores se imobilizam como num quadro de 'natureza morta'. Uma forte dor em meu peito. Um arrepio fortíssimo em minha coluna. Uma voz que me sussurra: 'Saiam já daí!'. Giovanni pega em minha mão enquanto caminhamos de volta a casa. Ele se assusta com meu soluço de espanto. "A casaca!", exclamo como se houvesse descoberto a cura para a Peste Negra. Recuo, olhando-o nos olhos. Ele me pede que a esqueça. Ele tem outras. Eu digo que não. Sei que é a sua preferida. Ele insiste. Eu sou teimosa. Ele está atrás de mim. Eu o mando calar a boca porque estou firmemente disposta a resgatar sua casaca. Ele me alcança e, com um leve empurrão em meu ombro, passa a minha frente. Vai praguejando e subindo o morro até o seu cume. Eu o admiro, bato palmas quando ele ergue a casaca no braço esticado, as pernas semiabertas, o torso ainda molhado. O sorriso encantador. "Meu herói!".

- Eu detesto essa sua teimosia que me encanta. - Ele diz num tom de brincadeira, prestes a descer. Meu coração para de bater por segundos. Meu olfato se apura. O doce e fortíssimo cheiro de algo doce e sutil que reconheço, uma lufada de ar quente em meu rosto, um braço que transpassa meu corpo, na altura do peito. Um corpo que atravessa o meu, deixando-me sem fôlego. - Morgana? - Ele me questiona num tom surpreso, dando um passo em minha direção. - Vc está bem? - Pergunta do alto do pico. Diz que estou pálida como uma morta. Eu o vejo sacudir a casaca contra o vento, antes de tomar o caminho de volta. Seus olhos me fitam com desconfiança porque não falo. Não me movo. Não respiro. Congelo de pavor quando sinto o maldito tão próximo a mim. Posso afirmar que ele está em mim. Posso refutar, sem sombra de dúvidas, a teoria de que dois corpos não ocupam o mesmo espaço porque estou dividindo o meu com o de outra pessoa. Outro ser. Um ser monstruoso que se apossa de meu corpo momentaneamente. Quero erguer meu braço. Gritar para que Giovanni fuja. Que saia dali, de cima do monte porque o Mal está em mim.

Giovanni me olha por um instante. Fica observando meu rosto que se altera. Ele repete meu nome num tom mais grave quando nota a torção dos meus lábios tensos, a contração de meus olhos e meu jeito de baixar um pouco a cabeça e olhar para ele por baixo das sobrancelhas. Ele me chama uma outra vez, mas dessa vez, não há preocupação em sua voz. Há a certeza de que eu não sou mais eu. De que sua esposa não se encontra diante de dele.

- Amor? - Diz ele num fio de voz. Duas lágrimas furtivas escorrem de meus olhos. Seu dom não é o da visão e, se não posso pensar, ele não pode me ouvir. Estou presa em mim mesma. Presa, muda, lutando contra uma força que desconhecia. Sinto-me trancada em meu próprio corpo sem poder mover um dedo sequer. De súbito, algo sai de mim, deixando-me vazia, tomando minhas forças. Do chão, sem vitalidade, eu vejo Ga'al, a fumaça negra se adensando tornando-se visível, forte, decidido, furioso. Ele para por segundos, volta-se para trás e me lança um olhar perverso. Com a voz suave como a de um anjo, diz num sorriso maligno.

- Por nós dois.

Com a força e a rapidez de um trem desgovernado ele investe contra Giovanni que, agora, o enxerga. Jamais me esquecerei de seu olhar onde a surpresa, a compaixão e o ódio se mesclavam. Giovanni, no momento final, reconhecera no monstro que o empurrara abismo abaixo, traços de humanidade. O som de seu grito curto de surpresa e pavor me faz sair do transe. Sem pensar em nada, ergo-me e, como uma leoa que tenta salvar seu filhote do predador, eu me lanço no ar e voo de encontro à terra. Meu corpo desliza até ele, alcançando a mão que ainda se apoia na ponta de um galho seco cravado no montanha rochosa. Sorrio, arquejando, quando minha mão toca a dele. Minha mão se agarra a dele enquanto me firmo no chão. Minhas mãos se agarram ao seu pulso com determinação e desespero.

