É ASSIM QUE DEVE SER - CAPÍTULO 6

Quando eu a vi em seu colo, eu não pude me manter de pé, meu anjo. Eu simplesmente não pude me mover, apesar de ouvir os seus gritos e apelos para que te ajudasse, eu não pude. Eu deveria ter agido rápido. Eu deveria tê-la segurado em meus braços e a levado, às pressas, ao hospital. Eu deveria ter feito o que vc fez, querida. Vc foi forte. Sempre tão corajosa. Vc fez o que te ensinei. Vc a quis ressuscitar com movimentos um tanto desconexos, mas vc agiu. Vc lutou. Vc se agarrou a ela e lutou por não deixá-la partir. Vc lutou. Eu a deixei partir.

Ela já não queria mais viver, filha. Eu a vi partindo antes mesmo de seu coração apresentar pequenas falhas. Eu a vi partindo no dia em que ela me confessou, recostada ao meu peito, em nossa cama, ter medo de seus pensamentos. Ela não os contou a mim, embora eu implorasse por conhecer o que a afligia por dentro. Ela não os contou a mim, mas, fosse o que fosse, a deixou devastada por dentro, conquanto seu sorriso jamais deixasse de brilhar em nossa casa.

Giulia, meu anjo, sei que se culpa pela morte dela. Sei que, aí, em seu coraçãozinho, há uma voz que te julga e te condena por não ter feito mais do que fez, mas vc foi a única a fazer algo, filha. Vc foi a única a se mover naquele momento, lembra? Havia mais duas pessoas ao seu redor que poderiam ter feito algo para te ajudar. Duas. Uma delas, era eu.

Lembra-se?

Mas fui eu quem te decepcionou, meu bem. Fui eu quem deveria ter agido. Uma dor lancinante me paralisou e a ideia de não ter sua tia ao meu lado, ao invés de me impulsionar, me paralisou...

Daria meus dois braços para voltar àquele instante e modificar tudo. Hoje, ela estaria aqui, entre nós. Hoje, ela cuidaria de vc e a impediria de seguir por caminhos tortuosos.

Vc precisa se dar valor! Vc precisa parar de fazer o que ele manda. Giulia, acorde. Acorde, meu anjo, antes que seja tarde. Vc ainda tem a vida pela frente. Por que não continuou a dançar? Por que o sonho de frequentar 'Juilliard' morreu? Eu pergunto e vc mente, filha. Vc sorri e mente, dizendo não estar mais interessada, mas estão em seus olhos a decepção, a tristeza, a impotência. Não desista dos seus sonhos, Giulia! Quando desistimos de nossos sonhos, parte de nós morre com eles. Filha...não pare de dançar. Vc é boa nisso. Eu sempre soube que era boa nisso. Por que parou?

Foi ele, não foi? Ele sempre foi contra às aulas. Dizia ser dinheiro gasto à toa.

Sim, meu bem, eu sei que foi ele. É meu filho, sangue do meu sangue, mas eu não posso negar que ele sempre reservou um sentimento estranho com relação a vc. Eu não contava à sua tia. Ela fingia não perceber. Havia algo nos olhos dele quando a via dançar. Havia algo e, de certo, não era orgulho.

Perdão, filha. Eu deveria ter feito algo logo no início. Mas não o fiz. Há algo maior que te joga nos braços dele. Há algo maior que a faz perdoar os erros dele. Há algo maior que os une além do sentimento de duas crianças criadas, como irmãos, pelos mesmos pais. Duas crianças que cresceram sob o mesmo teto e receberam o mesmo tipo de tratamento. Vc floresceu. Ele, tal qual a vela, se apagou. Pior: escureceu. Há algo muito sombrio que o cerca, Giulia. E Deus sabe que não acredito nessas bobagens. Sua tia sim. Ela acreditava. Tenho certeza de que sua tia partiu sabendo de tudo. Tenho quase a certeza de que o que ela descobriu naquela noite, agarrada a mim, com os olhos desmesuradamente abertos, tem a ver com o nosso filho.

