* Novela criada e escrita por Carlos Rogério Lima da Mota.

Ilustrações de Andrea Rebello Mota
Esta obra é o remake de "Venusa Dumont", lançada há 22 anos.
Boa leitura!

Capítulo I

O jato fretado pelo município de Vila dos Princípios retorna da capital paulista às 10 horas. Formada por dois empresários do ramo cultural, o prefeito e quatro vereadores, a comitiva segue para a prefeitura, trazendo ótimas notícias ao lugarejo.

Após rodadas de negociações, o Governador resolveu conceder à cidade, em regime parcelado, quantia necessária para a construção de um Centro de Saúde, na periferia. Indiretamente, este suposto presente projetaria a eleição do respeitável vereador, George Dumont, ao cargo máximo do município, o de prefeito. Além, é claro, de favorecer os milhares de famintos - munícipes da região.

Ao chegarem à prefeitura, George sente a foice da morte oscular sua alma, levando-o a uma súbita vertigem.

_Estranho! - Diz ele ao prefeito, Tanaka Santuku, seu melhor amigo, após sentar-se no braço de um sofá.

_O que foi George?- pergunta o mandatário.

_Não sei!...Está acontecendo alguma coisa! Está sim! E terrível... Parece aumentar a cada passo que dou. Premonição revel! O que será isto? O quê? Alguma coisa está apertando meu coração, de tal modo que o ar falta aos meus pulmões.

_Acalme-se!- pede ressabiado o prefeito._ Deve ser cansaço. Você trabalhou muito nesses dias, foram longos períodos de negociações com o governador. Deve ser estafa. É, deve ser! Precisa beber algo, quer um vinho, uma vodka, um...? Precisa limpar a goela! É como eu sempre digo: falar com político é uma coisa cansativa... Aff! Ô gente ordinária! Não há como não se estressar...

_ Tanaka... – entrecorta-o o vereador.

_ Fale, meu filho! – diz, levando uma taça cheia de vinho à boca.

_ Você também é um político!

_ É mes-mo! – responde-lhe o prefeito, engasgando-se com o próprio “veneno”. _ Sempre me esqueço disso!

Duas horas se vão...

George chega a sua casa, uma mansão em estilo romântico, situada à região oeste da cidade. Ao entrar, pressente a solidão que assombra cada corredor e cômodo daquele palacete. Intrigado, procura pela esposa. Mas não a encontra! Cada vez mais angustiado, grita pela empregada.

_Onde está Catharine? Disse aonde iria? Diga-me!

_O senhor realmente não sabe?- ironiza a criada.

_Claro que não, caso contrário, não estaria aqui, postado diante de uma qualquer como você, perdendo meu precioso tempo... Hum! Ande, fale criatura, onde está Catharine? Fale!

_Enterrando o corpo de sua filha, ou não sabia?

_ Co-como? – questiona, com os olhos verdes a saltar da face._ O que disse?

_ Ela tentou falar com o senhor o dia todo, mas seu celular estava na caixa postal. Ligou até para o palácio do Governador; de nada adiantou, o senhor não ouviu o seu pedido de socorro.

_Mas... pensei que fosse uma bobagem...Catharine sempre me liga para dizer coisas que podem ser proteladas...Eu...pensei...

_Pensou errado! – sentencia a empregada.

_ Que petulância é essa? Com quem pensa estar falando? – repreende o político._ Saia daqui... Fora!!! Antes que minha ira se converta em violência.

_Não!- desafia a mucama._ O senhor tem que ouvir umas verdades. Como pode deixar sua esposa com a filha à beira da morte? O senhor é um monstro! Sua ganância ainda o levará à destruição... – lágrimas contornam o rosto da mulher.

_Era o que me faltava! Político assíduo com os compromissos nacionalistas e defensor nato da Constituição Federal como eu, ser afrontado por uma filha da ralé, uma... uma insignificante peça da falha humana. Hum! Era o que me faltava! Só não a despeço agora porque...

_...porque eu jamais permitiria! – completa Catharine, entrando na sala.

_Catharine???!!!! – surpreende-se o defensor da lei.

O rancor é o elo que envolve estas duas pessoas neste momento. Com a face úmida, ela aproxima-se do vereador, olha-o profundamente e permanece em silêncio. Intimidado com a coragem da esposa, George também opta pelo silêncio. Cabe à mucama rompê-lo:

_Como está, Dona Catharine?

_Queria estar melhor, Ernestina! Quero agora me recolher à sombra de minha dor... Nada mais me importa nesta vida! – cai em prantos, sendo consolada pela criada.

Emudecido, George assiste àquela cena como se não fizesse parte da família. Sua face mesclava incompreensão e alguma compaixão. Uma compaixão tão finita que era quase impossível reconhecê-la.

_ Catharine... – arrisca-se. _Como... você está?

_MORTA! – declara a mulher._ Sem rumo, perdida dentro de mim. Você nos abandonou quando mais precisávamos George. Alana morreu pedindo sua presença.

_Sinto muito! Mas o povo precisava de mim, não me podia furtar ao direito de representá-lo ante ao Governador. Para isso fui eleito! Para representar o povo!

_Monstro! – sussurra Ernestina consigo mesma. _Que Dona Catharine mande esse canalha para a rua...

_ Tenho pena de você! Porque mente! Mente para mim, para sua filha, para todos que o cercam e, o pior, para si mesmo. Suas palavras são belas, pena não passarem de simples fuga de um homem que abandonou a família durante a perda de um ente querido para viajar à Capital e buscar apoio à sua eleição para prefeito da cidade! O que não faz o homem pelo poder? Mata, rouba, violenta, e no mais, esquece a própria filha no leito em que era invadida pela leucemia... A menina morreu suplicando sua presença e onde estava, esposo meu? Em São Paulo! Conseguiu muito dinheiro para fascinar o povo e conquistar os votos que precisa para elegê-lo “dono da cidade”? Estou estarrecida... ainda ouço Alana gritar seu nome! Por que fez isso com ela... comigo? Por que nos odeia tanto? Por quê? Não se arrepende do que fez?

_Arrependimento??? Oh, Catharine, deixe disso! Não tenho do que me arrepender! Sabíamos que Alana morreria. Era certo! Estava tomada pelo câncer! Eu não poderia fazer mais nada por ela. Nada! O que tinha de fazer, já tinha feito! Você não entende, ela estava entregue aos braços da morte, o que eu poderia fazer para evitar essa fatalidade?

_E onde está sua compaixão, homem? – brada a mulher, pegando-o pelo colarinho do paletó._ Ela era sua filha... sua filha!!! Como pode deixá-la quando mais precisava de você? Não estamos falando de uma pessoa estranha, alguém que aparece do nada, que não cultivamos nenhum sentimento. Estamos falando de nossa filha, um ser construído a partir de nosso amor, se é que você saiba o que realmente signifique essa palavra.

_Solte-me! –diz, empurrando-a contra o sofá._ Entenda, pela nossa filha eu não poderia mover mais um dedo; pelo povo, ainda posso fazer muito. Veja que bom, logo terão tratamento de primeira no novo Centro de Saúde, com atendimento decente, bem diferente do Hospital Municipal, uma vergonha à cidade. Isso não é bom? Tá, posso ter errado em não ter ficado contigo, auxiliando-a nesta difícil fase de nossas vidas...

_...nossas vidas? Que ironia!

_Nossas vidas, sim! Também estou sofrendo, mas veja pelo lado bom: perdemos uma filha, mas ganharemos novas vidas, que antes estariam condenadas à morte como ela.

_Pare com isso, George! Pare com esse cinismo! Pare!!! Alana não merece isso! Deixe-a descansar em paz! Deixe-a! Você é um... um...monstro! - chora sem consolo.

_ Cafajeste! – completa a empregada.

_ Você nunca amou ninguém. Nunca! Nem quando nos casamos existia amor; tudo foi pelo interesse, pelo meu dinheiro – o mal me persegue desde a minha origem. Como pode ser tão frio? Alana não merecia esse desprezo, não merecia... Espero que um dia possa reconhecer seu erro e corrigi-lo da melhor maneira possível, se é que há como reparar um erro dessa magnitude. Desejo apenas que o remorso não o corroa até lá!

_ O povo está acima de qualquer interesse, de qualquer problema familiar!- repete George por duas ou três vezes, como se acreditasse mesmo em cada palavra que dissesse.

_ O poder está acima dos verdadeiros interesses, não o povo. Esta gente simples continuará morrendo mesmo com a inauguração deste Centro de Saúde. Neste país nada muda! Isso é conversa de político, basta ver o que você faz com a Ernestina, nossa empregada. Ela é do povo, por que não a trata com respeito? Por que ainda não chegou o dia da eleição, não é? Vou lhe dar um aviso: “a ambição é um veneno, quando ingerida em altas doses, o efeito pode ser macabro”! Pense nisso! Agora preciso me deitar, estou cansada. A você, infelizmente, todo o meu desprezo!

_Com quem pensa estar falando, sua... sua cretina? – o vereador deixa de lado a elegância e a pega pelo pescoço._ Sou seu marido e exijo respeito! – vocifera, tomado por uma expressão doentia em cuja face se notam as primeiras gotículas de suor.

_DEIXE-A! – exige a criada, tentando separá-los. _DEIXE-A, VERME DOS INFERNOS!

_Deixe-a, doutor! Pense nas consequências. O senhor é um homem público! O que não dirá a imprensa? – implora Joaquim, o motorista, que adentra a sala após ouvir de seu quartinho toda a gritaria. _Senhor, a imprensa...

As palavras do chofer são como bombas, George solta a mulher, que cai ao chão com o sangue preso à face. Afasta-se bem devagar, fixando-se nos olhos atordoados de Catharine. Um lampejo de realidade lhe corre à vista, é quando decide subir para o quarto, reservando à Caixa de Pandora toda a insanidade de há pouco.