- Não vou te soltar! - Minha voz aguda entrecortada por soluços o faz encarar meus olhos. Seus olhos me pedem o contrário. - Segura, Giovanni! - Ordeno, urrando, prendendo, sustentando, tentando trazer seu corpo suspenso de volta à terra firme. Ouço, aterrorizada, o estalar do galho seco que se parte ao meio. A mão presa ao galho se solta e seu peso duplica. Ele não se prende ao meu pulso e seu braço direito está solto no ar. Meus olhos arregalados enxergam abaixo dele os rochedos, o mar que se agiganta a milhares de distância. Seu corpo pende em minhas mãos quando imploro que ele não me solte, que se agarre a mim. Ele não quer desistir, mas não quer me levar junto a ele. - GIOVANNI, SEGURA EM MIM! - O som agudo e atormentado de minha voz o faz me obedecer. Sua mão direita se junta às minhas mãos, aos meus braços dolorosamente estirados. Ele sente a minha dor. Eu sinto o seu medo, o seu amor por mim. - Não desista. - Suplico baixinho, os cabelos esvoaçando contra ele, tampando-me a visão. Digo, afirmo que vou conseguir, embora suas mãos estejam deslizando, machucando as minhas. Nossos olhares se cruzam e percebo sua intenção. Horrorizo-me com o que vejo. - Eu vou conseguir! Não me solta. - Ordeno com a voz trêmula, os olhos severos, as lágrimas que os embaçam. - Não se atreva a me soltar, Giovanni ou eu te mato. - Ele se mantem em silêncio, a cabeça erguida, o olhar cheio d'água. Na boca, um sorriso triste. O mesmo sorriso desapontado de quando não trazia o suficiente para nos alimentar com a fartura que dele eu exigia. O mesmo sorriso frustrado de quando ouvia, calado, minhas queixas, meu mau humor, as palavras ofensivas que jogava em seu rosto sempre sereno, a boca calada. Eu o vejo agora. Eu o vejo e me arrependo por tê-lo tirado de sua vida abastada. Por tê-lo afastado dos pais que o tratariam com amor, onde jamais passaria pelo que passara quando abdicou de tudo...tudo por mim. Ele me ouve. Em sua muda aflição ele me ouve e, por mais força que faça para não me soltar, percebe que me arrastará consigo se não o fizer. - NÃO! NÃO SE ATREVA!

- Me solta. - Ele me pede com suavidade, mas seus olhos...seus olhos imploram pela vida. Eles os fecha. Não quer que eu o veja fraquejar. Vc não é fraco. Nunca foi. Vc é meu. Está me ouvindo. Abra os olhos. Olhe para mim! - Morgana...- Seu sussurro, uma lágrimas furtiva no canto do olho. Um forte dor em meu peito. Seus pés se balançam soltos no ar. Seu corpo é sacudido de um lado para o outro. - Solta! - Grita ele enquanto afrouxa as mãos de meu punho. Eu o xingo enquanto minhas mãos as apertam ainda mais. Tento desviar meus olhos das ondas bem abaixo dele, da visão assustadora do que o aguarda. - Vc não vai conseguir. - Ele me avisa aos gritos. - Não vou te levar junto. - Seu cenho carregado, longe de me assustar, me dá forças quando grito bem junto ao seu ouvido.

- NUNCA! - Cerro meus olhos e ergo uma prece silenciosa ao Criador. "Ajuda-me! Por, ele. Ajuda-me! Só desta vez. ME AJUDA!"

A chuva volta a cair com intensidade, lavando a terra, causando um desmoronamento entre nossos corpos unidos pelas minhas mãos em seus pulsos. As deles, agora, nos meus. Meus pulsos doem tanto que sinto um estalo em suas articulações. A água da chuva lava a terra e, de chofre, a ponta de uma pedra surge cravada na montanha. A pedra onde ele se apoia e impulsiona, com um dos pés, o corpo para cima. Ele não quer morrer. Não quer desistir. Eu não quero que ele morra ou desista.

- Vc é meu. Só meu. Se não ficar, eu vou. - Ameaço-o com a voz rouca, baixa, falhando a cada respiração. Ele é pesado. Meu corpo desliza um pouco mais para frente. O dele procura apoiar o pé, estabilizando-se. Já não enxergo seus olhos que procura por alguma saída. Ele está se movendo, subindo. Minhas mãos escorregadias, já não o prendem como antes. - Não vou te perder. Olha nos meus olhos. Olha! - Subitamente seu olhar aterrorizado encontra o meu. - Não me deixa...

