É ASSIM QUE DEVE SER - CAPÍTULO 7

'When you came and you gave without taking

But I sent you away, oh Mandy

When you kissed me and stopped me from shaking

And I need you today, oh Mandy'

(Mandy - Barry Manilow)

São oito da noite. Estou impaciente, andando de um lado para o outro, aguardando Gabriela, uma garota de dezessete anos que adora mascar chicletes e ler revistas de fofocas. Já cansei de lhe indicar bons livros, mas ela se opõe veementemente alegando não ter tempo, embora passe horas folheando aquelas páginas sem conteúdo e estourando a bolha da goma de mascar que parece durar uma eternidade em sua boca. Gabriela é meio que uma Baby Sitter, só que sem o 'bebê'. Ela meio que cuida do meu tio que, antes dela chegar, já está de banho tomado e devidamente alimentado por mim. Eu o acomodei em sua cama e lhe disse 'Sonhe com os anjos', beijando sua testa. Aguardei que seus olhos se abrissem, mas eles não se moveram. Não me importo porque, na minha cabeça, eles se abriram e com um sorriso nos lábios, meu tio me advertiu para que eu tivesse juízo. É assim que deve ser e assim tem sido. Eu finjo o tempo todo, em todas as noites em que tenho de trabalhar. Finjo viver uma vida que já não mais existe, pois, se existisse, eu não precisaria trabalhar ou deixá-lo sozinho ou esperar por Gabriela. Se eu não precisasse fingir, estaríamos todos ao redor da mesa de jantar comendo pizza e rindo das piadas dele que agora dorme profundamente...

CHEGA! Eu odeio deixá-lo sozinho, ainda que seja nas mãos tolas, porém, confiáveis de Gabriela que acaba de chegar atrasada, com seus fones no ouvido. Eu repasso a ela todas as instruções. Ela revira os olhos de um verde estonteante e me pede para ficar tranquila.

"Já sei de tudo, tia", diz ela, soprando a bolha rosada que explode em frente ao meu nariz. "O quê?", ela pergunta evitando perceber a minha expressão de indignação. É impressionante como poucos anos de vida nos separam e eu já me sinto uma velha antiquada diante de sua displicência e seu modo calmo (eu diria lerdo) em realizar suas tarefas. Na verdade, pouco lhe cabe fazer além de ir, de hora em hora, até o quarto do tio e verificar se está tudo conforme eu deixei.

Eu a vejo sentada, distraidamente, na cadeira predileta da minha tia. Meus olhos se enchem d'´água porque era ali que meus cabelos eram trançados por suas mãos de seda. "Tia!", grita Gabriela enquanto eu aperto os olhos e balanço a cabeça, despertando do transe. "Vai sossegada. Daqui ele não sai".

É óbvio que não sai, idiota. Ele já não pode mais andar! Não sei se arranco os fones de seus ouvidos e lhe dou uma bofetada ou se tomo a direção do portão sem lhe dar atenção. Escolho a segunda opção porque já estou atrasada. Antes de seguir ao trabalho, preciso passar em um lugarzinho bizarro. Jogo a mochila nas costas e, como Gabriela, mergulho no mundo da música assim que os fones se encaixam em minhas orelhas. É fantástico como a Música mexe comigo! Sempre foi assim desde criança. Se algo de ruim acontecia, eu recorria à música. Se algo de bom acontecia, eu comemorava ao som da música. A Música e a Dança sempre estiveram presentes em minha vida. A Dança, meu grande sonho, se afastou de mim quando Pedro , meu professor de Ballet, da noite para o dia, me abandonou. O que me causou uma enorme estranheza. Pedro sempre foi o tipo de cara que levava sua carreira a sério e, assim como eu, amava a Dança. Um pouco antes dele sumir e não deixar pistas, vivia dizendo que não se pode conseguir uma vaga no melhor Conservatório do Mundo (e ele se referia à Juilliard) sem antes visitar a escola ou ter uma breve conversa com alguém que está do outro lado da banca de examinadores. Este era o nosso plano! Viajar a Nova York e estudar e estudar e estudar e dançar e dançar e dançar até que nos aceitassem.

Mas...isso já faz tempo. Meu tio dizia que, quando se abandona um sonho, parte de nós morre com ele. Uma parte minha se foi quando Pedro me deixou, levando meu sonho com ele.