Apoiada à parede, Catharine percebe não ter mais forças para lutar contra as intempéries do destino e desfalece.

II
Levada por Joaquim à sala de estar, Catharine agora repousava. Apesar de pálida, estava linda naquele modelito francês. O negro, em seu corpo, não exalava a dor intrínseca de se perder um ente querido; contornava-lhe o corpo, resplandecendo enlouquecidamente a sua beleza. Uma beleza surreal, desnorteadora... Puro êxtase!

Ernestina cobriu-a com um manto fino e pediu a Joaquim que a protegesse das malvadezas de George enquanto ela fosse à plantação da mansão buscar algumas ervas para fazer-lhes um chá. Era o que ele mais desejava. E como desejou esse momento. Não o de vê-la mórbida, caída a um sofá após uma briga com o esposo; mas o momento de poder estar ainda mais perto dela. Dessa mulher que tanto o perturbava.

Sentado ao lado dela, ele arfou. Estava hipnotizado pelo desejo latente – uma praga sinestésica. Trêmulo, uniu uma de suas mãos à dela, quando percebeu o abismo que há entre eles. Suas mãos grossas, com calos enormes, frutos de uma vida sofrida no sertão; as dela, de uma delicadeza ímpar, cuja espessura assemelhava-se às pétalas de uma rosa.

Desde que chegou à mansão e a viu pela primeira vez, sentiu que Catharine seria aquela que o completaria como homem e o faria viver as maiores aventuras em busca da felicidade. Tinha certeza, amava-a mais do que o ar que respirava... Queria poder tê-la nos braços, amá-la de verdade, sem medo de que isso fosse um erro, algo discriminado pela sociedade - o ser tão cruel dos folhetins românticos. Por mais que fantasiasse, esse amor jamais seria possível! A diferença de classe entre ambos era incomensurável! Pelo menos era o que ele pensava.

Filho da ralé, sem ambições, Joaquim vagou pelo mundão afora na esperança de que Deus o visse uma única vez. Terceiro fruto de uma família desmiolada, ele fugiu da fome assim que a razão lhe dominou. Não poderia morrer como seus pares, naquele sertão que fazia fronteira com as vidas secas de Graciliano Ramos. Por isso veio tentar a vida em São Paulo. Era um retirante! Já ela, uma dama da sociedade, invejada por todos, cortejada pelos herdeiros das famílias cujos brasões estão estampados na antessala do Governador. Havia um Mar Vermelho entre eles e para atravessá-lo, só com a ajuda de um outro Moisés.

Se tudo isso pudesse ser mudado, se tivesse uma oportunidade de tocar seus lábios aos dela ou mesmo ouvir de sua boca um simples elogio... Deus meu, seria fatal! Seu coração não aguentaria! Como George poderia subestimar uma preciosidade como aquela? Como poderia desmerecer aquela cujos olhos lhe substituem o sol em tempos anuviados? Como?

Com a corrente sanguínea explodindo, atreveu-se a violar as leis da moralidade ao tocá-la na face e beijá-la de leve. Mesmo com a voz quase embargada, ousou lhe confidenciar:

_Se Deus permitisse, queria tê-la somente para mim. Seria só minha! Só minha!!! Viveríamos felizes, longe dessa agonia que nos faz vítima da sociedade e de nós mesmos...

Continuou a se revelar, sob a ameaça constante do pranto, que assim como uma tempestade, anunciava-se, e seria difícil de evitar.

_ Dona Catharine, não vivo mais! Minha alegria sucumbiu à dor desde aquele dia em que cheguei a essa casa. Foi uma paixão fulminante e, como tal, está me levando, me jogando para baixo, como fazem as âncoras dos navios – lágrimas desciam desordenadas por sua face.

Detrás da porta, Ernestina não teve coragem de interrompê-lo. Estava diante de um nobre matuto. Por instantes, até mesmo ela se esquecera de George, aquele traste, como mesmo gostava de dizer, afinal, um fiozinho de esperança reacendia a fogueira da paixão naquela casa.

_ Quanta é a solidão, quanto é o meu amor, meu carinho pela senhora... Meu Deus, o que estou dizendo? – levanta-se apressado, como se quisesse se livrar para sempre daquele mágico sentimento que o movia há tempos. _ O que estou dizendo? Ela é minha patroa, a mulher a quem deveria servir... Só isso! Só! O que estou fazendo não está certo, ela é minha patroa, é casada – soluços de dor o conduzem ao limbo dos desalmados._ Livre-me dessa agonia, dessa maldição, meu Deus!

A empregada até quis findar aquele momento de desabafo, mas não conseguira, um homem como ele era raro de se ver. Joaquim não era igual aos outros, parecia enxergar a alma feminina, senti-la, amá-la como se ama alguém muito especial, talvez um filho, uma mãe, uma mulher... Seus olhos não eram os de um roceiro; por um instante, reluziam a força de um poeta trancafiado dentro de si mesmo. Isso era esplêndido! E lá permaneceu, à espreita, sendo a única testemunha daquela cena consentida pelo destino.

_ O que se passa aqui? – inquire o vereador, com a força de um vulcão, surpreendendo a empregada pelas costas. _O que esse caipira faz perto de minha mulher? Fale Ernestina!

A face ruborizada e os olhos estatelados da mulher pareciam não se encorajar em defender o pobre Joaquim. Seria o fim dele?

III

Joaquim, ao lado de Ernestina, não tinha coragem de encarar o patrão. Temia ser demitido, ir para longe e deixar para trás a essência que hoje o mantém vivo. Perder Catharine era como perder a vida. Então, para quê viver? Viver para sofrer? Não! Se fosse embora, iria para sempre... Não somente daquele casarão, mas desse mundo. Mil vezes as chamas do inferno, à pena de não poder mais venerar um sorriso dela.

_ Ernestina, sua velha encruada, fale! O que esse molambento, cheirando a suor, faz perto de minha esposa?

_ Ele...- balbucia. Ele...ele estava aqui...

_O que quer com minha mulher, seu traste? – volta-se ao chofer, com ira.

_Senhor... - diz o criado, cabisbaixo – eu queria lhe dizer que... que...

¬_Fale! – insiste o vereador. _O que fazia perto de minha mulher? FALE!

_Eu...

_...ele estava cuidando de Dona Catharine, enquanto fui ao canteiro buscar umas ervas – entrecorta-o a mucama, já recomposta do susto, ao perceber que Joaquim se entregaria.

_ Cuidando? Como assim?

_Como o senhor anda com a memória curta, senhor George !– debocha._ Só faltou matá-la e ainda tem a desfaçatez de fingir que nada aconteceu. O senhor não merece o amor dessa mulher.

_ COM QUEM PENSA ESTAR FALANDO, CRIADA? – pega-a pelo braço e a sacode por duas ou três vezes. _MERECE UMA SOVA!

_ Bata, se tiver coragem! – desafia a mulher, com a tez franzida e a saliva ameaçando descer pelos cantos da boca. _Bata! Eu não sou Dona Catharine, que apanha calada, como se fosse um bichinho de estimação, daqueles bem desprezados. Sou uma mulher de fibra e o denunciarei se me tocar um dedo. Conhece a lei Maria da Penha, excelentíssimo vereador? – afronta-o com desdém. _Se não a conhece na teoria, há de conhecê-la na prática!

Surpreso com o conhecimento da empregada, George mastiga as palavras.

_ Já chega, Ernestina! – determina o motorista, escondendo os olhos marejados com as mãos._ Vamos!

_ Se estava mesmo cuidando de minha mulher, como disse Ernestina, então por que chora?

_ E quem não choraria ao vir uma mulher estirada a uma poltrona, após levar uns tabefes do marido, ainda mais no dia em que acabara de enterrar a única filha? – responde a empregada no lugar dele, tentando contornar a situação._ Pensa que são todos assim... assim como o senhor?

_Assim...? Assim como?

_ Desalmado, podre até o último fio de cabelo, incapaz de amar e de se deixar ser amado... Perceba, ao invés de um coração, o senhor carrega um iceberg no peito.

_ ATREVIDA! – regurgita o vereador ao repuxá-la uma vez mais. ¬_DEVERIA LHE DAR UMA SURRA.

_ Então venha! Bata nessa cara se for homem! – apalpa a própria face. _ Bata! Queria mesmo que fizesse isso, não teria como negar a agressão, quando os flashes dos jornais fossem disparados e ilustrassem as manchetes do dia seguinte com o meu rosto deformado pelo seu ódio. Todos os que votaram no senhor se perguntariam: “O honrado vereador George Dumont não é o santo que se apregoa nos palanques principienses? Teria mesmo agredido sua serviçal, uma pobre mulher da vila, com todos aqueles cabelos brancos?”. Até que as últimas dúvidas se dissipassem, suas pretensões ao cargo de prefeito já teriam caído por terra.

_ Solte-a, senhor George! – implora o motorista, tentando separá-los._ Por favor!

_ Até hoje eu não entendo o porquê dessa família nunca tê-la demitido... Talvez esteja nessa sua boca a resposta para muitas de minhas dúvidas – diz ao soltá-la._ Essa história não acaba aqui, ERNESTINA!

_ Com certeza, doutor! – confirma, fitando-o com uma ira descomunal.

_ Agora me dê licença, quero levar minha esposa aos nossos aposentos. Posso, criada?

_ Claro, patrão! – rebate.

Ele sobe as escadarias com ela nos braços, acompanhado pelos olhares revoltosos da empregada e decepcionados do chofer.

_ Dessa vez eu o salvei, Joaquim! Pense melhor antes de agir... O amor não é tudo na vida, como pregam os poetas em suas obras. Bem antes do amor há a inveja e o ódio, sentimentos capazes de enterrar uma pessoa viva.

_ O que quer dizer com isso, Dona Ernestina? – faz-se de desentendido.

_ Que a única coisa que não nos podem furtar é o sentimento que nutrimos pelo próximo... Então, guarde o seu apenas para você! – aconselha.