Nosso filho. É tão estranho dizer isso. Há quanto tempo não o sinto meu filho!

Assim como vc, filha, eu gosto de escrever. Minto. Comecei há pouco tempo a escrever. O médico prescreveu. Disse que faz bem ao coração e à memória. A solidão nos faz criar hábitos e escrever é um deles. Filha, tenho escrito o que penso neste caderno porque não posso expor meus pensamentos. Não são pensamentos dignos de um pai. Eu juro que fiz de tudo por ser um bom pai. Deus sabe o quanto eu o amei...e ainda o amo. Deus sabe que algo mudou assim que ele completou sete anos. Eu não posso estar louco.

Fernando era doce, alegre, companheiro, compreensivo, dócil. Uma criança arteira com os olhos mais azuis e suaves que já havia visto sobre a face da Terra. Fernando era o companheiro inseparável de sua mãe. O filho a quem eu apresentava aos meus amigos com orgulho por ser educado e conversar como gente grande. Fernando tinha serenidade em seu olhar e um jeito divertido de se comunicar. Aquele garoto nasceu com tino para os negócios. Por vezes, eu o levava comigo para o trabalho, a despeito dos pedidos de sua tia que, com ele, se preocupava.

'Uma criança não pode ficar em um ambiente onde adultos falam bobagens!', ela reclamava, enquanto nos via cruzar o umbral do portão da garagem. De dentro do carro, dávamos adeus a ela e Fernando era o primeiro a tentar acalmá-la prometendo não se meter em encrencas.

"Fica tranquila, mamãe! Eu detesto cerveja!', gritava ele com a metade do corpo para fora da janela do carona, sorrindo. Pelo retrovisor, eu a observava. Havia aflição na maneira como sorria e secava as mãos na barra do avental. Eu a conhecia, filha. Ahh, como eu a conhecia! Havia medo em sua expressão e até hoje passo horas tentando descobrir o que ela tanto temia. Vc bem que poderia me emprestar os seus dons? Talvez, eu possa evitar algo de pior.

Um tombo e tudo mudou...

Em seu sétimo aniversário, Fernando levara um tombo bobo da escada. Rolou dos dois últimos degraus e bateu com a cabeça. Um tombo bobo com consequências soturnas. Foi um ano triste demais. Não sei como Celeste suportou tanta dor. Parte dela ficou debaixo da terra com nosso bebê.

Como eu não percebi antes? Como eu não liguei um fato ao outro? Como eu, ainda que tenha percebido o medo nos olhos dela, eu não quis me deixar convencer de que ele precisava de cuidados médicos. "Ele precisa de um especialista", sua tia implorava, segurando-me pelos braços e, embora sorrisse, seus lábios tremiam e seus olhos se enchiam d'água.

Um especialista. Por que diabos eu procuraria um especialista para uma criança de sete anos que enchia a casa de alegria com seus risos eufóricos e sua energia inesgotável?

Talvez sua tia estivesse esgotada com as tarefas domésticas, os cuidados com Isabela e aquele bando de gente sempre à nossa porta, pedindo, orando. Aquilo me dava calafrios. Pobre Celeste. Estava sobrecarregada.

Por que eu não atendi ao seu pedido?

Um pouco antes de sua tia partir, ela sonhava com a nossa pequena Isabela. Ela sonhava e eu a ouvia durante o seu sonho. Um sono inquieto, aflito onde ela chamava por seu nome, erguendo os braços para cima como se a quisesse alcançar. Como se a quisesse proteger. Proteger nossa pequena Isabela que morrera dormindo como um passarinho.

Proteger nossa filha de quem, amor?

Fale comigo. Fale comigo, por favor. Não me deixe aqui sozinho. Tenho medo. Medo de nunca mais voltar a ver o seu rosto, o seu sorriso, os olhos que riam. Fale comigo, Celeste. Do que tinha tanto medo em seus sonhos a ponto de acordar, desnorteada, chamando por ele?

Por quem rezava contrita com o rosário entre as mãos cruzadas assim que voltava à consciência?

Por Fernando ou por nossa filha morta?

