'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 12

'It's late in the evening; she's wondering what clothes to wear

She puts on her make-up and brushes her long blonde hair

And then she asks me, Do I look all right?

And I say, "Yes, you look wonderful tonight

We go to a party and everyone turns to see

This beautiful lady that's walking around with me

And then she asks me, Do you feel all right?

And I say, "Yes, I feel wonderful tonight"

I feel wonderful because I see

The love light in your eyes

And the wonder of it all

Is that you just don't realize how much I love you'

(Wonderful Tonight - Eric Clapton)

Eu saio do box com os cabelos molhados, enrolados na toalha. Com uma mão, desembaço o espelho acima da pia. O que vejo não me agrada. A mancha vermelha ficou roxo. Nada que um pó facial não encubra, embora eu deteste maquiagem.

'Maquiagem é coisa de puta', dizia meu pai quando eu ainda era uma adolescente tentando disfarçar as espinhas no rosto com uma base mais clara que a minha pele. Meu pai era grosseiro, insensível, agressivo e - quem diria - um visionário!

- Sua filha é puta, papai. - Digo bem próxima ao meu reflexo. - Ou melhor, foi. - Corrijo-me sob a luz incandescente que incide sobre meus olhos castanhos esverdeados. Isso me agrada. São tristes, grandes e claros. E são o que há de melhor em mim. Isso, em minha opinião. Fernando tem sua preferência com relação ao meu corpo porque ele somente conhece o corpo e não a alma. O corpo que não está mais à venda desde que, em uma discussão acalorada, decidira dar um ponto final neste capítulo de minha vida. Foram necessários diversos goles de uísque para deixá-lo a ponto de não mais reagir a minha intransigência. Minha mãe se orgulharia de mim se me visse naquela noite. Aguentei firme os golpes que ele me acertou.

"Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé', minha mãe. Não foram estas as palavras do Apóstolo?

Teria orgulho de mim, mãe. Afinal, as noites insones, após suas discussões com o meu pai, onde a senhora me fazia decorar os livros da Bíblia e, delicadamente, a arremessava em minha cabeça caso eu errasse o que havia lido por vezes seguidas debaixo de seu olhar ameaçador, valeram a pena. Eu não me deixei vencer pelo medo, mãe, e o enfrentei. A cada soco ou chute, eu revidava até que, enfim, eu cheguei à exaustão. O infeliz, mesmo bêbado, conseguia ser mais forte do que eu. Mas, eu venci, mãe, e, desde então, eu não vendo mais o meu corpo. Eu apenas danço sem me importar onde ou para quem. Eu danço e ganho para isso. Ganho e guardo o que ganhei porque tenho planos. Planos tão distantes...mas os tenho.

Dou uma última olhadela no espelho vertical do meu guarda-roupas tão antigo quanto eu. Ainda mantem a mesma cor rosa, num tom já desbotado, do dia em fora comprado pelos tios. Fizeram questão de montar um quarto de princesa 'para uma princesa'. Era assim que meu tio me chamava. Uma princesa tosca, puta, mundana, streaper enfiada num tubinho preto até os joelhos. A ocasião requer sobriedade seja lá que diabos Fernando esteja planejando!

Retoco o batom 'vermelho intenso', do jeito que ele gosta. Estreito meus olhos e me fito com desprezo. Creio que todas as mulheres se vestem e se maquilam para seus homens e não por elas mesmas. Não deveria ser assim. E não adianta negar! Por mais que se negue, lá no fundo do fundo do fundo do fundo, saímos de casa, num sábado à noite para encantar os olhos de quem nos encanta. É ou não é? Óbvio que, a princípio, a satisfação é nossa, então, pensamos no que eles irão dizer ou pensar.

É claaaaro que eu pulei esta fase fantástica de me arrumar e aguardar que o meu namorado me elogiasse porque eu simplesmente não tive namorado. Primeiro, o estupro. Logo em seguida, caí em suas mãos e delas, não mais saí. Confesso que por comodismo. Já estava aqui mesmo e ele não é de se jogar fora, meu bem.

