O homem mais solitário do mundo

O HOMEM MAIS SOLITÁRIO DO MUNDO
Miguel Carqueija

INTRODUÇÃO
PERANTE SI MESMO

O relógio carrilhão bate a meia-noite na mansão de Charley Rockford III em Luna City.
Alisando o roupão vermelho-tijolo um homem velho, enrugado, observa o relógio na parede e escuta o som musical das doze horas. Na sua mão direita, uma taça de vinho.
As lembranças de toda uma vida povoam o pensamento de Charley. Ele crê que dezenas de milhares de pessoas, no mínimo, passaram de alguma forma pela sua existência; todavia, pode-se dizer que nenhuma ficou. Certamente, os criados, que permanecem no andar de baixo, não lhe são realmente companhia. E cachorros ele já não tem há anos.
Por que terminara desse jeito?
Charley sai do corredor e retorna ao quarto, uma ampla suíte. É o dia do seu aniversário, mas há muitos anos ele deixou de comemorar e ninguém mais se lembra; os criados sequer sabem.
Ele se aproxima de um amplo espelho na saleta anexa. Às vezes ainda se surpreende com a própria sobrevivência; parentes, amigos e colegas se foram na noite do tempo e ele tem dificuldade em se interessar por novos conhecimentos. A humanidade hoje lhe causa tédio.
A imagem do espelho é implacável. Rugas, cabelos brancos, expressão dura. Onde foi parar aquela passada alegria de farras e comemorações?
O que o tempo fez com Charley Rockford III?