- Não...- Fala tão baixo que mal consigo ouvir, mas, agora, apoiado à pedra, solta sua mão direita de meus pulsos pousando em outra pedra lavada pela chuva e, num solavanco, impulsiona o corpo para cima, alcançando a beirada do despenhadeiro, agarrando-se à grama com força, garra. Eu alcanço seus braços, os ombros. Estou deitada em uma poça de lama, rindo, chorando, puxando-o para mim enquanto o vejo lutar por se manter ao meu lado. Reteso todos os músculos de meu corpo enquanto o sustento. Mesmo que meus pulsos estejam se deslocando, eu o sustento. Mesmo que os espasmos, os jorros de sangue tenham retornado, contraindo meu útero, eu o sustento, porque, sem ele...não há motivos para permanecer. Ele diz que vai conseguir. Ele afirma que vai conseguir. Com a metade do tronco apoiado na grama, eu o agarro pelo cós da calça do pijama, arrastando-me para trás. Sinto falta da casaca onde me apoiaria melhor, mas, ainda assim, eu o seguro. Meu corpo dói. A pele dos meus seios contra a terra está em carne viva, mas nada se compararia à dor de vê-lo cair. Minha alma vibra a cada centímetro que ele vence, arrastando-se ao meu encontro. Nossos corpos, agora, estão emparelhados, deitados no chão sob a chuva intensa.Sua cabeça está na altura de minha cintura. A minha, na altura de suas costa nuas. Embora não consiga enxergar seus olhos, ouço seu riso e rio com ele conquanto esteja chorando. Vejo seus joelhos cavando espaço entre a terra molhada, os pés que, a custo, encontram apoio. Animada, puxo-o contra mim sem pensar no que ele me diz em pensamento. Ele diz que me ama num tom soturno que me faz chorar de dor. Digo para se concentrar e continuar a empurrar seu corpo em minha direção. Digo que ainda não acabou. Grito contra o vento que voltara a rugir. Grito contra a chuva que, agora, ataca meus olhos que se mantem fechados.

- Nunca vou deixar de te amar...- É um lamento. Uma declaração de amor. Uma despedida. Irrito-me profundamente e, irritada, ganho forças.

- DIABOS! CALA A BOCA! - Eu o puxo com toda a raiva que sinto. Eu o puxo e sei que a outra metade de seu corpo está prestes a surgir do abismo onde o maldito o lançara. Abro os olhos a custo. Antes não os tivesse aberto. Seu olhar não está nos meus olhos. Está acima de minha cabeça. Seu olhar repleto de receio, espanto. Seu olhar incrédulo. O que vejo em seus olhos, eu não sei decifrar. Não. Eu não quero decifrar, por isso, eu os fecho novamente e me concentro. Ele para de se impulsionar para cima. Ele se imobiliza porque algo o assusta tremendamente. De olhos fechados, sinto seu temor e grito, grito, grito que continue a me ajudar. Grito, imploro para que se mova...que se jogue em terra firme. - Não me deixa, amor...- Minha voz sai abafada por entre os braços esticados, a cabeça quase enterrada na lama, entre os braços que o puxam com todas as forças do meu ser. Não vou chorar. Não posso. Quero minha visão nítida. Minha audição perfeita. Minha sensibilidade afiada porque o maldito me rodeia como a hiena cerca os restos deixados pelo banquete dos leões. Ele me observa...observa a cena e sorri com desdém. Giovanni não conhece a maldade. Não a compreende como eu. Não compreende a Escuridão como eu. Não sabe do que ele é capaz de fazer. Giovanni não se move. Um novo esforço por mantê-lo firme em meus braços. Um novo jorro de sangue que sai de minhas entranhas. - Giovanni, me ajuda! - Imploro quase sem voz. - Empurra! Por mim! Por teus filhos! Empurra! - Enfim, ele acorda. Ele apoia a perna em outra pedra, erguendo-se um pouco mais. Eu me ajoelho, apoiando-me nos tornozelos. Eu puxo seus braços. Ele me observa. Estou sangrando. Os seios à mostra, a pele sensível arranhada. O meio das pernas manchadas de sangue que escorre até os pés, misturando-se ao barro. Há sangue ao meu redor. Seu olhar se enternece. - ACORDA! - Ele me vê lutar por ele. Ele sente a intensidade de meu amor. Seus batimentos cardíacos estão acelerados. Ele sabe que é amado. Sabe que jamais deixei de amá-lo por mais erros que tenha cometido. Sabe que vale a pena continuar a lutar, então, se move com agilidade e força. Mais da metade de corpo está visível. Basta que ele apoie o joelho em terra firme e estaremos longe do perigo que nos cerca. Eu berro. Grito. Eu o xingo. - Mais um pouco! - Eu o incentivo sentindo minhas forças se esvaírem. Seus pés apontam no horizonte. Seu corpo tomba na lama, exausto. Sua bochecha mergulhada na lama, seu sorriso, sua mão relaxada sobre a minha. - Eu sabia. - Suspiro, enterrando meu rosto na lama, os braços estirados. Ele aperta suavemente a mão que o salvou. Eu o imito, entrelaçando nossos dedos. Não há palavras, somente o som da chuva que dança sob a ação do vento cortante. Eu o quero longe do penhasco. Eu o puxo ainda mais. Ele ri de minha agonia, sem ver motivos para tanto.