- Boa noite, Dona Clotilde. - Cumprimento a vizinha ao lado, parada em frente ao seu portão. Uma senhorinha fofa, miúda, de cabelos brancos e sorriso frouxo. Um primor. Só não deixe que ela a toque caso não queira murchar como arruda nas mãos de uma benzedeira. - Como vai a sua filha? Há dias que não a vejo. - Puxo conversa porque seu olhar me incomoda. Pobre filha. Hipocondríaca, Esquizofrênica. Bom coração. Más companhias. Quando ela sai, puxa atrás de si, um cordão de mortos. - Melhor a senhora entrar. - Ela assente com a cabeça sem tirar do rosto cheio de pregas o sorriso sórdido. - Vai cair um 'pé d'água'! - Solto um muxoxo. Ela, desconfiada, me pergunta se eu estou certa disso como se eu fosse o "Homem do Tempo" do Jornal Nacional. - Sim...- Arregalo os olhos numa expressão amedrontadora. - Sinto. - Minto. - Sinto e ouço o Sudoeste soprar! - Digo enquanto a vejo fechar os cadeados às pressas, olhando do céu para mim, voltando ao céu, beijando o Cristo pendurado em seu pescoço. A custo, prendo uma risada diabólica, pois, não a quero morta. Quero que ela viva para pagar as ofensas contra a minha tia. Eu sei que deveria perdoá-la. Eu deveria esquecer o fato de que ela jogou o nome da mãe do Fernando na lama quando espalhou pela rua que a esposa do meu tio possuía um amante e, consequentemente, ele adoeceu de tristeza. Eu deveria perdoar. Deveria. Deveria perdoar. Perdoar? Perdoar é o cacete! - Entra! - Ordeno, enraivecida, a cabeça pendendo para fora do quintal, agarrada às grades do portão à espera do príncipe gigolô, bêbado, violento, sádico e ninfomaníaco cujos faróis do carro avisto lá na curva da esquina. É impressionante como sou descarada! Ainda sinto um arrepio percorrer o meu corpo quando o vejo subir a ladeira, vindo em minha direção. Eu amo esse patife e me odeio por isso.

Acho que já mencionei que me odeio por isso. Ok. É que, quando eu o sinto por perto, perco a cabeça.

- PUTA MERDA! - Giro nos calcanhares e corro ao encontro do meu tio sob os cuidados da 'Baby Sitter' que assiste, atentamente, à novela das nove, na sala de estar. Passo por ela, fulminando-a com meu olhar faiscante. Ela estoura a bola de chiclete, absolutamente indiferente ao meu ar de reprovação. Resolvo parar e, chocada, disparo. - Vc checou a fralda dele? Sua temperatura? A pressão arterial?

- Uh-hum. - Diz ela, sem desviar os olhos de peixe morto da TV. A protagonista malévola acaba de empurrar o otário do marido escada abaixo. - Puta que pariu! - Exclama ela, arrasada, afundando o rosto nas almofadas macias da minha tia. DA MINHA TIA! Impaciente, continuo.

- E as cobertas o cobrem até o pescoço? O pijama é o de flanela com listras marrons? - Eu a vejo erguer uma sobrancelha questionadora e percebo o quão imbecil é a minha pergunto, pois fui eu quem o vestiu. Ela assente sem mover um músculo de seu corpo agradavelmente repousado sobre o sofá de couro onde era eu quem deitava para assistir aos filmes com o meu tio. O MEU TIO!!! Sem perder a pose de dona de casa exemplar, prossigo arguindo-a sobre as janelas fechadas. A temperatura do ar-condicionado, sua aparência, sua respiração durante o sono. - Ah! Vá pro inferno! - Arremesso uma almofada em seu rosto, Ela a pega no ar e, antes de Fernando estourar os tímpanos da vizinha macabra buzinando ininterruptamente, eu corro até o quarto do tio, abro a porta e, ofegando, ajoelho-me ao seu lado. Ausculto seu coração. Pouso o dorso de minha mão em sua testa. Nada de febre. Eu o sinto tranquilo. Mentira. Eu o sinto ausente, mas não vou chorar para não estragar a maquiagem e não dar motivo para brigas. Não esta noite. - Tio, eu volto logo. - Sussurro em seu ouvido. Ele há de me ouvir onde quer que esteja. - Eu te amo e não vou te deixar. - Beijo o topo de sua cabeça. - Deseje-me sorte! Acho que hoje a noite vai ser especial!

Fecho a porta com cuidado. Passo pela garotinha impertinente que sorri para mim enquanto me diz para aproveitar a festa.

'Fica sussa, tia. Ele está em boas mãos'.