CAPÍTULO 1
VISITANTE

Charley nunca se casou e sempre beirou uma leve misoginia. Não tem filhos, descendentes diretos. Não fez testamento. Por vezes fica imaginando a guerra que haverá na família, entre parentes que em sua maioria sequer o conhecem, na disputa pela fortuna deixada. Inevitavelmente haverá acirrado litígio na Justiça. A rigor Charley não quer isso, não desejou isso, mas o seu isolacionismo o inibiu sempre de tomar qualquer iniciativa em que estivesse admitindo a sua própria mortalidade.
Seus próprios advogados insistiram diversas vezes para que fizesse o testamento. Charley nem saberia explicar direito porque não o fez.
Afastou-se finalmente do espelho e se dirigiu à varanda. De lá observou a avenida, dezenas de metros abaixo. Apesar do adiantado da hora havia luzes feéricas e trânsito relativamente intenso.As grandes cidades já não sossegavam nessa era moderna. Charley não compreendia esse frenesim mas, mesmo solitário e recluso, ele não se sentia em paz.
Como um canto de sereia, o abismo começava a chamá-lo. Por que, pensou, não acabar com tudo, se nada havia a esperar dos anos que lhe restavam?
Mas e o outro lado? Sempre tivera medo da morte.
Há certas coisas que são como voragens, atraindo contra a nossa vontade. Por bem uns quinze minutos Charley permaneceu ali, pensando mesmo que, se um dia tivesse um derrame cerebral e ficasse reduzido a uma cadeira de rodas, nem esse gesto extremo poderia tentar.
Subitamente o telefone interno tocou.
Estupefato, o milionário caminhou de volta aos seus aposentos, aborrecido. O que poderia ter levado algum dos empregados a incomodá-lo? Se fosse alguma coisa fútil estava pronto a passar uma descompostura.
Pegou o fone e falou rispidamente:
— O que foi? Não quero ser incomodado!
— Senhor — a voz cavernosa de Orace se fez ouvir — está aqui a sua neta.
— O que???
— Perdão, sobrinha-neta. Já confirmamos que ela é mesmo sua sobrinha Alice, é uma criança, senhor...
— E o que eu tenho com isso? Nem me lembro direito dela! Acho que só a vi quando era bebê. Cadê os pais dela?
— Não estão aqui. Ela veio sozinha.
— Eles nem moram por aqui! Moram na Irlanda! Como ela chegou aqui?
— Vovô — intrometeu-se uma vozinha infantil — você tem que me deixar entrar, preciso da sua ajuda.
— Espere, menina... — ia dizendo o mordomo.
— Perguntei como ela chegou aqui!
— Senhor, nós não sabemos. Mas ela está com fome e frio e sem sapatos.
— Manda ela subir. Deixarei a porta aberta — disse Charley numa súbita decisão.
Realmente a noite era fria e era quase incompreensível que uma criança se visse lá fora, naquelas condições e sozinha.
Pouco depois batiam na porta.
— Abra! Falei que a porta está aberta!
Nem lhe passara pela cabeça que uma criança talvez não tivesse força para abrir a pesada porta, ou altura para alcançar a maçaneta. Mas o mordomo, pensando nisso, viera junto e abriu a porta.
Charley se aproximou e mal olhou para a assustada garota.
— Ela trouxe alguma bagagem?
— Só essa pequena mochila, senhor — e Orace estendeu o objeto.
— Está bem. Vou falar com ela. Pode encostar a porta e ir.
— Muito bem, senhor. Entre, menina.
Ela olhou para Orace, sorriu e falou um agradecimento simples e doce: “Obrigada!”, num murmúrio, e entrou.
Charley não tinha muita experiência em lidar com crianças. A garota aparentava uns oito anos, vestia saia e blusa rosas, tinha um pequeno chapéu marrom já sujo, uma franja de cabelos castanhos na testa.
— Sente-se ali — ordenou Charley.
— Sim, vovô — e ela correu para o sofá indicado. O milionário puxou uma poltrona e sentou-se em frente à guria.
— Onde estão seus sapatos? — indagou em tom severo.
— Eu os perdi. Eles gastaram, andei muito a pé.
— Você fugiu de casa. Como chegou até aqui?
— Vovô, eu não fugi. Fui mandada embora. Meus pais não me querem mais.
— Como assim? Eles têm que querer.
— Não querem. Eles se separaram, mamãe arranjou outro homem e papai arranjou outra mulher. E os novos não me querem. Deixaram isso bem claro.
— A Carolyn, como mãe, tem em geral o direito de ficar com você, em caso de separação.
— Mas o homem que ela arrumou já tem filhos mais velhos e disse na minha cara que não me aceita. Mamãe tentou me empurrar para papai, mas ele...
