CAPÍTULO 8

'Trying hard not to hear, but they talk so loud

Their piercing sounds fill my ears, try to fill me with doubt

Yet I know that the goal, is to keep me from falling

But nothings greater, than the rush that comes with your embrace

And in this world of loneliness, I see your face

Yet everyone around me, thinks that I'm going crazy, maybe, maybe

But I don't care what they say

I'm in love with you

They try to pull me away, but they don't know the truth

My heart's crippled by the vein, that I keep on closing

You cut me open and I'

(Leona Lewis - Bleeding Love)

Subindo a ladeira, sinto-me cansada. Não sei se é pelo peso que carrego sobre as costas (e não falo da mochila) desde que saí da casa dos meus pais (biológicos) ou se é pela falta do condicionamento físico que a corrida me proporciona. Amo dançar e correr e, já faz um tempo que não corro. Costumávamos correr juntos, Fernando e eu, antes de minha tia partir ou mesmo depois. Mas, assim que o tio passou a depender de alguém para realizar suas necessidades mais básicas e a precisar de ajuda profissional, eu parei. Ele necessitava de cuidados especiais vindos de uma pessoa especial. Desde o início, quando ele ainda falava com clareza e expunha suas vontades, eu o enfrentava e afirmava que dele, eu cuidaria. Ele sorria e me dizia que eu deveria voltar a dançar e não gastar o meu tempo cuidando de um velho gagá. Eu lhe devolvia o sorriso, dizendo que havia me enjoado das aulas. "Não nasci pra isso, tio". Ele me acenava com a mão, chamando-me para perto dele. Então, eu me sentava ao seu lado, recostada à cabeceira enquanto ele estreitava seus lindos olhos azuis fixados nos meus. Ficávamos nos encarando por minutos até que eu saltasse do colchão como um boneco de mola e inventasse algo para fazer, reprimindo o impulso de chorar diante dele. Ele conhecia a verdade, porém, esperava que eu a confessasse. Ele esperava pacientemente que eu lhe dissesse a verdade, mas eu não a confessaria. Não mesmo. Principalmente porque eu a desconhecia. Meu professor havia sumido ou, talvez, viajado. O que eu poderia lhe dizer? 'Tio, perdão por ter gasto toda a grana que o senhor investiu em mim durante anos, mas o meu professor viajou sem mim e me deixou na merda!"

Acho que não. De uma forma ou de outra, eu estraguei tudo.

Talvez, agora que ele já não me pergunta mais, eu devesse lhe contar que danço. Danço sim! Danço de um jeito diferente, para pessoas diferentes. Mas, ainda assim, é Dança, tio. Eu mesma monto a minha coreografia e quando estou no palco, penso estar em 'Juilliard'. Eu danço, tio. Eu fecho os meus olhos e danço e não me importo com que roupa estou ou mesmo com a falta dela. É Dança, tio.

Paro e reflito e desisto de lhe contar a verdade. Isso não é o tipo de coisa que se diz a um pai. Isso, certamente, mataria o orgulho que ele dizia sentir por mim. Será que ele ainda se lembra de ter orgulho de mim?

O fato é que eu não deixei que uma outra mulher qualquer se aproximasse dele e tomasse o meu lugar. Não. Não quero saber se ela estudou para cuidar de pacientes acamados. FODA-SE. Eu não estudei, meu bem. Eu vivi e vivo com ele. Ninguém o conhece mais do que eu. Ninguém vai tocar em meu pai além de mim.

Ele gritou, bufou, reclamou, esperneou...até que me aceitou como sua 'Cuidadora Mais do que Especial'. Era assim que ele se referia a mim, no princípio, quando ainda conseguia raciocinar.

'Não faço mais do que minha obrigação!'

Gritava durante as intermináveis discussões com Fernando que tentava me convencer de que, para o bem de seu próprio pai, o melhor seria interná-lo em um asilo.

'Vc é louco???'