- Estou aqui, amor. - Eu aperto sua mão e não o deixo me ver chorar. Não o deixo sentir o meu medo. - Acabou. Recomeçar do zero. Lembra?

Sua voz serena, seu toque, seu coração batendo, tranquilo...

Seu dom não é o da visão, Giovanni. Sua maldição não é a da visão, amor, portanto, vc não consegue ver ou sentir a raiva, o ódio, a inveja, a maldade que se lança contra mim, contra meu ombro que sente a dor lancinante de dentes afiados, cravados em minha pele. A dor fulminante que me faz largar de sua mão. A dor que me afasta de vc por minutos enquanto encolho-me, instintivamente. A dor que não me impede de ouvir o ruído seco do bico da bota de Ga'al do contra seu estômago.

Um movimento repentino e violento. Giovanni, diante dos meus olhos aterrorizados, meu corpo imobilizado, é levantado do chão por um braço forte ao redor de sua cintura. Uma força enorme que o arrasta para trás e antes que ele possa raciocinar ou começar a resistir, é jogado contra o abismo que o consome. Seu olhar de remorso fora a última lembrança que ele me deixara. Eu me odeio por não ter impedido.

Foi tão rápido...

Não há mais pulsação. Não há mais voz serena. Não há a mão que costumava me acalmar, me proteger. Não há a risada quase infantil que me enchia de esperanças. Meus olhos inexpressivos procuram poe ele, mas Giovanni não está ali. Giovanni me deixou e não há volta.

Sou um amontoado de carne, ossos, sangue sem alma. Estou olhando para baixo onde vejo as ondas chocando-se contra as pedras num vai e vem hipnotizante. Sorrio ensandecida quando reconheço o meu homem...o pai de meus filhos com o corpo destroçado sobre as pedras. As pedras que são banhadas pelas ondas que tocam, gentilmente, o corpo sem alma do homem da minha vida. Não choro porque não há lágrimas. Não grito, não praguejo, não xingo porque não há vida. Nada existe em mim. Tudo morrera com ele. Ele que me enxerga com os olhos desmesuradamente abertos, o tronco deformado, distorcido, os braços dispostos num ângulo fora do normal. Eu o observo. Eu quero ouvir o som de sua voz aqui dentro. Dentro da minha cabeça como ele sempre o fizera. Por que não fala? Por que não me diz o que devo fazer, amor? Sem vc, não tem graça.

- Morgana. - Estremeço sob o som da voz melodiosa logo atrás de mim. Estremeço de ódio, repulsa, ira, mas eu não me movo. Apenas curvo minha boca num sorriso macabro. Há algo nele de triste e irônico, enquanto diz as palavras. - Agora somos só nós dois. - Desvio meus olhos insanos de meu Giovanni que se banha no mar enquanto me aguarda e me volto para o assassino que estende os braços para mim. Estende os braços e abre um lindo sorriso quando pronuncia as palavras fluindo como música, cheias de mágoa e de uma força serena. - Venha, amor. Ficaremos juntos para sempre. - Ele ergue o queixo de tal modo que seu pescoço parece ainda mais longo e belo. Se não fosse pela maldade, eu poderia jurar que estou diante de um anjo. - Venha...- Os dedos longos de suas mãos perfeitas se movem, chamando-me para si.