Estaco abaixo da porta da sala antes de pisar na varanda, de costas para ela. Penso duas vezes antes de lhe mandar à merda por me chamar de 'tia'. Temos quase a mesma idade e isso, hoje, está me deixando puta. Não puta de puta, mas puta de raiva.

- Vai, tia. - Resmunga ela com a voz preguiçosa. - Se solta!

Solto o ar pela boca e, praguejando, alcanço o portão da garagem que se abre vagarosamente graças a ele que aciona o controle em sua mão, abrindo um sorriso cafajeste, a cabeça para fora da janela aberta. Mal posso vê-lo já que ele não desliga a porra dos faróis que queimam a minha retina...pupila...íris...ah! Não sei! A puta que pariu!

- DÁ PRA PARAR DE BUZINAR???

- Entra, baby! - Levo a mão ao coração que bate em descompasso quando ele sai do carro e se apoia na porta aberta. U-AU! Ele está incrivelmente bem vestido numa camisa social branca, mangas compridas sob um terno em Oxford preto, gravata preta com 'pois' brancos. Ele larga a porta, circunda o carro enquanto me fita com uma expressão sedutoramente displicente. Ele passa por mim e eu, imbecil, exalo um suspiro. Ele ri, de costas para mim, abrindo a porta do carona. - Vc não vem?

- Eu? - Sua voz é doce. Seus gestos, suaves. Eu poderia me afogar no azul de seus olhos. - Eu? - Repito sem acreditar que, em drásticos dez anos entre nossa adolescência e juventude, este é o primeiro dia em que o vejo ter um gesto voluntário de cavalheirismo...comigo. - Ah! Eu! - Rindo de nervoso, dou dois passos vacilantes. Ele me apoia pelo braço antes que eu me estabaque no chão diante dos olhos curiosos dos vizinhos maledicentes. Creio que salto alto e paralelepípedos deveriam manter distância um do outro.

'Lá vão a puta e o gigolô', escuto a voz da doce velhinha dos infernos atrelada ao portão enferrujado. A boca retesada e a expressão severa, cochichando com a filha dopada que acaba de acordar. Não ligo. Estou eufórica demais. Extasiada demais. Encantada demais por ver um outro homem diante de mim. Eu não posso. Eu não posso. Eu não posso. Eu não posso estar me apaixonando por ele outra vez. Minto. Eu sou apaixonada por ele desde que me entendo por gente, mas, eu me nego a acreditar que ele é o cara mais lindo e repugnantemente irresistível que já conhecera em minha vida! Puta merda!

Como...ele.tá.gos.to.so!

- Vc tá linda esta noite, amor.- Sussurra ele em meu ouvido enquanto bate a porta do carona. Prendo minha respiração para não abrir a porra de um sorriso idiota. Ele se senta ao meu lado e me fita insistentemente até que eu me volto para ele.

- O quê??? - Cuspo as palavras, ofensivamente. - Algum problema???

- Nenhum. - Com ternura na voz, ele se aproxima e beija minha bochecha. A mesma que ele socou sei lá quando. - Vc tá linda essa noite. - Repete ele de uma maneira cativante. Faço uma careta porque sou avessa a elogios, embora, por dentro, esteja soltando fogos e saltitando de alegria. Seu polegar afaga meu pescoço, o que me faz lembrar do homem com quem sonhei e que decido esquecer a partir de hoje. A lua está cheia. O céu estrelado. Sua mão em minha nuca me toca com carinho. Seu beijo é calmo, demorado e cheio de sentimento. Eu devo estar sonhando e, se estiver, não quero acordar. Esse é o rapaz com quem deveria ter saído na noite dos meus quinze anos. O rapaz que faria amor comigo. Não o que me violentou. Esse é o homem da minha vida. Aah...é sim! - Essa noite vai ser inesquecível, Giulia.

- Vc me chamou de Giulia? - Pergunto contra seus lábios. Ele ri contra a minha boca. Isso me aquece por dentro. - Chamou?

- É o seu nome, não é? - Ele se afasta, mostrando os caninos que me tiram do prumo. - Não é??? - Ele arregala os olhos, deixando-me confusa. Vai ser bonito assim no inferno! - Giulia...- Eu o calo com outro beijo, mais ousado, mais quente, mais faminto. Não me importo se borro a minha boca e sua pele macia. Procuro seus cabelos para me agarrar neles, mas não os encontro. Estão rentes ao couro cabeludo, o que, fatidicamente, me deixa excitada. Eu amo amo amo amo amo homens com cabelos curtinhos, a nuca batida. A barba bem feita. - Assim a gente não sai, amor.