Dizendo isso, voava sobre ele como uma leoa salta sobre a hiena que tenta abocanhar o seu filhote. A simples ideia de ver o homem que cuidou de mim com tanto zelo e amor durante tantos anos, num lugar sufocante, com corredores estreitos, um odor fétido de urina misturado à água de colônia, televisores pequenos grudados às pilastras, ligados o tempo todo, entalando goela abaixo dos internados, programas de auditório, e uma sopa sem gosto servida no almoço e repetida no jantar ou os gemidos vindos dos quartos dos velhinhos senis esquecidos por seus parentes incomodavam-me terrivelmente.

"NUNCA. Não se mete. Deixe que eu cuido dele."

Assim eu pontuava as discussões. Essa foi a minha resposta final estranhamente acatada por ele que me observava com uma daquelas expressões enigmáticas. Puta merda! Se tem uma coisa que me dá medo nesta vida é aquela expressão que me faz tremer dos pés à cabeça e que me deixa sem rumo. E não falo da expressão cafajeste que me faz cócegas no estômago ou da expressão de desprezo que me irrita a ponto de iniciar uma briga corporal da qual eu, quase sempre, saio perdendo. Trata-se de uma expressão medonha em que nenhum de seus músculos faciais se movem e apenas os seus olhos, semiabertos, me fixam insistentemente. Eu a chamo de "Olhos de Crocodilo". Se vc já reparou nos olhos deste réptil vai entender a sensação terrível que o seu olhar me provoca. Eu já vi muita coisa nessa vida. Ah, se vi! Vi mortos (e eu os chamo carinhosamente de "Os Perdidos") que, por algum motivo, já não possuem sua forma humana e, se mostram para mim, como animais ou monstros asquerosos, mas o 'Olhar de Crocodilo' do Fernando, de longe, ganha deles no quesito: Pavor. E por que ele desistiu da ideia com tamanha facilidade? Tá aí uma coisa em que eu ainda não pensei...

- Cacete! - Inspiro e expiro apressadamente, curvando o tronco para frente e descansando as mãos nos joelhos flexionados. Minha mochila, contra as minhas costas, pesa quase mais do que eu. Nela, eu levo de tudo o que vou precisar para passar a noite e mais um pouco.

"A bolsa de uma mulher é sempre generosa.", dizia o meu tio. "Carrega o que ela precisa e o que outros certamente irão precisar".

Abro um lento sorriso triste, erguendo meu tronco. Sobre mim, a luz alaranjada do poste clareia os paralelepípedos onde piso. Com o indicador, ajeito meus óculos encaixando-o na ponte do meu nariz, então percebo que estou a alguns passos do "Italia Mia". Que bosta. É um dos caminhos que me levam à boate, mas não é o único. Eu o evito exatamente para não ter que me encontrar com ele, mas hoje...hoje a minha cabeça não está boa. Dou de ombros, agarrando as alças da mochila com as minhas mãos. Inclino meu corpo para frente e caminho a passos lentos enquanto passo diante da vidraça quase imperceptível de tão limpa. Lá dentro, mesas e cadeiras bem dispostas tornam o local super aconchegante. Velas sobre as mesas estimulam o romantismo nos casais mergulhados na penumbra. Ao fundo, a música italiana. Em meu peito, uma dor surge do nada. Uma dor tão forte que chega a sufocar. Meus olhos se enchem d'água e não é pela lembrança de rever o meu tio passeando por entre as mesas e brindando ao Amor, com uma taça de vinho em uma das mãos e sua voz de tenor, ecoando entre as paredes e o teto de onde pendiam bandeirinhas de papel em branco, vermelho e verde, lembrando sua terra natal.