Joaquim entendera o recado. Melindrado, despede-se da criada com um sorriso quase despercebido.

_Coitado! – sussurra a mulher, mordicando os lábios, tamanho o nervosismo. _Que um dia seus sonhos possam ser realidade.

No dia seguinte...

O sol está no centro de si, quando o telefone toca. A ligação é para o vereador. O prefeito o convocava para uma reunião extraordinária, em que seriam acertados os últimos detalhes da coligação partidária que o elegeria o novo mandatário de Vila dos Princípios.

Antes de partir, diz à mucama:

_ Peça a Catharine que vista aquele Valentino rosa que lhe dei na última primavera, encha duas taças de vinho do Porto e me espere na sala de jantar assim que o sol se puser – entra na limusine. _Quero vê-la mais deslumbrante e atraente do que nunca! Se ela, por algum motivo ou instigada por alguém, resolver me desacatar, certamente, para ela, o amanhã poderá não existir – continua com ar de ameaça._ Agora vamos, matuto! – ordena ao motorista.

O vidro se fecha e o carro parte. Ernestina acompanha-os até sumirem de vista.

_Tenho dó desse ser! – confidencia-se a empregada, inconformada.

_ Pare o carro! – manda o patrão, a algumas quadras da mansão.

E assim Joaquim o faz.

_Agora que está longe de seu “cão de guarda de saia”, você me contará toda a verdade, matuto. O que estava, de fato, fazendo ao lado de minha mulher?

IV
Joaquim engole a saliva enquanto o suor lhe corre o rosto. Vendo-o perturbado pelo retrovisor, George parece se deliciar. É como se o que importasse não fosse apenas descobrir a verdade dos fatos, mas fazer alguém sofrer e com esse mesmo sofrimento se saciar.

_ O que me esconde rapaz? Por acaso está tendo algo com minha...

_ Não senhor! Eu-eu... – interrompe-o o criado, assustado. _Eu...

_ Por que está tão nervoso? – indaga, roçando as unhas no paletó, como se não se importasse com a conversa. _Sabe matuto – encara-o, esse é o seu nome, não é?

_ Joaquim! – corrige o rapaz. _Meu nome é Joaquim.

_ “O que Deus elevou”?

_ Como, senhor? Não entendi!

_ Joaquim: o que Deus elevou! Não conhece o significado de seu nome?

Com a cabeça, sinaliza que não.

_ Hum! E qual é a diferença entre Joaquim e matuto? Ambos estão às margens da sociedade, mal conhecem seus direitos, vivem à custa da esmola alheia, ou eu estaria errado, ma... digo, Joaquim? Fale!

O empregado se mantém em silêncio.

_ RESPONDA-ME! – exige o camarista.

_ Si-sim! – balbucia o empregado, como se o coração tivesse subido à garganta.

_ SIM O QUÊ? – brame, com os olhos presos aos dele.

_ O senhor... – arfa, antes de concluir - está certo!

_ Sabia que chegaríamos a um consenso. Sei o que você sente ao vir uma mulher como Catharine. Ela é mesmo excitante, tem um contorno facial mítico, um colo aprazível, modos de uma princesa, e o melhor, lábios que exalam o frescor do mel, assim como Iracema, a virgem indiazinha de José de Alencar. Você já leu Iracema? – desvia o olhar para a paisagem bucólica da região.

_ Não... – confessa, cabisbaixo, o criado, tentando esconder uma lágrima que insistia lhe escapar pelos cantos. _Nunca li!

_ Então leia! É uma obra maravilhosa, feita para pessoas sensíveis, de classe, que não se limitam à imaginação de um único autor. Pessoas como Catharine... como EU, são especiais, matuto. Temos dinheiro, compramos tudo e todos com o estalar dos dedos. Nunca passamos fome feito a gentalha que foge do sertão e vem para essas bandas retirar os empregos de nossa gente - corre os olhos pelo empregado e o vê segurando o pranto, dá um sorriso com gosto e continua a espezinhá-lo - aliás, FOME para nós é apenas mais um vernáculo do léxico português, daquele que fingimos não existir.

_ O... o senhor não chegará atrasado, senhor? – alerta o criado, tentando contê-lo.

_ Vocês que fogem da miséria estão acostumados a qualquer coisa, contentam-se com pouco. Um simples prato de arroz com salsicha lhes abre o sorriso; para nós, figuras nobres da elite paulista, de paladar apurado, somente o que há de melhor na gastronomia europeia nos satisfaz. Já teve o prazer de saborear um bom gigot d’agneau1 ao som de Chopin? Claro que não! Desde quando pobre entende de comida estrangeira e música erudita? – gargalha com sarcasmo. _Pobre é pobre. Pobre é motorista, empregado, lavadeiro...

_ Onde quer chegar com isso, ve-vereador?

_ À prefeitura, não se lembra? O prefeito me quer em sua sala para uma reunião com a nobreza da região. Anda muito distraído, Joaquim! – debocha. _Talvez se deixasse de “observar”, ou melhor, “desejar” as mulheres alheias, principalmente as casadas e supostamente indefesas, isso não aconteceria, não é mesmo?

As palavras do vereador são o tiro de misericórdia no coração do chofer, que mesmo desnorteado, procura se justificar.

_ Senhor... eu não...

_ Para a prefeitura, CHOFER! – manda.

As mãos de Joaquim trepidam sobre o volante, estão visivelmente empalidecidas. A sensação dele é a de ter sido picado por uma cascavel.

_ Algum problema, matuto? – deleita-se com a crise de consciência despertada no subalterno._ Parece-me transparente, sua pressão caiu? É comum nessa época do ano em que o calor é intenso.

_ Não se preocupe, senhor! Eu... eu apenas estou com um pouco de enjoo, deve mesmo ser o calor.

_ Certamente! – sentencia o representante do povo.

Joaquim para o carro no estacionamento da Câmara Municipal, abre a porta para o vereador e se despede com um ríspido “até mais tarde, senhor!”. Quando já não é mais possível avistar o camarista, corre para trás do carro e vomita. É a maneira que encontra para se libertar do ódio que agora lhe come por dentro. Sentado à calçada, com a cabeça apoiada à limusine, chora. Chora muito!

_ IDIOTA! – confidencia-se o vereador, à distância, sem que o chofer percebesse sua presença.

Retirando da carteira a fotografia amarelada de uma senhora, Joaquim pergunta:

__ O que foi que eu fiz, mãe? Só queria fugir da fome e ter um futuro melhor que o de nossa família. Mas só criei problemas! Quanta humilhação! Devia quebrar a cara daquele verme, mas... mas sou um covarde! – beija a imagem._ Me perdoe, mãe, pela vergonha! Sou mesmo um matuto, uma gentalha, como ele disse.

_ O que há com você, Joaquim? – acode o médico Rubens Arraia, amigo íntimo da família Dumont, que havia chegado à prefeitura para uma reunião com o Secretário Municipal da Saúde, ao vê-lo naquele estado._ Algum problema?

O chofer está inconsolável.

_ Venha, rapaz, seja forte, vou ajudá-lo! Venha comigo! Cristo, o que houve para estar assim? Parecer ter sido atropelado por um trator... Deixe-me ver a pressão! Você está gélido como os mortos – constata o médico. _Por que chora desse jeito?

_ O que há com meu motorista, doutor Rubens? – dissimula o vereador, aproximando-se. _O que fizeram com você, meu bom amigo matu... Joaquim?
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1 Pernil do cordeiro. Um dos pratos símbolos da cozinha francesa, o prato do domingo nos almoços de família ou nos jantares íntimos entre amigos.

V
O corredor é extenso, com muitos leitos, todos com crianças à beira da morte. Nele se encontra Catharine, debruçada sobre a maca da filha, de três anos. Alana tem leucemia, seu caso é grave, por isso, respira com o auxílio de uma máquina e não se alimenta mais pela via natural. Não raro, regurgita e chora, pedindo o colo da mãe.

Catharine se faz de forte, passa dias e noites acordada ao lado daquela menina - a sua razão de ser. E não importava o tamanho do sofrimento, ela sempre estava preparada para a guerra. Uma guerra que não tinha trégua. Que lhe custaria a perda da única filha.

Algumas horas antes de falecer, Alana pediu o pai. Onde ele estava? Por que não a visitava? Não gostava dela? O que tinha feito de tão grave para que ele a punisse com sua ausência? A mãe, que não mais se agüentava em pé, tentava a todo custo persuadi-la de que ele chegaria logo, como se isso fosse possível.

Com olhos semicerrados, a menina esperava, esperava... E esse papai nunca chegava. A dor que sentia parecia com a da ferida que não cicatriza. E não tinha mesmo como cicatrizar, o pai nunca se importou em saber como ela estava. E mesmo quando dava o ar de sua graça, era frio, indiferente, como se ela não pertencesse à família. Como se não fosse sua FILHA! Não havia quem não notasse! E George também, em momento algum, fazia questão de esconder a sua repulsa.

Isso revoltava Catharine. Não havia uma única vez que ele fosse ao hospital e não despertasse uma desavença familiar. Certa vez, inebriada pelo ódio, esqueceu-se de que estava dentro de um quatro de hospital, partiu para cima dele e lhe deu um tapa que entrou para a História. Não o tapa que ela desferira; mas o que recebera como troco. Foi a primeira e única vez que nele tocara. Para nunca mais! Uma enfermeira teve de ajudá-la a se levantar e a esconder o rosto do médico, quando esse a visitou naquela tarde.

Quando George partia, Alana queria sempre o colo da mãe, porque nele sentia o amor que lhe era negado pelo próprio pai. Dengosa, com a chupeta na boca, ela pedia que a mãe lhe molhasse os lábios, estranhamente, sempre secos. A cada dia que passava, a cada hora, a cada minuto, uma parte dela se desprendia, assim como fazem as pétalas de rosa em tempos de ventania, e voava para bem longe...Até se perder na imensidão!