- Uau...- Suspiro, descolando-me dele. Absolutamente tonta, aspiro o ar pela janela aberta da porta do carona. Revejo as estrelas. A Dama-da-Noite me faz lembrar de quem eu devo me esquecer. Meu peito dói e já não sei porque. - Vc tá mudado. - Afirmo, voltando meu rosto a ele que me observa na penumbra, a mão apoiada ao volante. - O que deu em vc? O que vai rolar nesta noite? - Ele se inclina lentamente para frente. A luz alaranjada do poste incide sobre seu rosto, o aroma da árvore que amo invade o interior do carro. Flashes do sonho da noite anterior chegam até mim como flechas chamejantes. Estou arfando enquanto o vejo abrir um sorriso enigmático que em nada se assemelha ao daquele homem. Por que sinto medo? Por que meu coração se comprime? - Não me deixa sozinha na festa, Fernando. - Ele balança a cabeça em negativa, lançando-me um olhar breve mas fulminante antes de dizer ainda de forma carinhosa.

- Vc se parece com aquela garotinha que chorava todas as noites com medo...

- Não me lembra daquilo. - Interrompo-o, levando minha mão trêmula à sua boca, implorando. A última coisa da qual eu quero me recordar é daqueles seres demoníacos tocando em meu corpo como se eu pertencesse a eles. Fora, de longe, a pior época da minha vida onde deixei de acreditar em Deus, pois, caso Ele existisse, não permitiria que uma criança inocente sofresse o que sofri. - Me abraça? - Cerro os olhos, encolhendo os ombros, tremendo involuntariamente. Seus braços me envolvem e me puxam contra si e, mais uma vez, eu o comparo ao homem dos meus sonhos. Seu abraço, ainda que me acalme, não me traz a paz que sentira nos braços...- Diz que me ama. - Dou graças por meu rímel ser à prova d'água porque estou chorando como um bezerro desamparado, implorando por proteção. - Diz, por favor.

- Te amo, baby. - Sussurra ele em meu ouvido, beijando meu pescoço, afagando meus cabelos em completo desalinho. - Te amo muito. - Sorrio, aliviada, retocando o batom no espelhinho do tapa-sol quando ele, complementa, girando a chave na ignição. - Do meu jeito.

Eu murcho.

Há frases que não deveriam ser complementadas. Há sonhos que deveriam ser esquecidos. Há noites que não deveriam ser lembradas.

Há noites que não deveriam sequer existir.

***

Entrar aqui me faz lembrar do tio. Meus olhos se enchem d'água, mas eu NÃO.VOU.CHO.RAR, PORRA! Engulo em seco, apertando a mão de Fernando que me guia até a mesa no canto do canto do canto mais escondido e escuro, como eu havia pedido ainda no carro. Ele diz que não vê motivos para isso. Diz que sou linda, desejável, deslumbrante. Diz que chamo a atenção de todos assim que chego em qualquer lugar. Digo a ele que é exatamente por isso que desejo me esconder porque não quero ser vista. Quero apenas estar ao seu lado. 'Não me deixa sozinha', repito a súplica. Ele me beija na testa enquanto me faz sentar no local mais distante do burburinho causado pela alegria dos casais ou o alarido das crianças rabugentas que se negam a comer. Por dentro, eu rio. Fernando era bem assim. Tinhoso, rabugento e mimado. Estirava-se no chão do shopping quando contrariado, aos berros, enquanto meu tio segurava minha mão, andando na direção contrária a dele que, sentindo-se sozinho, sem plateia, erguia-se cabisbaixo, seguindo nossos passos. Eu nunca soube se era meu tio quem soltava minha mão ou se era eu quem me desconectava da dele. O que me lembro era de correr ao encontro de Fernando, pondo-me ao seu lado, observando-o em silêncio até que reunia coragem para dizer baixinho.

"Não vou te deixar sozinho. Nunca."

Ele forçava um sorriso, unindo seu dedo mínimo ao meu. Unidos, voltávamos a caminhar logo atrás do tio que piscava para mim, abrindo um daqueles sorrisos que iluminava todo o estacionamento. Aliás, de onde estou, vejo através da vidraça, o estacionamento do restaurante apinhado de carros caros cujos nomes eu desconheço por completo. Sou uma negação em relação a carros. Conheço somente o Fusca e o Chevette. Isso porque foram os primeiros carros do tio.