Giulia, nossa Isabela teria quase a sua idade. Estaria completando dezesseis, neste ano. Mas, Deus a tirou de nós e, desde então, sua tia foi sucumbindo, sucumbindo...

Giulia, meu anjo, vc não está só. Não vou deixar que o passado se repita. Não. Não vou. Ainda que seja a última coisa que faça nesta vida.

Volte a dançar, Giulia. Vc pode tentar 'Jiulliard' no próximo ano. Estou aqui, contigo. Estou aposentado e tenho minhas economias. Não se importe com o que Fernando fala. São idiotices de um jovem imaturo que está se desvirtuando, pouco a pouco. Eu o estou perdendo, Giulia. Eu estou perdendo o filho que ela me deixou. O único a quem ela me confiou. Ele é tão distante...

Ele tem bebido com frequência ultimamente. Eu, como pai, deveria impedi-lo, mas ele se diz consciente do quanto bebe e que o faz 'socialmente'. "Isso é trabalho, pai!", diz ele em meio ao expediente. "Como trabalhar em um bar e não tomar 'umazinha'? Relaxa".

Acho que devo estar me preocupando muito. Afinal, não tenho do que reclamar com relação ao seu desempenho como administrador dos nossos restaurantes. Foi graças à sua garra e conhecimento que conseguimos gerir bem os nossos negócios. Ninguém tem o traquejo social que ele possui. Isso eu não posso negar. Chego a sentir orgulho de seu modo em tratar os clientes. Uma pena que mude tanto ao chegar a casa. E vc sabe muito bem disso, meu anjo. É vc quem cuida de todos. É vc quem tem tentando conversar com ele. É vc que tenta por um pouco de juízo naquela cabeça desmiolada. Vc herdou tanto de sua tia! Ela, de onde está, certamente tem orgulho de vc. E eu? Eu tenho receio do modo como ele tem olhado para vc. Vc não o percebe, Giulia. Vc não o percebe?

Vc me disse que seu professor de Ballet desapareceu. Como isso aconteceu? Vcs eram amigos inseparáveis. Viajariam juntos. Por que mudou de planos? Por que abdicou de tudo? Para ficar aqui e cuidar de nós dois? Ou existe algo que vc me esconde?

Ah, filha! Estou velho e cansado. Odeio te ver por aí, rodopiando, dando saltos e piruetas e chorando às escondidas. Seu sonho morreu e parte de vc morreu com ele. E é tudo culpa minha. Sua tia não a deixaria ficar aqui. Ela não a deixaria desistir de seu sonho e ficar aqui, perto dele.

Vc o ama, não é? Vc o ama e não há nada que eu possa fazer contra isso. Nada. O amor, por vezes, é incompreensível, injusto. Vc merece alguém melhor, filha. Que Deus me perdoe, mas, vc merece alguém melhor.

O mundo é cruel para com meninas bonitas e ingênuas como vc, Giulia. Acorde, por favor. Pare de tanto se esforçar em cuidar da casa, dele...de mim. Pare. Viva a sua vida. Vá embora, antes que seja tarde. Não se prenda a esta casa. Eu sinto algo aqui dentro do peito quando penso em seu futuro...e não é bom.

Ora, bolas. Sua tia diria que estou começando a ficar gagá. Ela costumava dizer isso quando eu começava a tagarelar sem parar. Preciso entender que vcs são de outra geração. Mais ousados, mais abusados, afoitos. É isso. Devo estar ficando 'gagá'. Mas, ainda estou forte e não pretendo adoecer ou morrer tão cedo. Estarei por perto, meu anjo. Eu estou aqui por vc e nada de ruim vai te acontecer. Eu juro.

E que Deus me perdoe pelos pensamentos que tenho cultivado. Ele é meu filho e eu o amo. É assim que deve ser. Eu o amo e ele vai mudar. Vai sim. Aos vinte e dois, eu não era tão perfeito assim.

LEMBRETE

Preciso ir ao Dr. Alexandre. Minhas mãos estão tremendo muito ultimamente..

Velhice é uma merda.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 01/04/2020
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