FODA-SE.

Espero que esteja feliz onde quer que esteja. Que brilhe num palco melhor do que o que eu encontrei lá no 'California'. E eu sequer preparei a coreografia de hoje. Bah! E quem ali liga pra coreografia, bobona??? Basta que eu arranque meu sutiã com força e o lance aos chacais.

'Juilliard', penso alto enquanto paro em frente ao portão preto, descascado que range quando eu o abro. Dou um passo à frente e já estou a alguns metros da casa. Sinto que nada mudou, exceto o jardim. Ele está mais triste, precisando de cuidados. No meu tempo, as flores pareciam mais alegres, coloridas. No meu tempo, a luz do poste iluminava...

- O que faz aqui?

- Boa noite pro senhor também, meu pai. - Passo por ele que quase me matou de susto ao se erguer do banco de cimento ao lado do portão, em meio à escuridão. Sorte a minha que seu habitual hálito etílico e nauseabundo o precederam. O motivo pelo qual ele me fita, cruzando os braços na altura do tórax, eu não faço a menor ideia, logo, eu o ignoro seguindo pelo longo e estreito corredor cercado por muros chapiscados ao encontro da mulher que me trouxera ao mundo. - O senhor me parece mais novo, papai...- Comento, andando e abrindo um sorriso sarcástico porque sei que ele me segue. Ao menos, tenta, com seus passos cambaleantes. Penso que se eu riscar um fósforo, ele entra em combustão instantânea. Essa ideia me faz rir, o que o faz me perguntar qual o motivo da risada.

- Nada não...papai. - Respondo a um passo da sala de estar. Inspiro profundamente e, antes de cruzar o batente da porta, calço minhas luvas de couro. A última coisa que desejo é sentir o que as paredes e móveis da casa tem a me contar. Passei muito tempo aqui dentro a ponto de saber que nada de bom pode vir daqui.

- Continua com essa frescura? - Meu pai resmunga, passando por trás de mim, alcançando o centro da sala onde se joga no sofá de couro rasgado bem no meio do assento. Seu corpo afunda no buraco preenchido por uma espuma encardida. - Luvas de couro. - Ele desdenha, emitindo um som mais parecido com um grunhido, sacudindo o copo de requeijão sem rótulos (seus preferidos), com gelo e alguma mistura fatal que certamente me induziria ao coma alcoólico se acaso o ingerisse.

O sofá. Pobre sofá. Ainda me lembro do dia em que eu o rasguei fincando, tal qual uma adaga com sua lâmina afiada, o cabo da escova de cabelo de minha mãe. Uma sensação de prazer indescritível encheu o meu corpo ainda franzino, marcado pela fivela do cinto do homem que deveria me defender, ao invés de acreditar na versão do amigo de seu irmão, tão doente quanto ele.

'Foi seu pai quem te tocou?'

Essa foi a única pergunta feita por minha mãe no dia em que aquele monstro me molestou no quarto da casa de meus avós. Ainda me lembro do alívio em suas feições quando neguei a pergunta.

PORRA! NÃO HOUVE OUTRAS PERGUNTAS!

Não houve outra do tipo: "Vc está bem?" ou "Quem foi o desgraçado?". Não. Não houve perguntas. Apenas um silêncio esmagador dentro do meu coração e a raiva crescente que descarreguei dilacerando a coisinha fofa e adorada de minha mãe: o sofá de couro, novo, comprado em doze parcelas sem juros. Doze. Foram doze vergastadas que as minhas costas receberam. Foram doze vergastadas aplicadas por meu pai que lanharam minha pele enquanto minha mãe me segurava pelos braços a fim de que eu não escapasse do que eles chamavam de 'corretivo'. Eles não me ouviram. Eles não me examinaram. Eles sequer cogitaram a hipótese de que eu poderia estar falando a verdade.

"Vc sempre imaginou coisas. Sempre inventou coisas!", ouvia de minha mãe enquanto soluçava de dor e ódio, embora ainda fosse muito nova para sentir algo tão forte. Creio que o que mais me machucou naquele dia não fora o estupro em si. Não foram as mãos grosseiras daquele verme tocando em minhas partes íntimas sem que eu soubesse o que aquilo significava. Não fora o fato do monstro me fazer tocar nele de uma maneira estranha aos meus olhos inocentes. O que mais doeu em mim fora a desconfiança de meu pai que preferiu se calar a questionar o amigo de seu irmão, e a falta de carinho de minha mãe.