No dia em que ela deixou este mundo, Catharine cochilava na poltrona ao lado de sua caminha. Quando ouviu o aparelho que monitora os batimentos cardíacos apitar, saltou em direção à pequena. E Alana, por mais incrível que pareça aos olhos dos céticos, estava à sua espera. Só partiu quando a viu! Morreu sorrindo por saber que ao menos a mãe estava ao seu lado.

_ALLLLLLLLLLLAAAAAAAAAAAAAAAANAAAAAAAAAAAAAAAANNNNNNNNAAAAAAAAAAAAA!!!!!!!!!!!!! – gritava, sacudindo-a, como se o seu desespero lhe fosse devolver a vida dela._ AJUDEM-ME, POR FAVOR! – suplicava pelos corredores.

Mas não havia mais ninguém ali disposto a lhe estender a mão. Não por maldade... Por pena! Todos sabiam, o inverno – o espaço de tempo em que às flores murcham - chegara, pelo menos para Alana, e isso era sinal de morte!

_ Acalme-se, Dona Catharine! – pede Ernestina, vendo-a agitada na cama._ Acalme-se! Está tudo bem! Olhe, está em casa... Estou aqui! Nada irá lhe acontecer! – diz a empregada, embaraçada com o próprio choro._ Está tudo bem!

_ Alana se foi mesmo, Ernestina? – pergunta, como se não quisesse acreditar, ao perceber que havia rememorado as tristezas de outrora._ Diga para mim que é mentira! Por favor! Ela não morreu, não é? Morreu?

_ Infelizmente!!! – confirma a criada, cabisbaixa, em soluços.

_ Por que, Ernestina? Por quê?

_ Há coisas para as quais não há respostas e essa é uma delas. Infelizmente, nossa pequenininha partira. Até hoje me pergunto também o porquê de tão curta passagem por essa vida; as respostas que encontro sempre terminam onde se iniciaram as perguntas: no por que!? Deus poderia ter levado qualquer um de nós, até mesmo aquele salafrário do seu marido, mas por algum motivo a escolheu. Talvez porque ela fosse ainda um anjinho, daqueles que se coloca em cima da penteadeira e se admira por longo tempo. Certamente, Deus a pôs em sua penteadeira, de onde a admira agora. Que autor deixaria de apreciar sua própria obra?

_ Oh, Ernestina! Como és bela! Tens um coração maior que o peito, do tamanho do mundo. Suas palavras me consolam...

_São apenas muletas de quem não tem o que dizer. Você, querida, que é bela. O que passou naquele hospital eu não desejaria para o meu pior inimigo. Mas você foi forte, uma guerreira de fibra! – limpa as lágrimas._ Perdeu a guerra, mas perdeu com honra! E isso é o que importa! Tenha certeza, a MORTE não a visitará tão cedo, teme enfrentá-la novamente.

Catharine abraça-a com força. Os corpos estão incendiados pela dor. Se alguém as visse, deduziria ser mãe e filha, não patroa e empregada. Uma sintonia espiritual pouco vista em figuras sem qualquer laço de parentesco.

_ Agora saia dessa cama, vamos, levante-se! O que pensa fazer na cama até essa hora? Preguiçosa! Veja – abre as cortinas para que os raios de sol espantem a escuridão daquele quarto – o dia está quase se deitando com a sua princesa e a senhora ainda está de pijama. Que vergonha!

Um sorriso tímido ressurge na face da única herdeira dos Dumont.

_ Venha, coma uma maçã... Trouxe-lhe de tudo! Iogurtes, frutas, pães. Farte esse corpo, muitos obstáculos virão e a senhora deve estar forte. Acha que Alana ficaria feliz ao saber que sua mãe, aquela onça em forma de gente, desistira de viver, e justo por ela? Que decepção!, diria nossa pequena - os lábios de Ernestina estão empolgados, querem expulsar a tristeza daquele quarto._ Não é verdade?

_ De onde estão brotando essas palavras, Ernestina...?

_ ...do amor que tenho pela senhora! – completa a sexagenária. _Um amor incomensurável.

_ Incomensurável? És uma poetisa!

_ Sou fruto de seus esforços. Lembra-se do dia em que me neguei a assinar uma encomenda de meu ex-marido e a senhora, com espanto, me perguntou o porquê daquele gesto? Até pensou que eu tivesse mandado matá-lo. Quem me dera! Ali me conhecera de verdade... Eu era analfabeta e tinha vergonha de assumir. Mas ao invés da senhora me depreciar – como muitos fizeram, optou por me ensinar! Quantos livros li? Perdi as contas. Às vezes me acho parecida com a Hanna, de O Leitor2, isso não quer dizer que eu seja nazista... Deus me livre, guarde!

_ Será? – brinca pela primeira vez, após meses de dor intensa. _Do jeito como tratou aquele carteiro... Coitado! Ele estava diante de um Hitler de saia!

_ Boba! – beija-lhe a fronte._ Vá comer! Ah, antes que me esqueça, seu digníssimo esposo pediu para recepcioná-lo, à noite, com aquele Valentino rosa que lhe deu.

_ Só? - debocha.

_ Não se esqueça das taças de vinho do Porto, hein? Hum! Acho que nada aconteceu nessa casa! Para ele não aconteceu mesmo - certifica-se a mucama. _Ô bicho ruim! Se eu fosse a senhora...

_...o colocaria para correr! – completa Catharine. _Já me disse isso, Ernestina.

_ Pois repito!

As horas se passam...

A lua se nega a dançar balé no céu anuviado. É o prenúncio da chegada do vereador à mansão.

A porta da limusine se abre, George atravessa o hall de entrada e chega à sala de jantar.

_ Boa noite, George! – saúda a mulher.

O vereador a fulmina com os olhos.
______________
2 Romance de Bernhard Schlink que deu origem ao filme estrelado por Kate Winslet e Ralph Fiennes. O adolescente alemão Michael tem 15 anos quando começa a relacionar-se com Hanna, uma mulher 21 anos mais velha. Ambos vivem uma delicada e intensa relação amorosa, até que Hanna desaparece subitamente sem deixar pistas. Sete anos depois, Michael, agora estudante de direito, é convidado a tomar parte de um julgamento contra os criminosos do regime nazista. Ele descobre, para seu terror, que sua antiga amante é uma das acusadas pelos crimes.

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VI

Catharine estranha a atitude do marido.

_ Aconteceu alguma coisa, George?

_ Onde arrumou este colar? – esbraveja ao notar a joia no pescoço da mulher._ Responda-me!

Catharine balbucia, teme outra reação agressiva do marido.

_ VOU REPETIR: ONDE ARRUMOU ESTA... ESTA PORCARIA?

O colar que ela usava era um presente de escola dado por Alana. O último. Um singelo cordão de prata com um pingente em formato de coração em cuja superfície era visível o nome da menina. Um ornato de baixo valor financeiro, mas de grande valor sentimental. É óbvio que destoava do Valentino – uma relíquia aos olhos dos invejosos. E o que isso importava? Ela estava feliz com aquele mimo e resolveu usá-lo em homenagem à memória da filha. Isso era algum crime? Se fosse, ela o estava cometendo com gosto. Por isso, com as forças ressurretas por um milagre divino, fixou fria e vagarosamente os olhos do vereador e respondeu:

_ Foi um presente de Alana! Algum problema?

_ Não percebeu que este vestido não combina com joias de valor duvidoso? Ele é um Valentino! Daqueles que as mulheres pagariam qualquer coisa para ter...

_ ...Eu não! – entrecortou-o.

_ Você não? – puxa o colar com força, arrebentando-o. _VOCÊ NÃO? – insiste.

_ Devolva-me, por favor! Foi o último presente que recebi de nossa filha. Por favor!

_A-LA-NA! – lê o nome da filha no pingente._ Hum! – esnoba. _Cadê o colar exclusivo de pérolas brancas que lhe dei para usar com este belo exemplar da alta-costura?

_ Está lá em cima! Dê-me o colar... – pede!_ Ele é meu!

_ Sabe quanto custou aquele colar que lhe dei? Vinte mil! Sabe o que são vinte mil? Daria para pagar o salário de um ano daquela empregadazinha que insiste em manter debaixo de nosso teto. E sabe quanto custou isso?- pergunta, olhando o colar com um misto de escárnio e desprezo. _No máximo, um décimo do que paguei. Mesmo sabendo disso, optou por usá-lo? –franze a testa. _Queria me desafiar?

_ George, por favor, devolva-me... - os olhos marejados denunciam quão está entristecido o seu âmago. _ Não quis desafiar ninguém, quis apenas expor meu amor por nossa filha. Isso é algum crime?

_ Ainda pergunta? Troca uma peça valiosa por uma...

_ E quem disse que essa também não é? – interrompe-o. _Para mim, é a peça mais valiosa do mundo, porque foi feita com amor e pela pessoa que mais me amava: MINHA FILHA. MINHA ÚNICA FILHA. Não percebe! Pode não ter valor de mercado, mas possui um valor sentimental inestimável. É isso que importa! Sinto-me honrada por usá-la!

_ Isso...isso é motivo de honra?

_ Sim! – declara a mulher.

Ele gargalha.

_ Você me causa asco! Hum! Sempre teve tudo do bom e do melhor, nunca precisou de nada, não sabe sequer o valor de um caviar, de um bom cálice de vinho; bastava estalar os dedos para que tudo caísse do céu como num passe de mágica. Se tivesse sofrido um pouco, passado por alguma dificuldade, saberia distinguir o valor que há entre esta... coisa e o que eu lhe dei! Você precisa aprender muito comigo ainda.

_Pelo contrário, é VOCÊ quem precisa aprender muito comigo, seu verme! – esbraveja, soltando todo o ódio que há dentro dela.

George revida a agressão verbal com uma bofetada que a joga ao chão.