O filha da puta do Fernando arrancou as bandeirinhas assim que assumiu o comando da cantina, apesar de meus pedidos para que não o fizesse. Dizia ser super cafona aquela decoração e, num piscar de olhos, o clima familiar ganhou um ar requintado com um grande lustre circular, ao estilo medieval, onde as chamas de pequenas velas bruxuleiam durante a noite inteira e, pequeninas lâmpadas nas cores da bandeira italiana se fixam à madeira do teto colonial. U-au! O tio tinha razão. Fernando tem um tino comercial do cacete. Daqui de onde me encontro, percebo que as mudanças atraíram mais clientes, mas a dor no peito ainda me incomoda. Tento entender de onde ela vem porque, de certo, não vem de Fernando que se debruça sobre a mesa onde duas moças parecem apreciar a sua conversa ou sua risada displicente que chega aos meus ouvidos. Obviamente, elas estão a-do-ran-do o que ele está dizendo porque riem e se movem como se estivessem sentadas sobre um bando de formigas famintas e carnívoras.

- Estúpidas! - Balbucio enquanto ajeito a mochila em minhas costas, estreitando os meus olhos. É impressionante como ainda sinto ciúmes dele! Um verme, um crápula. Canalha...- Aaah! - Chegam aos meus ouvidos a boa e velha música italiana. A melodia é tão triste...tão linda. De súbito, encosto minhas mãos espalmadas sobre o vidro e cerro meus olhos. Duas lágrimas escorrem por meu rosto enquanto ouço...sinto a canção. Suspiro quando campos verdejantes e um céu de um azul impecável e desafiador que faz tudo parecer amplo e limpo surgem em minha mente. O vento sopra esvoaçando meu rabo de cavalo. Inspiro profundamente e me entrego às visões. Uma árvore torta e velha que se curva sobre uma pequena casa de pedras escuras rodeada por flores de várias cores e tamanhos. A copa da árvore antiga chega a cobrir o telhado que parece necessitar de cuidados. Duas crianças escapam pela porta da frente, risonhas e arteiras. Uma voz feminina os chama de dentro da casa. Outra voz, masculina, vem do meio da floresta que tem início nos fundos do lar. A voz masculina é doce e segura. Aos poucos, seu vulto alto e esguio se mostra caminhando em direção à casa. Tento retirar as mãos da vidraça e me desconectar das visões porque meu coração acelera seus batimentos a cada novo detalhe. Ouço o ruído das ondas que se chocam contra os rochedos, o uivo de lobos, os alaridos das crianças, o vulto que se aproxima de braços abertos. Sua voz grita alegremente por um nome. Grita uma, duas, três vezes. Quero ouvir o nome. Preciso ouvir o nome e talvez, essa dor em meu peito pare de me machucar. - Mor...- Sussurro contra a vasta fachada do restaurante. O vidro se embaça. Abro os olhos e com o indicador, desenho um coração e dentro dele, traço as iniciais: M&G. O homem caminha em minha direção, mas eu não estou lá. Estou prestes a ver o seu rosto. Meu coração vai explodir de emoção. Seu rosto é encoberto pela nuvem que esconde o sol momentaneamente. Ele estende a mão em minha direção. Diabos!

Onde

eu

estou?

Não quero acordar! Deixem que ele me toque. Cerro meus olhos uma vez mais e me deixo possuir pela paz que o homem sem rosto me transmite. Sua mão. Eu posso vê-la com detalhes. Seus dedos longos. O indicador e o polegar se aproximam de minha orelha. Eu estico o meu pescoço porque o quero sentir. Seu cheiro é de sândalo misturado à madeira ou algo assim. Meus pés descalços sentem a grama úmida. Meu rosto sente o frescor do ar puro que vem do mar. Aspiro o doce aroma da Dama-da-Noite e, olhando ao redor, eu me sinto em casa. Sua mão chega a tocar a ponta de meu lóbulo direito e isso me faz sorrir. Há uma intimidade profunda nesta toque tão sutil. Isso significa muito para ele...e para mim também!

A nuvem é levada pelo vento e o sol volta a brilhar e a desvendar, vagarosamente, seu rosto. O sorriso tímido nos lábios vermelhos e finos. A barba e o bigode que cobrem sua pele fina, a ponta afilada de seu nariz bem feito...seu sorriso é encantador...