Eu tinha apenas seis anos. Tudo o que eu queria naquele momento era um abraço apertado e sua voz doce sussurrando ao meu ouvido que ninguém jamais me tocaria novamente daquela forma doentia. Tudo o que eu queria era o amor de mãe.

Um amor que encontrei em uma mulher com os cabelos da cor do sol, na missa de domingo, sentada no banco do lado oposto ao nosso. Os bancos eram longos e o espaço entre o da frente e aquele onde meus pais e eu estávamos sentados era mínimo. Lembro-me de ter apoiado minhas mãozinhas no espaldar da cadeira à minha frente e caminhando de lado, pisando nos pés dos fiéis à minha direita, empurrando-os até chegar à nave da igreja e fixar meus olhos curiosos em seu rosto plácido. "Uau", exclamei chamando sua atenção. Ela era tão linda e iluminada quanto a mãe do Crucificado. Ela acenou para mim e sorriu com os lábios e com os olhos também. Eu jamais havia visto alguém sorrir com os olhos. "Esta é a mãe de Jesus", afirmei, acomodando-me ao seu lado de onde jamais saíra até o dia em que ela partiu.

Meus tios me criaram e me amaram e me fizeram acreditar que existem monstros e príncipes. Eles me protegeram dos monstros e me apresentaram a um príncipe de olhos azuis encantadores e um sorriso de tirar o fôlego. O príncipe brincava e brigava comigo, tornando os meus dias cheios de cores. O príncipe me protegia do mal escondido por trás das paredes do meu quarto. O príncipe segurava minha mão e me ensinava a rezar. O príncipe ordenava que os monstros saíssem do meu quarto e os monstros o obedeciam. O príncipe era também mágico. "O segredo é não ter medo", dizia o príncipe, deitado ao meu lado, na cama, contando as estrelinhas grudadas no teto. Eu amava o príncipe. No entanto, com o tempo, eu mesma aprendi que príncipes transformam-se em monstros e princesas carentes podem amar tanto o monstro quanto o príncipe porque ambos fazem parte da mesma pessoa. A princesa amava o príncipe, ainda que aguardasse por um plebeu que a salvasse disso tudo.

De onde essa ideia surgiu? Um plebeu que me salve disso tudo!!! Patético. Um homem com os olhos negros como a noite e um abraço onde eu me sinta segura...

Diabos! Devo ter sonhado. É hora de acordar.

- Mãe?

- Oi. - Responde ela sem desviar os olhos dos bifes temperados sobre a tábua de madeira. Ela afia a faca na beirada da pia com tanta energia que dá para sentir, mesmo de luvas, o que ela guarda em seu coração. - Demorou dessa vez.

- É. Eu estava ocupada. - Forço um sorriso, recostada ao batente da porta. - Mas trouxe o dinheiro.

- A mesada. - Ela se apressa em me corrigir. Eu reviro os olhos e expiro lentamente.

- É. A mesada. - Confirmo, retirando do compartimento lateral da mochila um envelope lacrado e o deixo sobre a mesa da cozinha. Ela, ainda de costas para mim, pergunta-me se o envelope contem a mesma quantia. Eu digo que sim. Ela esfrega a esponja na tábua de madeira sob a água que escorre da torneira e, em seguida, lava a pia com movimentos rápidos e ríspidos. Está claro que ela está desapontada. Está claro que deseja mais do que posso oferecer. Está claro que ela pensa ter direito a uma gratificação. Uma gratificação!!! Acho justo.

Uma gratificação pelos anos em que a senhora se sacrificou por mim, mamãe. Uma gratificação pelos anos em que ficou ao meu lado, na beirada da cama, quando a 'Paralisia do Sono' aterrorizava minhas noites e eu mal sabia que essa merda tinha nome, mamãe. Uma gratificação pelos aniversários onde a senhora NÃO confeitou o bolo com glacê nem o recheou com amor, mamãe. Uma gratificação por ter me dito que sangrar aos dez anos não era doença ou por ter me defendido quando as meninas da escola quase arrancaram meu cabelo porque eu falava sozinha na hora do recreio, mamãe. Eu não falava sozinha, mamãe, e a senhora sempre soube disso.