_ NUNCA MAIS FALE COMIGO NESSE TOM! – quebra o colar em pedacinhos e retorce o pingente; ao jogá-lo no chão, pisa com força. _O seu “mimo” está debaixo de meu sapato, assim como você – sua frieza impressiona por se tratar da própria esposa.

Dirige-se à escadaria, quando é interpelado pela mulher.

_ O que ganhou com tudo isso? – machucada por dentro, verte-se em lágrimas.

_ PRAZER! – profere, olhando-a com fervor.

Sobe as escadarias como se nada tivesse acontecido. Em prantos, Catharine arrasta-se sobre o piso frio. Chama Ernestina, mas sua voz, esmorecida, não chega à criada. Chama de novo, dessa vez, com as últimas forças que lhe restam.

_ ER - NES-TIII-Naaaa – desfalece.

Ao ouvir seu nome, a empregada se desfaz da rotina do lar e corre auxiliá-la. Quando adentra a sala de jantar, encontra a patroa caída num canto, desacordada, com sangue escorrendo pelo rosto. Abalada, berra por socorro.

VII
George ouve os gritos da empregada e, como se nada tivesse acontecendo, despe-se e entra no chuveiro. Um sorriso amarelo toma-lhe a face. Ao terminar o banho, veste-se com um pijama de seda e deita na cama, de onde confessa:

_ Falta pouco!

_ Ernestina, o que está acon... – assombra-se o motorista, ao adentrar a sala de jantar e encontrar Catharine desmaiada.

_ Venha, Joaquim! Ajude-me, por favor! – pede, apavorada.

_ Dona Catharine... mas... mas... O que aconteceu?

_ Vamos, homem! Venha! Depois conversamos... Pegue-a no colo e traga-a para... – depara-se com uma realidade assustadora: para onde levá-la? Se George a ignorou, mesmo numa situação como aquela, deveria levá-la para o quarto do casal?

_ Ela está sangrando, Ernestina! Aonde devo levá-la? – os papéis se invertem, agora quem exige uma atitude imediata é o motorista. _Fale, mulher!

A criada permanece inerte, olhando as escadarias, quando uma súbita vertigem a faz apoiar-se à mesa do centro e a fechar os olhos. A imagem de Alana lhe surge como trovão. Assustada, reabre-os, correndo-os ao redor como se quisesse encontrar algo. O coração bombeia o sangue acelerado, enquanto todos os cantos da sala são submetidos a uma análise minuciosa. A vertigem cessa quando avista, a alguns passos, o reluzir de um objeto. Toma fôlego e se inclina para pegá-lo. É o pingente retorcido com parte do colar. Um arrepio lhe corre a espinha! Não estava acreditando no que via, parecia coisa de novela, aliás, se alguém contasse, nem ela mesma acreditaria. Aquilo que estava na palma de sua mão era o colar da menina.

_Use o colar que Alana lhe deu. Acha que aquele demônio perceberá? Ele só se importa com o vestido, porque, para ele, acima de tudo está o dinheiro. Não compra a felicidade, mas pode destruí-la sem pena – relembra Ernestina.

Joaquim não entende a criada que, à primeira vista, parece imersa em um transe.

_ Então ele foi capaz de uma estupidez dessas? E a culpa foi MINHA! – confessa, apertando o pingente contra o peito._ Mas ele me paga! Venha, Joaquim, traga Dona Catharine para o meu quarto.

_ Para o seu quarto? E o quarto dela?

_ FAÇA O QUE ESTOU MANDANDO! – determina.

Então cumpre a ordem sem entender o porquê. A mulher é posta na cama, enquanto a criada pega algumas gazes para limpar o ferimento.

_ Quem fez isso, Ernestina? Por acaso ela caíra da escada?

_ NÃO! – monossilaba a mulher.

_ Eu pensei que ela tivesse caído...

_ Você ainda não entendeu, Joaquim? – entrecorta-o. _Foi aquela peste que fez isso.

_ De quem está falando? Do senhor George?

_ E há outra peste nessa casa? Hum! Isso não ficará assim! – repete, dando as costas a Joaquim.

O sangramento não estanca; por não aparentar profundidade, causa estranheza nos empregados, que se afligem.

_ O ferimento não para de sangrar... Meu Deus! Será que ela vai morrer?

A pergunta cai como bomba no coração da empregada, que se contrai pelo remorso.

_ O que vamos fazer, Ernestina? Não seria melhor levá-la para o hospital? Fale, mulher, está me deixando agoniado!

Joaquim não se aguenta de dor. À sua frente, a deusa de todos os seus mais íntimos desejos fenece. Nunca esteve tão perto dela e agora que tem a oportunidade, é para assistir a sua perda. Que destino injusto é esse que lhe prega peça de tanto mau gosto?

_ Segure esse algodão enquanto ligo para o doutor Rubens... Vá, vá,! Ô bicho lento!

Joaquim não é lento como diz a empregada, simplesmente é cortês. Gesto que muitas pessoas já não cultivam mais. Enquanto comprime a ferida, ele observa a mulher que lhe havia despertado para os sonhos novamente. Aqueles lábios carnudos, ainda que roxos, pareciam chamá-lo. Como resistir àquela tentação?! Fechando os olhos, arfa com dificuldade.

No íntimo, sente-se culpado por tais pensamentos, afinal, o momento é de crise; mas desde quando amar alguém com a alma é algum crime? Os valores estão subvertidos, porque crime é o que fizeram com ela.

Espancar é crime e deveria ser hediondo, para que ninguém mais o cometesse; entretanto, quem se presta a esse tipo de barbárie é ovacionado por parte da sociedade tradicional, porque se a mulher apanha, certamente fizera algo de muito errado ao marido. Quanta idiotice! Se ouvissem mais o amor e o pregassem como pregam essas bobagens, o mundo seria outro, talvez melhor.

_ “Não há disfarce capaz de ocultar o amor quando ele existe, nem de simulá-lo quando já não existe”, como disse o brilhante Rochefoucauld3, certa vez – sussurra a empregada, à espreita.

_ EU TE AMO, Dona Catharine! – confessa à mulher, ainda desacordada._ E não deixarei que façam isso de novo com a senhora. Não deixarei! Prometo por tudo o que há de mais sagrado nesse mundo – limpa as lágrimas. _Se lhe tocarem outra vez, serei capaz de qualquer coisa, até de... MATAR!

Ernestina os deixa a sós e senta à mesinha da cozinha, muito comovida. Que espécie de amor era aquele? Real, surreal, platônico..? Não sabia definir, mas que era divino, ah, isso era!

O médico chega à mansão e é assistido por George, da janela do quarto.

_ O que houve com Catharine, Ernestina? Que mal lhe acometeu? – exige o doutor.

Ernestina apenas o vê com serenidade e antes que ele se aventure a uma outra pergunta, responde:

_ Uma coisa horrível!

_ E o que foi?

_ Veja com seus próprios olhos...

Ela indica o quarto. Ele empurra a porta e vê Joaquim beijando a mulher, com uma parte da roupa manchada pelo sangue.

_ Mas o que é isso? – cobra, alterado, o médico sexagenário. _O que pensa estar fazendo, meu rapaz?

_SENHOR???- surpreende-se o motorista, ao avistar George à sombra do doutor Rubens Arraia.

______________
3 Cínico, ácido, humorista, pessimista, filósofo, o duque francês La Rochefoucauld foi sobretudo um dos maiores frasistas do século XVII de que se tem notícia. Muitas delas (ele as apelidou de máximas) repetimos até hoje sem o devido crédito.

VIII
O vereador surta ao perceber a pequena proximidade entre Joaquim e a mulher.

_ O QUE ESTÁ FAZENDO PERTO DE MINHA MULHER, MATUTO? ALIÁS, O QUE ELA ESTÁ FAZENDO NESSE MOQUIFO? MEU DEUS, VOCÊ A MATOU? – inquire com ira ao se atentar à mancha de sangue na roupa do criado.

_Não, se... se...

Percebendo que é a única testemunha do beijo roubado pelo motorista, o médico aproveita a ocasião para desviar o foco da conversa para o ferimento.

_ Joaquim, o que aconteceu? Fale para nós! – agiganta-se com o intuito de intimidar o chofer, dessa forma, ele se perderia na explicação e o fato permaneceria em segredo. _ O que dona Catharine faz num quartinho como esse?

_ Ela estava caída na sala e resolvemos trazê-la para cá, doutor Rubens – responde Ernestina, adentrando ao quarto e fulminando o camarista com os olhos tomados pela cólera.

_ O QUE ACONTECEU COM MINHA MULHER? POR QUE NÃO ME CHAMARAM? – finge, completamente comovido.

_ Covarde! Cínico! Esse bicho está mais para o pai da mentira que para defensor dos pobres e oprimidos – confidencia-se a empregada. _Se eu pudesse, dava um tiro nesse cão.

_ Nós o chamamos, senhor! – ironiza a empregada. _Mas acho que seu sono é muito profundo, porque até os defuntos do cemitério se levantaram com meus berros, menos o senhor.

_ O QUE QUER DIZER COM ISSO, MUCAMA ATREVIDA? QUE A IGNOREI? – volta-se para Joaquim._ E VOCÊ, O QUE TEM A VER COM TUDO ISSO? POR QUE ESTAVA AGACHADO AO LADO DE CATHARINE?

_ Estava pressionando o algodão contra o ferimento enquanto eu localizava o doutor Rubens Arraia – responde Ernestina no lugar de Joaquim, que se refugia ao lado de um guarda-roupa da era de Geisel, o ditador.

Os olhos da empregada engolem os de George, que retraído, prepara a vingança. A guerra só não explode porque doutor Rubens intervém, pedindo para que todos se mantenham afastados enquanto examina a única herdeira dos Dumont.

_ É impressionante o que acontece nessa casa. Hum! Minha esposa cai da escada e, ao invés de me chamarem, preferem trazê-la para um pulgueiro fétido como este.

_ Aqui não há cadelas nem cães, vereador! E se houverem, certamente, estão em qualquer outro quarto do primeiro andar – dispara a criada.