— Chega! Quem tem que decidir isso é o juiz!
— Vovô, eu não entendo isso e não me levaram a juiz nenhum!
Charley pôs-se a andar em círculos, irritado. De súbito deu-se conta da seguinte relação: se ele tivesse se atirado, atendendo ao canto da sereia do suicídio... o que seria da menina?
— E por que os seus pais não se comunicaram comigo?
— Mamãe me pôs num avião para cá. E mandou uma carta para você.
Ela entregou um envelope amassado que tirou do bolso. Isso explicava a presença da garota na cidade-base para expedições britânicas à Lua. Charley estava zangadíssimo com a sobrinha.Ela devia estar muito constrangida para recorrer a um meio de comunicação tão primitivo como a carta, em vez de visofonar ou internetar. Também estava irritado com o cretino do marido dela.
— Dê aqui.
Charley sentou e abriu o envelope. Não havia muito para ler.
“Tio,
Por favor fique com a Alice. Estou me separando do Edward, ele está se unindo a outra mulher que já tem filhos. Meu novo marido também tem e não há mais espaço para a menina. Sei que o senhor tem condições de criá-la. Basta contratar babá e preceptora. Ela chega de avião dia 21, pela manhã. Já é tempo de o senhor fazer alguma coisa por ela. Obrigada.”
— Bem... mas ela não me avisou que você chegaria!
— Ela disse que ia mandar uma mensagem pela internet...
Charley pensou em seu correio, que às vezes levava uma semana para verificar.
— Entendo. Ainda não atualizei... Mas então o que você fez para chegar aqui?
— Eu não tinha dinheiro. Papai não veio se despedir de mim e mamãe disse simplesmente que criança não anda com dinheiro. Como não tinha ninguém me esperando fui perguntando sua direção e vim a pé. O senhor é muito conhecido!
— Mas a distância é tão longa e está frio!
— Estou morrendo de frio — lamentou-se a menina, olhando os pés azuis de frio.
— E o que você comeu?
— O lanche do avião e a merenda que mamãe me deu. Mas isso já faz muitas horas. Meus sapatos eram abertos e romperam pelo caminho...
A criança pôs-se a chorar de forma comovente.
Charley ergueu-se e pôs-se a caminhar pelo aposento, realmente chocado. Era um homem frio e calculista, mas o drama daquela menina e a crueldade dos pais o haviam chocado e irritado.
Havia três coisas imediatas a fazer pela menina: alimentos, roupas e calçados.
Nesse ponto ele se lembrou de que uma das suas camareiras tinha uma filha pequena, que ele nem sabia o nome. Não moravam na mansão, pois Charley não queria saber de crianças ou de animais domésticos. Assim, ligou para o mordomo e convocou-o. Ordenou que trouxesse um sanduíche de qualquer coisa para a menina.
Orace parecia preocupado e com sono, mas Charley sabia que por enquanto não havia condição de dar abrigo à pequena e foi logo dizendo:
— Você tem o endereço da Emily, não tem?
— Sim, senhor, não é longe daqui...
— Prepare o nosso carro. Iremos na casa dela, você e eu.
Orace pareceu levar um choque.
— Mas senhor, a essa hora?
— Você também me trouxe um problema em hora tardia, portanto...
Foi interrompido por soluços. Jogada no sofá, já tendo comido o sanduíche de queijo, Alice tremia e soluçava. Charley aproximou-se dela.
— Por que está chorando?
O tom autoritário não pareceu produzir bom efeito no ânimo da menina.
— Você não me quer, eu sou um empecilho — disse ela, com a voz entrecortada.
Sem saber direito como agir o milionário pôs a mão nos cabelos da guria que, admirada, olhou para ele. Charley deu um de seus raros sorrisos.
— Não diga isso. Essa minha empregada tem uma filha da sua idade. Vamos lá pedir emprestada alguma muda de roupa e algum calçado, pois é muito tarde para ir em alguma loja. Faremos isso amanhã.
— Vovô, vai me comprar roupas?
O sorriso de Charley desapareceu.
- Acha mesmo que um homem como eu vai hospedar uma sobrinha-neta e deixá-la ficar esmulambada na minha casa? Quem é que você pensa que eu sou?
Pela primeira vez Alice sorriu, com alegria e esperança. Charley voltou a falar de forma ríspida, mas o significado por trás das palavras não escapara à garota.
— Você vai com Orace então... eu vou ficar aqui?
— Claro que não. Você vem junto, senão vai ficar mais assustada ainda!
— Oh, vovô! Muito obrigada!