Se existe alguém aqui que merece uma gratificação ou um aumento de 'mesada', esse alguém é vc, mamãe.

- Só isso? - Diz ela, decepcionada, contando as cédulas, uma a uma.

- Foi o que deu pra conseguir. - Cerro os punhos e golpeio a mesa. Ela ergue uma sobrancelha e me fita com soberba. Antes de baixar meus olhos, percebo um vulto ao meu lado. Um arrepio percorre a minha espinha. Puta merda! Lá vem isso de novo! Estou ofegando nem tanto pelos espectros que se fixam à garrafa de cachaça na prateleira de madeira acima da geladeira. É feio, triste e medonho vê-los inspirando uma espécie de vapor que sai da garrafa? É. Porém, mais difícil ainda é ter que disfarçar o mal-estar que aquilo me causa porque meus pais não acreditam em minhas 'faculdades' e me proíbem de dizer o que vejo. Eu já mencionei que prefiro chamá-la de 'maldição'? - A senhora tá tomando o remédio pra circulação?

- Com o que teu pai ganha? - Seria pedir muito que a senhora olhasse pra mim enquanto fala comigo? - Mal dá pra comida.

- E o que eu trago? Não tem dado? - Ela, num célere movimento, toma a faca em sua mão quando se vira para mim. Dou um passo para trás e quase posso jurar que sua intenção é cravar a faca em meu coração. Ao invés, disso, ela a seca com o pano de prato, mantendo-a em sua mão. Nossos olhos se encontram por uma fração de segundos. Tempo suficiente para eu perceber que ela em nada mudou. Ela continua dando o dinheiro pro velho beber. - Mãe! São para os seus remédios. Seus remédios, mãe. - Repito porque, de fato, isso me preocupa. - Sua perna não tá boa, mãe. O que tenho trazido não dá?

- Não dá.

- Não dá?

- Tá surda??? - A faca é jogada contra a pia quando ela passa as mãos nervosas pelo cabelo preso em um coque. - Não dá - Repete ela, secando as mãos lavadas no avental e esconde o envelope na gaveta dos talheres. - Tudo aumentou, menos o salário do teu pai. - Ela dá início à antiga ladainha. Resmunga, pragueja e pede perdão ao Criador. TÔ FORA!

Eu me viro e caminho em direção à porta da sala. Meu pai parece fazer parte do sofá de tão imobilizado que se encontra. Não sei se devo cumprimentar seus 'amiguinhos' que o sugam como vampiros ou finjo não assistir a esse filme de horror que se repete desde minha infância. Minha mãe continua a se lamuriar atrás de mim. Chantagem emocional sempre foi o seu forte. - O arroz aumentou. O feijão aumentou. A carne tá pela hora da morte.

- Corta a carne, mãe. Faz mal. - Cruzo o umbral da porta de saída. Ponho meus fones de ouvido, porém, ainda a ouço reclamar de minha ausência e descaso enquanto sigo até o velho portão que nunca encontra quem o conserte. Pobre portão. Talvez ele esteja tão pesado quanto esta casa. Minha mãe não para de falar, na esperança de que eu lhe diga que vou conseguir mais. Mais do dinheiro que ela amaldiçoou no dia em que me pusera para fora de casa.

"Não vou criar filha puta".

Meu pai bateu no peito enquanto berrava no quintal para que os vizinhos todos soubessem o novo ofício de sua filhinha querida. E eu nem puta era àquela época. Eu só havia abortado "espontaneamente". Um filho gerado com amor. Amor de minha parte porque Fernando deixou bem claro o quão indesejável seria um filho em sua vida quando ele me fez cair no chão e, delicadamente, chutou a minha barriga. Foram dois chutes certeiros e morria a vida que começava a me encher de felicidade. Meus tios jamais souberam disso. Meu tio jamais saberá. Eu sou a culpada por amar o monstro e proteger o príncipe. - Cuida dessa perna, mãe. - Disparo, girando nos calcanhares. Ela para, de súbito, atrás de mim e me olha com desconfiança. - Sério. - Enfatizo. - Isso pode dar trabalho mais tarde. - Ela faz o sinal da Cruz como se eu a estivesse amaldiçoando. E eu não estou. Daria um braço para evitar o que vejo. Ela me pergunta, arregalando os olhos acinzentados, se eu estou vendo algo de ruim em seu futuro. Rindo de nervoso, minto. - É só um palpite, mãe. Fica tranquila, mas se cuida. - Eu me aproximo para lhe dar um beijo na testa. Ela se afasta. Eu me afasto. Ela se aproxima. Um silêncio incômodo se instala entre nós duas. Alcanço a calçada e meu coração idiota ainda sente falta dos afagos que nunca recebi. Ou será que recebi e não me lembro?