_Como assim? Caiu da escada? – desafia Joaquim, encorajado pelas palavras de Ernestina. _Pode ter acontecido outra coisa.

Joaquim é espezinhado pelos olhares enraivecidos do camarista, que se mostrava aturdido com a coragem repentina do chofer.

_ Boa pergunta! – diz o médico, levantando-se. _Como Vossa Excelência tem a certeza de que dona Catharine escorregara mesmo na escada? Essas marcas em seu rosto são de dedos de uma mão humana e o ferimento, pela profundidade, não me parece causado por um tombo de escada, até porque, se eu estiver correto, a sua tem uns quarenta degraus, e, uma queda nessas condições, poderia ser fatal, o que não é o caso!

_ Responda ao doutor, senhor George! – provoca a empregada. _ Eu não me lembro dela ter retornado aos aposentos após sua chegada. Eu a deixei na sala de jantar e me recolhi à cozinha; aliás, se ela tivesse mesmo sofrido uma queda, o senhor não perceberia? Estavam juntos, não? Tem alguma coisa estranha em toda essa história, não é doutor Rubens?

_ Quem sou eu para afirmar qualquer coisa, Ernestina! A única afirmação que posso fazer é a de que dona Catharine não sofrera uma queda tão brusca.

_ Não estava com Catharine... – titubeia o vereador, tentando dissipar os olhares de dúvidas. _Precisei dar uns telefonemas para... Bem... Catharine preferiu...

_ ELA NÃO CAIU DA ESCADARIA! – sentencia a empregada, entrecortando-o. _Não é, Joaquim? Diga ao doutor como a encontrou?

_ Ela não caiu mesmo, doutor! – responde o chofer, acompanhado pelos olhos de águia do patrão.

George pretendia desmerecê-lo, quando Ernestina, de relance, mostra-lhe o pingente com parte do colar. Ressabiado, o vereador recua e se dirige ao médico.

_ É... deve ter sido um engano! Deixe-me levá-la à alcova. Oh, meu amor, o que fizeram contigo? – diz, como se comovido, com as mãos descendo delicadamente a face dela. _Como eu te amo! Venha, vou cuidar de você.

Pega-a nos braços e a conduz para os aposentos do casal, tendo à sombra os criados e, muito mais atrás, o desconfiado doutor Rubens Arraia.

No quarto permanecem apenas o médico e a paciente, que, por sinal, recobrava aos poucos a consciência.

_ Impedido de entrar em meu próprio quarto! Hum! Quem esse “medicozinho” pensa que é? Por acaso o presidente da República? – esbraveja o político, enquanto toma uma dose de uísque.

_ O senhor pagará por tudo o que fez a Catharine... – diz a criada, aproximando-se dele, pelas costas.

_ E o que eu fiz a CATHARINE?

_ Imagine quando seus eleitores souberem que o senhor espanca a esposa... Será um escândalo devastador! O senhor não se elegerá mais nem para faxineiro da Câmara.

Diferentemente do que ela imaginava, o vereador não se abala, abre um sorriso cínico e faz uma ameaça velada:

_ Imagine se uma bala perdida atravessasse as paredes dessa casa e atingisse sua nuca...

_...bala perdida em Vila dos Princípios? – debocha._ Não me faça rir, praga dos infernos. Melhor arranjar outra, essa não colaria.

_ Será mesmo? Alguns gatunos invadiriam essa mansão em busca de pedrarias e, na troca de tiros com a polícia, uma bala mudaria o rumo e atingiria a sua cabeça – sussurra, deleitando-se com a súbita apreensão da mulher.

_ Teria a coragem de chegar... a esse ponto? – pergunta a mulher, tropeçando nas palavras.

_ Da mesma forma que pisei em Catharine e em seus mimos nostálgicos – sussurra-lhe aos ouvidos, sendo assistido, à distância, pelo médico.

_ Vereador, posso falar a sós com o senhor por um minuto?

_ Como ela está, doutor? Se algo lhe acontecer, preferirei a morte!

_ Ela está melhor! Inclusive, se Ernestina puder acompanhá-la enquanto conversamos, agradeceria.

_ Por mim, tudo bem! – diz a mulher, agora se voltando para George. _ E para o senhor, algum problema?

_ Não! Nenhum! - as palavras lhe correm os lábios como se fossem veneno de cobra.

_ Ave, subirei essas escadas com cuidado, vai que eu leve um tombo também, né? – mostra de novo o pingente a George, aproveitando-se que o doutor estava de costas para ela.

_ Por aqui, doutor... – o vereador lhe aponta o escritório. _ Por favor!

Ao ouvir que sua musa convalescia-se, Joaquim correu para o seu quarto, deitou-se na cama, abraçou o travesseiro e sorriu. Sorriu como nunca! O medo de que o doutor o entregasse estava em segundo plano, porque o que o deixava feliz aquele momento era o beijo que dela havia arrancado. Que lábios saborosos! Se morresse agora, morreria feliz, afinal, para ele, dona Catharine era mais do que uma aspiração lasciva... Era a imagem feminina de um Deus inatingível!

_ Agora estamos só nós dois, vereador! – diz o médico, fechando a porta.

_ Sim! – arruma-se na cadeira, revelando nítido desconforto com as palavras do médico.

_ O senhor sabe há quantos anos atendo essa família, senhor George...de quê mesmo?

_ O senhor sabe, doutor Rubens, George Dumont!

_ Negativo! Esse não é o seu de batismo, vereador; se o fosse, seus pais seriam os patriarcas dessa família e não os de Catharine DUMONT.

_ Onde o senhor quer chegar, doutor Rubens? Pensei que fosse me relatar o estado de minha esposa...

_ E irei! – interrompe-o. _ Antes, tenho uma pergunta a lhe fazer, senhor... Jorge da Silva, ou esse não é o seu verdadeiro nome?

George se cala, curioso com o desenrolar da conversa.

_ Diga-me, esse não é o seu verdadeiro nome?

_ Sim! – limita-se.

_ Se precisa tanto da família Dumont, mais precisamente da pobre Catharine e de seu sobrenome para se alçar ao poder e vender um status que sua origem não pode lhe proporcionar, por que então se prestou a um ato tão vil como aquele?

_ Eu não estou entendendo...

_ Não?! – corta-lhe o médico, com a surpresa estampada à face. _Faz mais de quarenta anos que presto serviços a essa família e é a primeira vez que sou chamado para atender a uma vítima de espancamento – no íntimo, Rubens sabia que isso não era verdade. _ Ou Catharine não foi espancada pelo senhor?

IX
O vento desce do céu, bate a poeira, formando um vendaval, que corre pelas ruas carregando as folhas e outros dejetos acumulados às margens da sociedade. O relâmpago ilumina o céu enegrecido, aos poucos uma garoa fininha cai sobre Vila dos Princípios. Mulheres com filhos ao colo correm recolher as roupas do varal, enquanto os homens arrebanham o gado. A chuva engrossa, a energia escasseia e parte da cidade fica sem eletricidade. Os geradores da mansão são acionados quando as primeiras quedas de energia vitimam a casa.

Da janela dos aposentos de sua patroa, Ernestina presencia a cidade à meia luz.

_ Lágrimas do céu!

_ Hã?! O que disse, Ernestina? – pergunta Catharine, um pouco sonolenta.

_ Que a chuva é a lágrima de Deus! Veja como o tempo mudou, o vento assopra, as gotas caem... Lembram uma pessoa em desespero! – diz, voltando-se para a herdeira dos Dumont.

_ Talvez esteja chorando por mim! O que faz um pai quando um filho é injustiçado? O mínimo que se espera é o choro, talvez porque alivie a alma, tira aquele peso das costas – conclui Catharine, tentando se levantar.

_ O que pensa fazer, senhora? Está em repouso! Ordens do doutor Rubens! – alerta a criada.

_ Rubens esteve aqui? – pergunta, passando a mão sobre os pontos dado por ele no ferimento._ Então ele me viu dessa maneira? Quanta humilhação! Onde ele está?

_ No escritório, com seu esposo, e, pelo andar da carruagem, a conversa não está sendo tão amigável.

_ Tenho de impedir que Rubens comente algo com alguém; do jeito que ele é, será bem capaz de denunciar meu marido.

_ E qual seria o problema se ele fizesse isso, dona Catharine? Alguém tem de pará-lo! Se não for a senhora, que seja a polícia. Ainda sonho com aquele traste saindo da mansão dentro de um camburão ao som de “Malandro é Malandro e Mane é Mane”, do grande Bezerra da Silva.

_ Não entende, Ernestina! Um escândalo desses acabaria para sempre com o futuro político de George e eu não me perdoaria.

_ A... senhora... –remenda as palavras, indignada. _Desculpe-me a franqueza, mas está com dó dele ou... é impressão minha?

_ Ele é meu MARIDO! – surpreende Catharine.

_ E a espancou! – completa a criada. _Acha isso certo? Não bastasse, aquele malandro foi capaz de atrocidades ainda piores.

Mostra-lhe o pingente. Catharine o recebe e chora de tristeza.

_ Ele reparou o colar... – sussurra a mulher.

_ E até agora me culpo pelo que aconteceu com a senhora.

_ Não se culpe, no fundo, eu queria mesmo usá-lo, mas não tinha coragem. Você apenas me fez acreditar no impossível: que George não se prenderia a um detalhe como esse... E logo o colar, o ornato que adorna com um toque de elegância o colo feminino! Fui tola demais!

_ E um homem que é capaz de espancar a mulher, arrebentar o último presentinho da filha à sua mãe, merece a impunidade? O mundo está cheio de homens como ele, assim como também está cheio de homens que pagam por crimes iguais aos dele.

_ Você não entende, minha querida! Ele... ele...bem...

_ Não há como perdoar uma agressão dessas. Veja – mostra-lhe um pequeno espelho de bolso, a senhora está com a face arroxeada, a fronte suturada e, sabe-se lá, poderia ter até morrido.