- Veio me ver, amor? - A voz soturna de Fernando me suga de volta ao corpo e eu tombaria na calçada se ele não me amparasse com seus braços envolvendo minha cintura. - Giulia...- Ele me chama com raiva, dando tapinhas em meu rosto. Meus olhos piscam insistentemente até que eu consiga entender onde estou ou quem eu sou.

- Bosta! - Eu piso em seu pé. Ele se afasta, abrindo um sorriso cínico. Eu o xingo uma segunda vez por falta do que falar diante dele que assiste calmamente ao meu íntimo desespero. Levo uma mão ao peito, enquanto a outra, de imediato, apaga as iniciais já borradas. Ele estreita os olhos desconfiados, cruzando os braços sobre o peito. Ainda ofegante, eu disparo. - Quem eram as clientes assanhadas???- Elevo uma sobrancelha, apoiando os punhos cerrados na cintura. Meu coração bate tão forte que o sinto no pescoço. É preciso disfarçar. Ele é astuto, ardiloso, vingativo. - Diz! - Ele dá dois passos para trás, inclinando a cabeça para o lado, erguendo o canto da boca. Ele está observando a lambança que fiz na porra do vidro.

- Quem são 'M&G'?

- Não sei.

- Por que escreveu?

- Não faço ideia

- Não? - Ele ergue as duas sobrancelhas e se aproxima de mim. Seus braços me envolvem, puxando-me contra ele. - Tem certeza? - Murmura ele em meu ouvido. - Por que dentro de um coração? - Puta merda! Eu apaguei com tanta rapidez! Como ele viu? - Fala, amor.

- Não sei! - Berro em seu ouvido, empurrando-o com as mãos em seu peito. - Vc sabe como sou. - Explico, baixando os olhos e gesticulando nervosamente. - Eu ouvi a música e ela me levou a outro lugar. Eu vi coisas. Eu vejo coisas. Eu ouço coisas. Isso acontece desde criança e vc sabe disso, porra! Qual o problema?

- E ...por que tá tão nervosa? - Ele retruca, encostando seus lábios nos meus. - Giulinha...- Sussurra ele contra minha boca. - Não mente pra mim. - Eu odeio quando ele me ameaça veladamente. - Por que tá nervosa?

- Não estou nervosa! - Grito, soltando o ar pela boca, desviando os olhos aflitos ao meu relógio de pulso. - Estou atrasada! Tô muito atrasada! - Giro nos calcanhares, dando as costas a ele. Não chego a dar um passo porque ele me puxa pelo braço. Sua mão aperta a minha pele coberta por sua camisa e ainda assim, eu sinto dor. - Me solta, Fernando. - Peço enquanto ele me faz girar de encontro a ele. - Tô atrasada. - Repito, encarando-o porque eu sei exatamente o que se passa em sua cabeça e como essa conversa terminaria se não estivéssemos na calçada em frente ao restaurante borbulhando de clientes. - Fernando...

- Vc não me trairia. Trairia?

- Para, Fernando. - Ele aperta os meus braços até que eu emita um gemido de dor.

- Responde.

- Não. - Meus olhos retém as lágrimas de raiva e de impotência. Pressiono a mandíbula e respondo, entredentes. - Não. Não tenho e não penso em ninguém. Me solta.