- Claro. - Exalo um suspiro eloquente de dor. - Para sempre. - Estou rindo. Ele me imita enquanto meus braços se erguem para frente, esticados. Lanço um último olhar às marcas que ele deixara em meus braços, em minhas pernas pinceladas de sangue. Minha camisola com o sangue seco, os seios devastados por sua violência e pelo atrito contra a terra. Uma luta inútil. Giovanni partiu. Ele me deixou...- Para sempre. - Repito levando meus braços estendidos para as laterais do meu corpo como uma cruz humana. Ele ergue uma sobrancelha. Eu sorrio, erguendo a minha. Ele dá uma passo cauteloso adiante. Eu dou outro, para trás.

- Ga'al. - Ele me fita com espanto. Ele parece tão vulnerável, tão inocente. Tão perfeitamente confiante em mim conquanto o canto esquerdo de sua boca tremule. Ele assente com a cabeça, embora em seus olhos haja lampejos de desconfiança quando digo num murmúrio tão doce quanto o fazia aos meus filhos ao abençoá-los antes de dormirem. - Juntos para sempre. - Duas lágrimas escorrem do cantos dos meus olhos que se voltam contra os Céus. "Está satisfeito?", pergunto, em pensamento, ao Criador. Ele não me responde. Ele nunca me responde. Posso sentir o desespero do monstro que caminha em minha direção. Estou bem no alto. Os braços estirados como o Crucificado. Estou no alto e, mesmo que não ouça, eu sei que Giovanni chama por mim. - O Criador julga pela intenção, Ga'al. - Repito o que Giovanni me ensinara, sem desviar os olhos do céu, das nuvens cinzas, pesadas, sombrias. Lanço um último olhar ao corpo do pai de meus filhos. Não o vejo mais sobre as rochas. Sinto uma dor profunda no peito. Prendo o ar nos pulmões. Eu o encontro. Exalo um longo suspiro e volto a sorrir. Ele está de bruços. Está boiando nas águas bravias que o sacodem de um lado ao outro. Digo que não se preocupe. Pergunto se me ouve. Não há respostas. Ele está com medo. Não sabe nadar. Nunca soubera. Eu sempre quis ensiná-lo. Ele nunca tivera tempo. Trabalhava tanto, o meu Giovanni. Tanto! - Vc precisa se virar, Giovanni. Assim vc se afoga! - Eu grito, enquanto acho graça de seu jeito de brincar comigo. Ele gosta de me assustar. - Abra os braços, amor e deixe o corpo leve. - Minha audição se apura. Os pelos de minha nuca se eriçam. Eu o sinto há um passo de mim. Eu volto a encarar o demônio e rio do pavor em seus olhos. - Vc sabe. Sabe, não sabe?

- Saber do quê? - Sua boca entreaberta, seus cabelos castanhos com grandes olhos azuis. Sua boca sensual e muito bem-feita. - Saber o quê? - Repete ele com a voz grave, vibrante e desconsolada.

- Que o seu destino é vagar pela Terra e jamais retornar à carne, meu bem. - Cravo meu pé direito bem no meio de seu tórax, usando toda a ira que sinto por ele. Ele cai no chão. Eu endireito minha postura. Braços esticados. Peito aberto. Olhos cheios d'água. O coração magoado. Antes que ele possa se erguer e me alcançar, eu me deixo tombar para trás, olhos cerrados, um sorriso no rosto. Os cabelos revoltos. Os cabelos que Giovanni trouxera de volta. Ouço seu grito aterrador. Sinto sua tentativa em se transformar numa nuvem negra e me resgatar. Tarde demais, meu bem. A Morte, enfim, me aceita em seus braços. Ela já não é cega, surda, muda tampouco burra. É precisa. Não sinto frio. Não sinto medo. Estou em queda livre e amaldiçoou o Criador por ter tirado tudo de mim. Tudo. Agora, eu tiro a única coisa que Ele me deu.

A vida.

Antes do impacto, um último pensamento. Giovanni e seu toque suave em minha orelha...

Arquejo de dor quando sinto algo pontiagudo dilacerar minha pele, perfurar meus órgãos. Perco os sentidos e a última frase que me vem à mente é simplesmente patética:

- Perdoa, Senhor.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 17/02/2020
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