_ EU AINDA O AMO! – confessa aos prantos, escondendo-se de sua imagem com uma manta fina de linho.

_ Dona Catharine, não consigo mesmo entendê-la! Não é a primeira vez que leva uma surra, entretanto, nunca foi capaz de tomar uma atitude para que o senhor George parasse com a violência doméstica. É como se a senhora gostasse... – enche os pulmões de ar e continua - a senhora pode até amá-lo, mas ele não a ama; quem ama não é capaz de tal brutalidade. Quem ama vive o ar que o outro respira, não o prende num “tronco” – porque seu casamento é um tronco - e o chicoteia como se estivéssemos nos tempos da Escrava Isaura. Querida, muitas mulheres passaram por humilhação semelhante ou maior e foram corajosas ao ponto de pedir ajudar. É para isso que existe a lei Maria da Penha. Para livrar pessoas como nós das mãos de psicopatas como George, que tratam as mulheres como se fossem objetos de uso particular. É isso que quer para sua vida? Ficar deitada em uma cama, escondendo o rosto com uma manta?

_ Eu não posso fazer nada, Ernestina!

_ E por que não? A senhora é forte, tem uma vontade enlouquecida de viver, mas prefere a dor ao amor; talvez porque não conheça mais esse sentimento! A mulher que vejo à frente não é a que enfrentou o marido no hospital, nem a que o desafiou há pouco, naquela sala de jantar... A mulher que vejo está perturbada pelo medo!

Catharine deixa de lado o cobertor e a abraça.

_ O que posso fazer para me livrar desse mal? Como faço para esquecê-lo, ou melhor, contê-lo?

_ A senhora deveria olhar para os lados, ouvir mais as pessoas, sair um pouco dessa casa, deixar os problemas de lado e viver a vida com a mesma intensidade da adolescência. Verá que há outros homens melhores, prontos para recebê-la nos braços... E quando isso ocorrer, perceberá que o que sente por George hoje não é amor, mas MEDO.

_ E quem olharia uma mulher acabada como eu, marcada por cicatrizes?

_ Homens que estão mais próximos à senhora...

_ Quem em especial? – interessa-se a mulher. _Do que está falando, Ernestina?

_ De que o dinheiro não é tudo na vida de uma pessoa, que há amor em todos os lugares, desde que esteja preparada para reconhecê-lo. E com certeza, em algum lugar desse planeta, há um homem capaz de amá-la de verdade, de fazê-la feliz como mulher, como ser – diz, com a face contornada por um brilho celestial. _Precisa desfazer-se desse casamento de fachada para ser feliz! FELIZ! Sabe o que é isso?

Catharine balança a cabeça, negativando a pergunta.

_ Quero apenas o seu bem! – cobre-a até o pescoço. _Pense no que eu disse, certo? Agora tente dormir um pouco...

_ E se George resolver me bater de novo? – teme.

_ Duvido, pelo menos por hoje ele não será capaz de fazer nada! Está com o rabo preso.

A empregada se retirava da alcova, quando Catharine a chama novamente.

_ Feche a porta! Posso lhe confidenciar um segredo, Ernestina?

_ Claro, madame! Diga o que quiser, sou um túmulo!

_ Lembra-se daquele dia em que você ficou com Alana no hospital para que eu viesse tomar um banho?

_ Sim... Continue!

_ Estava determinada a pedir a separação, afinal, que casamento era aquele em que o marido abandonava a mulher no momento mais doloroso de sua vida para angariar recursos a uma campanha eleitoral? Ao chegar à mansão, percebi que George estava nesse mesmo quarto e pedi para trocar algumas palavras com ele. Quando se inteirou do assunto, movido por uma ira descomunal, ele me estapeou; caída ao chão, recebi vários chutes... Depois, feito um demônio, ameaçou-me de morte se eu o deixasse.

_E-ELE FEZ ISSO? – pergunta a empregada, horrorizada. _Por que a senhora não me disse nada? Eu poderia ter chamado a polícia, colocado esse traste atrás das grades.

Catharine lhe mostra as cicatrizes da agressão.

_ MEU DEUS! – assusta-se a empregada. _ Co-como a senhora suportou essa dor sem demonstrar qualquer sintoma?

_ Rubens me prescreveu alguns analgésicos. Ele sabe de tudo!

_ E como ele soube, senhora?

_ Ao retornar ao hospital naquele mesmo dia, eu desfaleci sobre Alana, assim que você partiu. E como todos os funcionários já sabiam que Rubens era o médico particular da família, chamaram-no. Quando me viu, não acreditou! Cobriu o rosto com as mãos, dizendo que esse casamento me levaria à cova. Disse que denunciaria George; mas eu o adverti! E em nome de minha família, pedi sigilo!

_ Rubens está certo, a senhora precisa fazer alguma coisa antes que esse homem dê cabo de sua vida!

_ Tenho medo dele... - chora. _ Muito medo! Ele me ameaçou de morte.

_ E morrerá do mesmo jeito se com ele permanecer! Não compreende, senhora? Ele não a ama, vive ao seu lado por causa do dinheiro de sua família.

_ O que faço, Ernestina?

_ E aquela tal história de que o ama ainda? É verniz?

_ Não sei... Estou confusa! Muito confusa!

_ Nenhum amor vale a dor que está sentindo agora... Venha cá! – dá-lhe a mão. _Como sofre! Dê-me um abraço!

_ Me... me...ajude, por favor! – suplica a patroa.

Ernestina encontra aqueles olhos grandes e azulados tomados pelas lágrimas e se limita apenas a consolá-los com um leve beijo à face.

Retira-se da alcova e para a alguns passos da escadaria, quando é invadida por lembranças.

_ Jamais deixe minha filha reviver minha história... Quando as coisas estiverem aparentemente perdidas, lembre-se, Ernestina, dentro desse envelope há a solução para todos os problemas. Guarde-o em um lugar que apenas você tenha acesso; se cair em mãos erradas, muitas vidas inocentes serão condenadas ao vale da morte – implora Dona Franceline Legrand Dumont, a mãe de Catharine, em meio às lágrimas. _Nunca o abra, Ernestina! NUNCA!!!

_ E o que há de tão importante dentro dele, senhora? – pergunta a mucama, num misto de curiosidade e aflição, correndo os olhos ao destinatário. _É para o senhor Rubens, O MÉDICO?

_DENTRO DELE ESTÁ O DESTINO DE CATHARINE!

_ E por que para o doutor Rubens Arraia?

_ Minha boa amiga Ernestina, não lhe posso falar mais nada! Se o falar, você será a próxima vítima de Dilermando Dumont, o meu esposo. Por favor, não me faça mais perguntas... Apenas prometa-me ser fiel às recomendações de que lhe fiz.

_ Eu prometo, senhora!

Ao ouvir a confirmação do pedido, a senhora Dumont se retira em prantos.

_ Se voltar a por a mão em Catharine, prometo levá-lo aos tribunais, vereador! – ameaça o médico, no escritório, de frente para George.

_ Quanto você quer para ficar com a boca calada, doutor?

_ Como é que é? – revolta-se Rubens com a proposta indecente. _REPITA O QUE DISSE!

_ Todos têm um preço... Fale o seu, pagarei com prazer!

Um soco desferido pelo doutor joga o camarista contra a parede.

_ ESSE É O MEU PREÇO! NÃO MEÇA MEU CARÁTER COM SUA RÉGUA, VEREADORZINHO! BEM SE VÊ O QUE VOCÊ É: UM MORTO EM VIDA!

_ Isso terá troco, doutor Rubens!– metralha George com o sangue escorrendo desordenado pelos cantos da boca.

_ CURTA UM POUCO DO PRÓPRIO VENENO! – ironiza, apalpando o punho. _ SE TOCAR EM UM FIO DE CABELO DE CATHARINE, QUE NÃO SEJA PARA FAZER UM AFAGO, ESTAREI NO TRIBUNAL, À SUA ESPERA, COMO TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO... SERÁ UM ESCÂNDALO INCALCULÁVEL, PORQUE TUDO O QUE FIZERA ÀQUELA DAMA, TUDO MESMO, INCLUSIVE A SURRA QUE LHE DERA POR CAUSA DO PEDIDO DE SEPARAÇÃO, VIRÁ À TONA.

_ E o que ganhará com isso? – pergunta o receado vereador, com as mãos pressionando o queixo.

_A CERTEZA DE QUE HOMENS ORDINÁRIOS COMO O SENHOR ESTARÃO ATRÁS DAS GRADES!

_Não posso ser julgado por uma Corte comum, gozo de foro privilegiado! Benesses do cargo, meu querido - debocha o camarista.

_ E o que isso importa? O escândalo e a fofoca não precisam de foro, estourarão em Vila dos Princípios como rojões desordenados. Tenha certeza de uma coisa: por mais dúbio que seja o caráter de seus eleitores, eles não votarão em quem espanca uma mulher. Será o seu fim político! Pense bem antes de tocá-la novamente! Estou de olho, “honrado” vereador Jorge da Silva... ou melhor, George Dumont.

Retira-se da sala feito um trovão, batendo a porta com gosto. A ira o faz ignorar a empregada, que quase esbarra nele ao descer o último degrau da escadaria. Virando-se para o escritório, Ernestina vê George com a boca e o nariz ensanguentados e, antes que fizesse qualquer pergunta, o vereador leva os dedos à nuca simulando o cano e o gatilho de uma arma, enquanto a boca reproduz o som de um disparo. É uma ameaça escancarada à empregada, que mesmo estarrecida, mantém a pose, afastando-se devagar.

Já no quarto, ela não consegue adormecer, a voz da ex-patroa a assombra. Sentada na cama, pensa se deveria ou não entregar o envelope ao doutor Rubens Arraia. E se não fosse o momento ideal? Aliás, que revelações guardariam as páginas daquela encomenda?