- Te amo, baby. - Ele me larga, dando uma risada quase infantil. - Vai! - Eu me abraço e minhas mãos tocam a pele dolorida onde ele pressionou. Torço para que não tenha ficado roxo porque vou ter que esconder com a maquiagem mais um dos muitos hematomas que ele deixa em meu corpo. - Te vejo mais tarde. - Ele acena para mim, recepcionando os clientes, enquanto eu recuo, andando de costas, tentando entender como um homem tão lindo por fora pode esconder sentimentos tão soturnos. Como eu posso me sujeitar a isso? Como eu posso deixar que ele me bata e me venda sem me rebelar contra isso? Eu adoraria dizer que é somente por meu tio. Adoraria dizer que a culpa é da bebida que o cega e libera o seu pior lado. Eu adoraria dizer que sou uma vítima de uma sociedade machista que não dá oportunidades iguais às mulheres, mas, eu estaria mentindo. Eu permito que ele me use porque eu sou tão baixa e pequena quanto ele. Essa é a verdade. Eu não conheço outra forma de amar, então, é essa a que eu aceito. Eu não quero perder as mordomias que ele me concede quando eu o obedeço. Eu não quero voltar a ser pobre e implorar aos meus pais que me aceitem de volta. Eu não quero deixar o meu tio e o seu carinho silencioso, então, eu aceito o amor que ele tem a me dar. É um tipo de amor torto. Um tipo de amor ao qual eu me acostumei e não sei, sinceramente, se me acostumaria a um outro amor diferente desse...a não ser...o que aquele homem...o vulto poderia me dar. Ele a amava tanto. Eu sinto. Eu sinto o amor que os unia.

Retiro os óculos do rosto e, com a barra da minha camisa, enxugo as lentes respingadas por minhas lágrimas. Continuo a caminhar pela calçada, ainda na quadra do restaurante. Atravesso o sinal sem olhar para os lados. O nome dela está na ponta da minha língua. Eu a invejo porque sei que ele a amava e não a machucava. Como eu sei, eu não sei. Só sei que sei.

- FILHA DA PUTA! - Puxo o ar pela garganta. A boca aberta, olhos estatelados. - QUER MORRER? - Xingo o motorista que desviou de mim a um centímetro de me atropelar. Não me importo. A sensação que invade o meu peito é tão intensa que quase me faz flutuar. Existe mesmo um amor como aquele? Como eu os vi? Quem são eles? Quem é ele?

- Ei, mocinha! - Volto os olhos úmidos ao homem negro, de sorriso franco.

- Doc??? - Bato a mão espalmada na testa, enquanto ele me pergunta, recostado à porta do "Hotel California" - Ia passar direto?

- Estava tão longe...- Murmuro sob as luzes latejantes do letreiro luminoso de um vermelho diabólico. Ao meu lado, à direita, expostas na vitrine envidraçada, estão as fotos das 'Bond Girls', em trajes mínimos e eu estou entre elas. Eu sempre achei este nome ridículo, sem o mínimo de criatividade, mas o dono não se convenceu de que o melhor seria mostrar apenas os nossos nomes, abaixo de nossas fotos, um pouco mais cobertas. "Menos é mais", eu disse a ele no dia de minha entrevista para a última vaga de Streaper quando ele me fez tirar a roupa de uma forma voluptuosa. Eu o obedeci porque queria fugir do domínio de Fernando e ganhar a minha própria grana, além, obviamente, de poder dançar. Foi 'mamão com açúcar'. O homem com o sorriso de dentes grandes, as orelhas de abano e um bigode desgrenhado, ao final de meu teste, bateu palmas, debruçado sobre sua mesa. Seus olhos lascivos me provocaram náuseas quando ele me propôs um dinheiro extra por cada cliente que desejasse mais do que apreciar o meu corpo sobre o palco. Engoli o ímpeto de pular sobre ele e lhe chutar a cara com a ponta de minha bota arrebentando a metade de sua arcada dentária, inclusive, o dente de ouro. Vi seu sorriso fugir do rosto macilento quando lhe respondi, antes de bater a porta ao sair de seu escritório. "Obrigada, meu bem, mas eu já tenho um cafetão."

- Giulia!

- Oi...

- Por onde anda, menina? - Pergunta Doc, estalando os dedos diante dos meus olhos.

- Perdida, Doc. Perdida... - Compadecido, ele me estende a mão, onde me apoio para subir os dois primeiros degraus da casa de shows. Doc é um bom amigo e protetor. É um cara que sabe ouvir, avaliar e dar ótimas respostas. É o guarda-costas das meninas da boate. Um homem íntegro, enorme, musculoso, de ombros largos, alto e com os olhos castanhos mais inocentes que já vi em toda a minha vida. Seu coração é tão grande quanto ele. - Vc acredita que exista amor de verdade? De verdade mesmo, Doc? - Ele assente, afagando minha bochecha, deslizando o polegar até o meu pescoço. Suas feições se contraem quando ele fixa os olhos enraivecidos na mancha roxa logo abaixo de minha orelha.