CAPÍTULO 2
NOITE

Charley pensara em mandar Orace sozinho cumprir a tarefa, mas logo concluíra que isso não seria certo. Aquele problema ele teria de resolver pessoalmente. Orace apenas acompanharia como motorista.
Charley trocou de roupa com a rapidez que pôde; ele nunca pedia ajuda e continuava bastante lépido. Voltou ao salão, onde a menina e o mordomo aguardavam.
— Está pronto, Orace?
— Perfeitamente, senhor! Já mandei aprontarem o carro.
— Vovô, eu queria ir no banheiro!
— Por que não falou antes? É naquele corredor ali! Seja rápida!
— Eu serei, vovô!
Ela correu e Charley sentou num dos sofás. Não convidou o mordomo-chofer a fazer o mesmo e este permaneceu de pé.
— Quando eu puder falar com a minha sobrinha... ela vai me escutar. E o sem-vergonha do marido idem.
A garota reapareceu, olhando o milionário com expressão de incerteza.
— Está pronta agora?
— Agora estou.
— Então vamos! Já perdemos muito tempo!
Desceram no elevador que levava à garagem. Charley, metódico como era, lembrou a Orace:
— Avise alguns dos seus colegas que nós estamos saindo. Basta falar com um para avisar os outros.
— Avisarei a Maria, senhor.
Orace bipou para a supracitada. Preenchido esse detalhe, caminharam até o carro.
Charley notou que os pequenos pés desnudos de Alice pisavam a friagem daquele cimento. O chão devia estar gelado, mas ela não se queixava. Não havia nada a fazer. Charley não tinha calçados infantis em casa, teria de obtê-los em seu destino (desprovido de sentimentos carinhosos nem lhe ocorreu carregar a menina até o veículo ou ordenar a Orace que fizesse isso).
A menina acomodou-se ao seu lado, no banco de trás. Orace deu a partida no carro elétrico Thunberg e então Charley, olhando distraidamente a sobrinha-neta, deparou com os seus olhos fixos nele.
— Que está olhando?
— Eu... estou querendo te conhecer melhor, vovô. Já que vou morar com você...
— Quem lhe pôs na cabeça que você vai morar comigo?
— Eu... onde mais poderia morar, vovô? Não quero ir para um orfanato!
Charley sentiu-se estremecer. Orfanato? Com pai e mãe vivos, tio-avô vivo e multimilionário? A Justiça não iria permitir. E para ele seria uma vergonha.
— Você não irá para um orfanato — disse ele, secamente.
— Obrigada, vovô. Eu sei que vou gostar de morar aqui!
Ela encolheu-se junto a ele.
— O que há?
— Estou com frio, vovô.
Atrás do banco havia uma lona, e Charley puxou-a.
— Pegue. Cubra-se com isso.
— Oh, obrigada, vovô! — e a menina sorriu, já mais animada.
Ela se enrolou toda na lona, os pés inclusive. Charley achou que devia ter-lhe ordenado que tomasse um banho, mas que adiantaria sem mudas de roupas?
— Vovô — observou timidamente Alice — a pessoa que nós vamos ver, será que está acordada?
Ele nem pensara nisso.
— Orace, encoste ali e telefone para a Emily. VOCÊ devia ter pensado nisso antes.
— Senhor, é perigoso estacionar por aqui a essa hora.
— Tolice! Eu estou armado e o carro é blindado. Vamos logo.
O diálogo de Orace com Emily não foi fácil. Emily parecia não estar acreditando e Orace limitou-se a dizer que era uma emergência e que o Sr. Charley Rockford em pessoa estava seguindo para lá.
— Mas o que foi que eu fiz de errado?
— Nada, absolutamente nada. O motivo é outro mas nós não podemos demorar, Emily. Por favor esteja a postos que em cinco minutos nós chegamos.
— Está bem. Meu Deus!
Seguiram viagem. Charley afagou sua bengala, que na verdade era um artigo de elegância. Não precisava dela de fato.
— Vocês assalariados parece que vivem com a consciência pesada...
Ouviu-se um riso cristalino. Era a menina que ria. Charley olhou para ela:
— Do que você está rindo?
— Ora, de você, vovô, e do Orace.
— O Orace não tem nada de engraçado e eu muito menos. Não fique se apegando a mim porque eu sou um homem mau!
— Que nada, vovô, você não é nada mau, você é muito bom!
Ela repousou a cabeça no braço de Charley.
O ricaço tentou pensar em outras coisas; desagradava-lhe o sentimentalismo.
Ao chegarem, pensou em como aquela casa era modesta em comparação com a sua. Mas não eram pessoas pobres. Contudo, pelo jeito não tinham um único robô auxiliar dos serviços domésticos.
Demoraram quinze minutos mas trouxeram a menina. Pamela desceu vestida com pantalonas de rua. Certamente os pais haviam preferido assim, a que ela descesse em pijama ou camisola.
Imediatamente Alice se levantou e foi ao seu encontro. Diante da indiferença de Charley e, claro, de Orace, Emily apresentou as duas.
— Pamela, esta é a Alice. Cumprimente-a.
— Oi, como vai?
— Oi, Pamela.
Trocaram beijos e Pamela pegou a mão de Alice:
— Olha, nós separamos umas roupas...
— Pamela, um instante, venha cá. Só um instante, Alice, pode ficar aí.
Emily pegou Pamela pelo braço e a levou para apresentar a Charley e Orace, pois a menina nem os conhecia. Eles a cumprimentaram formalmente, embora o milionário no fundo achasse que devia ser mais gentil. Ele tinha, porém, grande dificuldade em sorrir.
— Agora, Pamela, pegue a sua amiguinha e leve-a lá para cima.
Pamela tornou a pegar a mão de Alice:
— Nós vamos ser amigas, não vamos?
— Vamos, é claro!
— Vem comigo. Separamos umas roupas, você toma banho no meu banheiro e depois escolhe as roupas, eu vou te ajudar, OK?
— OK, puxa, obrigada...
— Vamos que está frio e você está descalça. Vou lhe dar meias e chinelos.
— Até já, vovô, Orace... — Alice acenou e subiu a escada puxada pela outra garota.