Abre o guarda-roupa, dele retira uma caixa de sapato empoeirada e de dentro dela um envelope pardo, amassado pelo peso dos pares de rasteirinha. E se o abrisse? Não! D. Franceline havia sido clara em suas recomendações, apenas doutor Rubens Arraia poderia fazê-lo. Mas se ela o abrisse, lesse o conteúdo e o fechasse com cuidado? Até poderia, mas como justificaria a quebra de juramento à sua consciência?

Com o envelope contra a luz, ela pensa... e pensa! Resiste por um momento, mas acaba completamente hipnotizada pela curiosidade – o verme impiedoso que encarcera a alma humana, ao ponto de se esquecer, por segundos, das restrições da ex-patroa.

Em transe, puxa uma das dobras do envelope, não se atinando às consequências desse ato.

X
O galo ainda canta quando os primeiros raios solares beijam os montes de Vila dos Princípios. As ruas do centro estão tomadas por uma preguiçosa neblina, que não se dissipa. Os faróis da carcaça de um ônibus da década da ditadura se alumiam em meio à escuridão e param numa das esquinas da periferia. Nele entram homens com vestimentas surradas e bonés de todas as cores; alguns magricelas de causar dó, outros desdentados, esquivam-se da prosa por sono ou desdém. O assunto do dia é o empate entre o Corinthians e o Palmeiras. Nas sacolas de supermercado trazem a refeição do dia, que, a julgar pela madrugada, seria úmida e fria.

Aos poucos o comércio reabre. A padaria primeiro, depois a farmácia e, por último, uma lojinha de roupas de chita. O barbeiro é o único que não abre, seu estabelecimento havia inundado com a chuva. Alguns munícipes o ajudam a retirar o que restou. Com a aparência de um septuagenário, o homem com barbas longas e esbranquiçadas pergunta em meio a toda aquela destruição:

_ O que será de mim sem meu servicinho, meu Deus?

No casarão, George está à mesa da varanda tomando um suco verde preparado com orgânicos e brotos germinados. Um lado da face está roxeada, resultado da rixa com o doutor Rubens Arraia. Percorre os olhos pelos dois jornais da região enquanto degusta a iguaria. É uma mania sua, acordar com a lua no céu, sentar-se à varanda, pedir à criada o seu desjejum e ler os noticiários com um olhar de leitor instruído.

O clima na mansão estava carregado, a ventania corria solta, ao ponto dele fechar a vidraça e cobrir as pernas com um manto de lã. Ao longe se avistava o ônibus com os boias-frias; parecia sem freio tal como corria. George se atenta ao veículo até ele sumir numa curva.

Cobre-se até a cintura, enquanto folheia o “Tributo ao Povo”. Para sua alegria, a matéria que o outro periódico deixara de publicar, era agora o editorial do principal jornal da cidade. Mário Merlino, um primo distante do jornalista Luiz Eduardo Merlino4, rendia-se, enfim, aos encantos maquiavélicos do digníssimo vereador George Dumont. Escreve ele:

“... É, meus amigos, leitores de toda região de Vila dos Princípios, pela primeira vez na vida, tive a honra de ver um político de verdade. E trabalhando! E político trabalha? Rouba! E ladrão rouba? Quem sabe trabalha! Milagre, mas é verdade, vi com esses próprios olhos que a terra há de comer...E confesso estar enfeitiçado por isso. Que coisa!

O excelentíssimo vereador George Dumont, estando na Capital com uma ilustre comitiva de empresários principienses, além do prefeito e três outros camaristas, conseguiu tirar do bolso do ‘corrupto’ governador a quantia necessária à construção do tão almejado Centro de Saúde, no alto do Bairro das Flores, um dos lugarejos mais humildes do município. Sem dúvida alguma, essa benfeitoria salvará dezenas de vidas.

Essa foi sua promessa de campanha e está cumprida. Que os outros aprendam com o seu gesto, porque de politiqueiros o mundo está cheio; mas de políticos que pensam no povo como se fossem partes dele, está para nascer. Aliás, já nasceu! E seu nome é George Dumont! Ah se os Congressistas de Brasília pudessem fazer um estágio com ele... O Brasil seria melhor!”

A leitura é compartilhada com Rubens, que à frente da tevê, não acredita no que lê. Aquele monstro havia se tornado um ídolo da plebe. Alguma dúvida de que seria eleito prefeito nas próximas eleições? Só se algo muito ruim fosse aventado, como a brutalidade com que trata a mulher ou o descaso com o sofrimento da filha, vítima do câncer. Se Catharine o deixasse denunciá-lo, toda essa farsa cairia por terra.

Muito indignado, Rubens pega uma outra xícara de cappuccino e se dirige ao escritório, nos fundos da casa. Lá é o seu refúgio, lugar onde ninguém jamais entraria sem seu consentimento, porque lá nas gavetas daquela escrivaninha estão guardados todos os seus mais íntimos devaneios. A cabeça apoiada às mãos, não entende o que impede Catharine de por fim às cenas de tortura. Seria pela imagem de felicidade que vende à sociedade principiense, o chamado status? Seria por pena daquele miserável, por ainda amá-lo? Seria pelo medo de enterrar o sobrenome da família em um lodaçal de fofocas? Qualquer que fossem as justificativas, nenhuma delas seria capaz de lhe arrancar as cicatrizes e a depressão em que mergulha.

Abre uma gaveta e dela retira um retrato. Nele estão Franceline e ele, juntos em uma praia do litoral paulista. O ano é o da morte de Tancredo Neves. Olha-o com saudosismo! Com uma das mãos acaricia a face da mulher, como se estivesse ali, à sua frente, e não sepultada para sempre no livro do tempo.

_ O que faremos se Dilermando descobrir? – pergunta Franceline, num modelito de praia à la Brigitte Bardot.

_ Cristo! O que importa Dilermando? Se descobrir, hei de me tornar o homem mais feliz desse mundo, porque farei de minha humilde casinha o ninho de nosso amor, se é que você realmente me ama.

_ E tem dúvidas disso, tolinho? Não atravessei parte do Estado para encontrá-lo à toa. Você me devolveu a vida, Rubens! Há muito eu não sabia o que era um beijo, uma carícia, um abraço apertado; como se eu não fosse casada, não é? O prazer de Dilermando é me humilhar ante as criadas, me espancar por qualquer coisa naquela alcova em silêncio. Se meus pais estivessem vivos, jamais me deixariam na companhia de um louco como ele.

_ Esqueça-o! O que importa é que estamos juntos... E para SEMPRE!

_ Não existe o SEMPRE! – sentencia a dama dos Dumont. _Vivemos o presente enquanto o destino prepara o futuro.

_ Por que toda essa descrença...? – incomoda-se o médico. _ Quer me deixar?

_ Não é isso meu querido – rouba-lhe um beijo. _Estou cansada de esperar... esperar... e nada! Talvez os Céus estejam magoados comigo – sorri. _Devo não ser uma boa menina!

Rubens não entende as palavras da mulher; como enigmas, inquietam-no o humor.

_ Senhor, posso entrar? – pergunta Maria, a governanta do médico, à porta._ É o secretário da saúde no telefone.

_ Obrigado, Maria! Vou atendê-lo! Pode ir! – diz, resgatando-se da letargia.

Antes de aceitar a ligação, guarda o retrato com desvelo numa caixinha de presente dado a ele por Franceline.

Já George, irradiante com o editorial, dança pela varanda feito um louco. Imaginava-se prefeito e com os poderes que ganharia ao ocupar aquela cadeira tão almejada. Que o povo se dane - pensa ele, o importante mesmo era que realizaria todos os seus caprichos mais fúteis, sem se importar com as consequências. Compraria um jatinho, viajaria para o exterior, desviaria as verbas do município para alguma conta num desses paraísos fiscais e viveria a vida numa boa, como diria Manoel Carlos, porque o que estava em voga era o seu próprio prazer, não o da plebe que encena amar por conveniência.

_ O que deu nesse homem? – pergunta-se Ernestina, curiosa.

Assim que ele deixa a varanda e sobe as escadarias, ela pega os jornais e os folheia. Ao encontrar o título “Homem de princípios”, atém-se à leitura. E não é que o tal homem era o seu patrão, aquele demônio em forma de gente.

_ Valha-me, Deus! Esse jornalista perdeu o juízo! Desde quando seu George é um homem de princípios?

_ O que houve, mulher? Por que está pálida? – indaga o motorista, ao encontrá-la.

_ Leia isso... – dá-lhe o jornal e senta. _O mundo está mesmo perdido!

O telefone toca. É o prefeito Tanaka Santuku convocando o vereador para uma reunião extraordinária.

George cobre a vermelhidão da face com uma leve maquilagem, veste um Armani de cem mil e desce as escadarias, relegando a esposa ao esquecimento. Cantarolando “Brasil”, do gênio Cazuza, dispensa os serviços de Joaquim; prefere ir sozinho à Prefeitura, quer curtir a felicidade longe da ralé.

_Brasil!/Mostra a tua cara/ Quero ver quem paga/ Pra gente ficar assim/Brasil! /Qual é o teu negócio?/O nome do teu sócio?/Confia em mim... – exprime com satisfação, espezinhando a empregada com olhos de águia.

Abre a porta do carro e segue para a prefeitura. Ao estacionar, percebe que há alguém à sua espera, atrás do veículo. Imagina ser Tanaka Santuku, o atual prefeito, com uma champanha à mão, pronta para ser bebericada. Mas ao deixar o veículo, fica frente a frente com o doutor Rubens Arraia.

_ Está feliz vereador? – aplaude. _E se sua verdadeira face viesse à tona, o que sobraria dessa fantasia toda? O que não escreveria o editorialista? Talvez “Homem de princípios subvertidos”! O que acha? Diga sua opinião, estou curioso para conhecê-la.
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4 Jornalista assassinado aos 23 anos, no auge do regime militar, após uma sessão de torturas na sede do DOI-Codi.


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