- Acredito. - Diz ele, balançando a cabeça com os olhos marejados. - Acredito que vc não merece ser tratada dessa forma, criança. - Eu rio porque adoro quando ele se refere a mim dessa forma carinhosa. - Largue ele, Giulia. Isso não vai terminar bem. - Exalo um suspiro, ainda com a mão em meu peito. Eu digo que estou bem. Digo que o hematoma não foi fruto de violência. Digo que foi sem querer. Que Fernando não quis me machucar quando apertou o meu pescoço enquanto me beijava. Eu minto. Eu minto que estou feliz. Ele finge acreditar. Ele me diz que sou muito parecida com sua filha e que sente um enorme carinho por mim. - O que puder fazer por vc...- Vejo sinceridade em seu olhar quando ele pousa sua enorme mão sobre a minha que chega a desaparecer. Cerro os olhos e sinto o seu coração bater acelerado. Lembro-me das minhas luvas e me arrependo de tê-las jogado na bolsa. Agora é tarde.

Ouço gritos, xingamentos, o estampido de um tiro.

Silêncio.

Um corpo estendido no chão, sangue coagulado nos fios longos e negros. Os olhos desmesuradamente abertos e aterrorizados num corpo sem vida. A boca retorcida que exala, num último suspiro, a palavra "Pai". Retiro, de súbito, a minha mão debaixo da dele. Minha boca está aberta, embora eu não consiga falar o que acabo de ver. Sem coragem de perguntar, suponho que sua filha, tão parecida comigo, fora cruelmente assassinada e largada no local do crime. Olho em seus olhos e enxergo a tristeza. A dor no meu peito aumenta e sinto que hoje, talvez, eu não consiga dançar. - Vc está bem, filha? - Assinto com a cabeça enquanto me afasto vagarosamente. - Não deixe que ele te faça mal. Não deixe.

- Nunca...- Afirmo, subindo a estreita escada revestida de vermelho. Apoio a mão trêmula no corrimão de madeira e volto meus olhos a ele que ainda me fita, desolado. Queria dizer a ele que não foi sua culpa. Queria que ele soubesse que sua filha o amava e que seus últimos pensamentos foram para ele. Queria que ele soubesse o quão bom ele foi para ela e que, antes de morrer, sua filha lamentou não ter escutado seus conselhos e largado aquele homem. Queria arrancar dele o remorso que o corrói. Mas eu não consigo, então digo a única frase que me vem à cabeça. - De um jeito ou de outro, Doc, vai dar tudo certo.

***

Antes de entrar no camarim, ouço o zum zum zum das meninas tagarelando e gargalhando e, de alguma forma, seus risos acalmam o meu coração que ainda está em descompasso. Penso em Doc, em sua filha e no que ele tenta me dizer sempre que me encontra. É claro que ele não gosta de Fernando. É claro que ele teme por minha vida, assim como o fez por sua filha. Adoraria perder esse dom ou maldição e viver como qualquer outro sem sentir a dor do próximo ou, como hoje, não saber que o amor verdadeiro existe porque eu o senti quando eu quase vi seu rosto diante de mim. - Deus...- Exalo um inevitável suspiro eloquente de dor. - Isso é patético!

- Boa noite! - Cumprimento, de volta, a moça da limpeza que me fita com estranheza.

- Eu!!! Apaixonada por uma visão!!! - Estou parada, diante dela como quem espera por uma resposta. Ela encolhe os ombros, apoiando as mãos na ponta vassoura.