EPÍLOGO
ALVORADA

Constrangido, rígido, Charley sentou-se e ficou de cara fechada. Emily, porém, ainda de pé, falou:
— Esta sua neta é uma gracinha, senhor. Ela vai se desinibir rapidamente.
— Tudo o que eu quero — e Charley escandiu as palavras — é dar a ela um tratamento digno, como é minha responsabilidade de tio-avô.
— Perdão, senhor — interveio o marido de Emily — mas ela precisa de amor também. Se me permite, ela precisa ter alguém para brincar. Como eu e Emily brincamos com Pamela, passeamos com ela...
— Contratarei uma babá. Eu não tenho mais idade para cuidar de crianças.
— O senhor está em ótima forma — atreveu-se a dizer Emily. — Tem muito homem com a metade da sua idade sem a sua disposição.
— Você acha mesmo? Pode me dar um exemplo sequer?
— Se me permite, senhor... podemos começar com o pai da menina.
— Mas você não conhece...
— Pessoalmente não, mas um pai que não tem disposição para cuidar da filha...
— Querida, basta por ora — disse Robson. — O Senhor Charley deve estar aborrecido e cansado. Vamos servir-lhe um café.
— Sim, Robson, me desculpe... você também está convidado, Orace.
— Para mim basta um cafezinho para espantar o sono — respondeu Orace.
Charley estava bastante incomodado. Não apreciava intimidades com pessoas subalternas, não se lembrava de ter visitado nenhuma, e tudo por causa de Alice. No entanto, o bom senso que ainda tinha lhe dizia que devia convidar Pamela a ir sempre na mansão, brincar com Alice. Não podia proibir uma criança de brincar, desde que ele próprio não tivesse que brincar com ela.
E como as duas pequenas estavam demorando! Foi preciso aceitar o café e as bolachas com mel, não estavam ruins e ele, tresnoitado, já sentia fome. Mas depois que tudo foi recolhido ele não se conteve:
— Não podem apressar as meninas?
— Vou lá ajudar — apressou-se a dizer Emily.
Ela efetivamente moveu-se depressa para a escada, mas as meninas já desciam — de mãos dadas, Alice irreconhecível.
Usava sapatos afivelados e uma calça comprida de brim, além de um casaquinho marrom, sobre uma camiseta amarela. Estava felicíssima.
Charley se ergueu e Alice correu até ele.
— Que tal estou, vovô?
— Está muito bem. Você fez um bom trabalho — e na segunda frase Charley se dirigiu a Pamela. Esta fez uma pequena mesura, sorridente.
Também os pais de Pamela elogiaram, e esta ergueu uma cesta.
— Aqui estão outras roupas que eu dei a ela.
— Eu posso continuar vendo a Pamela, não posso, vovô?
— É claro que sim. Vou tentar matricular você na mesma escola e turma que ela.
Emily e até Robson arregalaram os olhos, sem acreditar no que ouviam. O milionário estava seguro de si. Sabia o poder que detinha em suas mãos: o poder do dinheiro.
— Orace, que está esperando? Pegue essa cesta. E nós já vamos embora. Já tomamos muito o tempo de vocês.
— Pamela pode me visitar? E eu poderei visitá-la? — insistiu Alice, que obviamente não achava suficiente ter a outra menina como colega de turma.
— Só se houver quem leve e traga. Emily, quando não houver escola pode levar sua filha no trabalho.
Robson e Emily se desmancharam em agradecimentos, mas Charley estava apenas sendo pragmático. Afinal ele não tinha tempo para crianças e nem paciência.
Ou achava que não tinha.
Ao se retirarem Alice ia agarradinha ao braço do tio. Chegando junto ao carro ela soltou-se apenas para se despedir de sua nova amiguinha e seus pais.
Entraram no carro. O impassível Orace deu a partida. Charley lembrou-se rapidamente do tempo em que atuara na Lua, supervisionando altos negócios de mineração nas crateras. Lembrou-se de concorrentes que ele esmagara. Lembrou-se de toda a sua rispidez, seu temperamento anti-social e, numa lembrança mais distante e fugidia, seu tempo de rapaz, quando ele ainda não era ISSO em que se tornara.
A garota, orgulhosa por suas novas roupas, repousava o rosto no braço de Charley.
— Estou tão feliz, vovô! E você é tão bom!
Charley pensou em dar uma resposta brusca à pequena. Não, ele não era bom coisíssima alguma. Era mau, ganancioso, egoísta, afastado de Deus, impiedoso, estivera prestes a se matar...
Mas ao se voltar para dar uma resposta áspera enxergou os grandes olhos azuis da menina, que o olhavam com todo o poder da inocência.
— Está bem, minha filha. Mas o vovô está muito cansado. Depois que você dormir eu vou fazer o mesmo. E amanhã iremos nas lojas.
A menina parecia nas nuvens de tão feliz.
Começava a raiar a alvorada.
E o carro seguiu varando a noite, em direção à residência do ricaço que havia sido o homem mais solitário do mundo.

Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2019 a 27 de fevereiro de 2020.




imagens 1 e 4, pinterest; 2 e 3, pixabay

 
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 03/03/2020
Reeditado em 03/03/2020
Código do texto: T6879510
Classificação de conteúdo: seguro
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