- Filha!

- Oi! - Sem que eu perceba, estou bem próxima a ela novamente. Ela abre a boca para falar algo, mas logo a fecha. Eu retiro as luvas porque desejo sentir a verdade. Eu a quero tocar. Ela se afasta. Ela quer dizer algo. Eu anseio por suas palavras. Eu sei que é importante. Eu sinto que é importante. Eu quero que seja importante, mãe! Diz que sempre me amou e que não sabia demonstrar. Diz que sempre torceu por mim mesmo que nunca tenha perguntado por meus sonhos. Diz que acreditava em mim e não no homem nojento que me violou. Diz que reza por mim todas as noites e que minha vida vai mudar porque Deus atende aos pedidos das mães que amam suas filhas. Diz, mãe. Diz!!! - Pode falar...- Minha voz sai num sopro e minha mão se estende em sua direção. Deixa eu te tocar, mãe. Ela se encolhe, enxugando a mão seca no avental amassado. Suas mãos se apertam e seus olhos não me veem.

- Vai com Deus. - Ela murmura, fechando o portão sem erguer os olhos. Do lado oposto ao portão, eu assinto com a cabeça, desviando meus olhos de seus cabelos brancos o mais rápido que posso porque estou prestes a chorar. A porra da minha visão está embaçada e meu coração destroçado. Por mais que os anos passem, eu não consigo fazer com que ela me ame. Por mais que eu tente ajudá-los de alguma forma, eu não consigo fazer com que eles me amem. Desço a rua com a cabeça baixa. Aperto o play e ouço uma canção que me faz chorar ainda mais. Dou graças a Deus por estar começando a chover porque assim, os babacas dos vizinhos que me observam não vão perceber que são lágrimas que lavam o meu rosto. Ergo meus olhos ao céu e deixo que os pingos se misturem às lágrimas, mas, por mais que eu chore, a dor não vai parar. Ela continua aqui, dentro do peito.

'Aceite o fato, meu bem. Seus pais não te amam. Vc não é a primeira e não será a última filha rejeitada. A noite só está começando.', diz uma voz interior que sempre me acode em momentos como este. Se é do Bem ou do Mal, pouco me importa, desde que não me deixe cair em depressão. Eu não vou tomar aquele remédio que me deixa dopada, sem ação contra as investidas dos que me querem durante o sono ou da doentia lascívia de Fernando. NÃO VOU TOMAR!

Tomo um ônibus com destino ao centro da cidade. Sento no banquinho da frente e enxugo meu rosto com o dorso de minha mão. O motorista me lança um olhar safado. Eu engulo a vontade de mandá-lo à merda. PERVERTIDO! Estou toda coberta, porra! Calça jeans e a camisa do Fernando que quase chega aos meus joelhos. Sem contar com os meus óculos de grau que deixa com a cara de lesada. Eu gosto dos óculos. É. Eu gosto da miopia que dificulta enxergar à distância. Melhor assim. O mundo é muito feio para ser tão nítido. Volto meu olhar à janela onde me vejo refletida. Lembro-me do tio e uma sensação de paz me invade a alma. Se eles não precisam de mim, meu tio precisa. E é nele que eu foco toda a minha energia. É por ele que hoje à noite eu vou dançar. Por ele e por Pedro, meu professor de Ballet que um dia me disse que eu nasci para brilhar. A voz interior me diz que devo ser forte e escolher uma música antes de chegar ao trabalho porque...

Tiffany-Twisted precisa respirar, meu bem!

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 06/04/2020
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