- Isso acontece, querida. - Diz ela, revirando os olhos enquanto eu sigo adiante mergulhada em meus pensamentos. Por que tenho ciúmes de uma mulher que sequer conheço? Talvez, ela sequer exista. Por que a porra da plateia tá gritando por meu nome??? QUE MERDA! Eu tenho vontade de abrir a porra da cortina e mandar aqueles vermes nojentos de volta às suas casas e darem valor ao amor que ainda têm de suas esposas!!!

- ACORDA, ALICE! - Volto à realidade, empurrada por "Sweet Jane" que berra em meu ouvido e passa a minha frente com seu corpo exuberante e seus cabelos loiros, sedosos e sempre impecavelmente penteados. - Vc está atrasada, meu bem!

E lá vai ela abrir a noite, rastejando, como uma cobra peçonhenta, no piso frio do palco. Os homens vão à loucura quando ela abre as pernas e se mostra por inteiro, devassando suas entranhas. É de uma vulgaridade absurda!!!

- Quem sou eu para julgá-la? - Pergunto a mim mesma, enquanto termino a maquiagem, montada em minhas botas super poderosas que cobrem parte das minhas coxas. Sério! Eu amo essas botas! Mas odeio odeio odeio esse biquini com a porra de um fio prateado enfiado no meio da minha bunda!! Melhor seria entrar nua de uma vez. Pobre Sweet Jane. Tem dois filhos e precisa da grana, tanto ou mais do que eu, para sustentá-los. Que porra de vida é essa??? Se ao menos ela dançasse. Afff! Acho que estou no lugar errado. Eu deveria estar num convento...ou em outra vida. - Talvez, em outra vida, eu o encontrasse e, então, ele me tocasse como ele quase me tocou...- Sorrio feito uma tola para o meu próprio reflexo.

- Coisinha fofa! - Sweet 'chata' Jane volta a me assustar quando retorna, suada, porém, com os cabelos intocáveis, de sua apresentação. Como ela consegue essa façanha eu não entendo. Seu tom de ironia denuncia seu ódio por mim. Ela quer Fernando para si. Ela imagina que eu não sei o que fazem longe dos meus olhos. Ela finge ser uma boa amiga. E eu finjo não saber o que a espera.- Vc é a próxima!

Uma última olhadela no espelho vertical enquanto ajeito a pluma preta em meu pescoço. Sua ponta longa cobre meus seios que se escondem, por algum tempo, no sutiã trabalhado em pedrarias. Meus cabelos estão soltos em cascata e se confundem com o negro da estola. Meu rosto maquiado não esconde a tristeza profunda que sinto aqui dentro. Então, eu me escondo dentro de um macacão de encanador.

Homens adoram uma mulher fantasiada.

***

- Como eu posso pensar em um homem que não existe? - Digo, movendo a boca sem emitir som algum, caminhando em direção à coxia. As paredes escuras me dão claustrofobia, então, puxo o ar pela boca e o solto lentamente. Uma, duas, três, quatro vezes. Foi assim que meu tio me ensinou. O ritmo alucinante das batidas que ecoam no salão ditam o compasso do meu coração que resiste, insiste em pensar em um fantasma. - SAI DA MINHA CABEÇA! - Grito, afundando o capacete branco que esconde meus cabelos já em desalinho. Contraio os olhos e grito novamente. - NÃO QUERO PENSAR EM VC!

- Em mim???

- Não! - Respondo, irritada, ao rapaz de olhos arregalados responsável por abrir as cortinas, em veludo verde-musgo. - ELE! - Volto a ele os meus olhos alucinados, a boca entreaberta. As mãos em seus ombros. - ELE NÃO SAI DA MINHA CABEÇA. - Tento explicar a ele que faz uma careta de quem nada ouve porque a caixa de som está estrategicamente encostada em sua orelha esquerda. Ele e eu sentimos o Tum Tum Tum vindo da cabine do DJ que anuncia a minha chegada. Puta que pariu. Eu mal sei o que vou dançar. Apesar de saber que eles nunca nunca nunca prestam atenção aos meus passos, eu me sinto insegura porque não ensaiei os passos. Sequer sei a música que vai rolar!!! - E AGORA???? - Sacudo o rapaz franzino que contrai as feições, comprimindo os olhos como quem aguarda por um golpe bem no meio de seu nariz. Antes de atravessar o limite entre o real e o imaginário, eu o ouço gaguejar.

- Acre acredite em vc! - Volto meus olhos vorazes a ele tão rapidamente que meu pescoço estala. Então, sorrio quando ele declara, berrando, numa rapidez absurda. - EU AMO O SEU JEITO DE DANÇAR!

- OBRIGADA!

Puta merda! Era tudo o que eu precisava ouvir. Alguém neste mundo me observa. Alguém neste mundo, além de meu tio perdido nas trevas da Inconsciência, acredita em meu talento. É por ele que vou dançar. É por este rapazinho que sequer sei o nome que vou dar o meu melhor. É ao homem sem rosto que vou dedicar o meu show de hoje.

Quem sabe, ele está mais perto do que imagino? Quem sabe ele me amou em outra época, embora eu jamais tenha me questionado com relação à vidas passadas? Quem sabe, se fui feliz em outra vida, talvez....somente talvez, alguém tenha, de fato, me amado? E, se alguém me amou antes, talvez...somente talvez, possa continuar a me amar nesta vida também.

- Pode ser... - Abro um sorriso palerma enquanto fito o teto, os aros dourados da cortina que se abre lentamente. A casa está cheia. Os homens gritam por meu nome.

"Tiffany-Twisted!!!"

Eles urram por mim e eu não faço a menor ideia do que fazer. Acabo de compreender a expressão "Me deu um branco", porque agora, estou diante deles que me enxergam com perfeita nitidez, embora eu não os veja. A porra da luz incide novamente sobre meus olhos. Eu já pedi ao carinha das luzes para não fazer isso. Puta que pariu! O que eu faço? O que eu faço? O que eu faço?

"A streaper, a prostituta, a submissa Tiffany- Twisted jamais será amada, meu bem. Acostume-se ao fato e faça o que faz de melhor. Dance."

- Não aceito! - Brigo com a voz que me sussurra mentiras. A raiva parte de mim com uma grande língua de fogo maléfica, então deixo o burburinho me atingir, sentindo o perfume da fumaça dos cigarros e da colônia masculina. Alto-falantes por todos os lados derramam uma música baixa de ritmo marcado de uma banda de metais que dá a impressão de batimentos cardíacos coletivos. Sinto a multidão que continua a rir, engolir, e beber. Clientes virando o olhar, murmurando obscenidades. Estreito os olhos, elevando o braço direito, apontando para o DJ. Não sei ao certo se ele me vê, no entanto, movo a boca, na esperança de que ele me entenda e leia meus lábios.

- Música dois. - Enfatizo os movimentos labiais, mostrando a ele o indicador e o dedo médio, esticados bem diante do meu nariz. Creio que ele entendeu porque reconheço a canção que pedi, cerrando meus olhos, lembrando-me do sorriso inocente e tímido do Homem sem Rosto. - Essa é pra vc...- Digo a mim mesma, dando início ao que todos esperam. A calça frouxa do macacão se move de acordo com a maneira que movimento meus quadris, pisando firme, cabeça baixa, a mão segurando a aba do capacete. Leona Lewis sabe o que estou sentindo, porque canta exatamente o que está acontecendo aqui, dentro de mim. Todos me olham e acham que sou louca, mas, como ela mesma diz, eu não me importo com o que dizem. Entusiasmada, ergo a cabeça. Abro um sorriso confiante e paro de requebrar, agarrando-me à barra de 'pole dance'. Ouço os arquejos de espanto ao meu redor. Os passos fluem com naturalidade e já não tenho medo. Pensar no Homem sem Rosto me dá a paz de que eu necessito para esperar. Eu sei que é ridículo. É loucura, mas eu vou continuar a te procurar porque agora entendo que...

"Estou apaixonada por vc."

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 12/04/2020
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