Bons tempos.

- Como ele deve estar? Gabriela desgrudou a bunda do sofá e foi ver como ele está? - Penso alto, apoiando os cotovelos na beirada da mesa em madeira rústica forrada com uma toalha alvíssima, pratos enormes, pesados, de um branco que me cega os olhos. Copos para água. Taças para vinho. São tão limpinhos e tão transparentes que posso ver através deles e, o que vejo, não me agrada. Fernando recostado ao bar conversando com dois homens que penso não conhecer. Estão de costas para mim sentados num banquinho igualmente em madeira, absolutamente gracioso. Espero que não se virem. Não quero ser vista. - Que fofo! - Exulto, tocando no delicado arranjo de girassóis sobre a mesa. Aproximo-me dele e o aspiro. - São de verdade. - Certifico-me, tamborilando meus dedos nervosos na garrafa de vinho importado que parece ter um gosto delicioso. Deslocada, olho para o teto de onde pendem luminárias de vários formatos com lâmpadas em diversas cores. O que me deixa confusa. Estou em um restaurante ou na porra de uma loja de iluminação? - Quero ir pra casa, Fernando. Olha pra mim, imbecil! - Inflo as narinas, cravando a mão num dos 'trocentos' talheres dispostos sobre a toalha branca. O cardápio parece me desafiar a abri-lo. Acha que sou burra, desinformada, deselegante? Acha que não sei pedir um prato num restaurante fino, Fernando??? Ergo meu braço. Ele finge não me ver. Mantenho-o erguido até ele me fitar com aquele olhar parado que me assusta. - Fica comigo. - Articulo os lábios sem emitir som. Ele me leu perfeitamente porque ergue a taça de vinho num brinde quando eu o afronto, mostrando-lhe meu dedo médio em riste. - Te odeio...- Murmuro, baixando a cabeça, fingindo ajeitar a barra do vestido, tomando em minhas mãos o guardanapo em Oxford com o brasão da casa bordado em marrom. Por que Oxford??? O blazer dele é em Oxford. O guardanapo em Oxford. Que diabos isso quer dizer??? - Eu vou tomar a porra desse vinho se ele não voltar agora!

- Permita-me.

- NÃO! - Tomo a garrafa em minhas mãos sem olhar para o garçom que está ao meu lado. De soslaio, vejo seu traje preto, o corpo esguio, as mãos hábeis que se aproximam de mim. - É de OXFORD também??? - Grito contra o guardanapo que secam as lágrimas estúpidas que descem sem a minha permissão. - OXFORD!

- Madame? - Diz o pobre rapaz, confuso. - Posso abrir?

- O quê? - Choramingo, assoando o nariz na porra do guardanapo em Oxford. O que me faz lembrar de 'Juilliard' e do que eu deveria ter sido. De onde deveria estar agora, neste exato momento se não fosse por ele, o idiota que diz algo aos homens. Os homens se viram e me fitam e, em seus olhos, há lascívia. Eu os odeio. Odeio Fernando que me prometeu ficar ao meu lado. - O QUE VC QUER, GAROTO???

- Posso lhe servir o vinho?

- Vc é persistente...- Digo entredentes, deslizando a taça até a ponta da mesa. Vejo a garrafa sumir do meu campo de visão. Ouço o agradável som do vinho enchendo a taça. Não bebo. Odeio bebida. A porra do álcool acabou com a minha vida desde criança. Meu pai, Fernando...todos um bando de alcoólatras do inferno! - Mais um! - O garçom me serve, pacientemente, a segunda taça já que a primeira desceu por minha goela abaixo sem encontrar empecilhos. - Até que é gostoso...- Estou rindo, sentindo-me leve, tonta. - Vc não bebe? - Minha voz sai cheia de raiva enquanto encaro Fernando engraçando-se com uma loira aguada, sem bunda, com dois melões no lugar dos seios.

- Não. - Diz o garçom num tom soturno. Sua voz é agradável. - Não em serviço.

- Deveria. - Sugiro. - Vc deve ter um saco enoooorme pra aguentar esse bando de gente chata te pedindo tudo a toda hora! - Gosto do som de sua risada. Gosto de seu perfume no punho do braço que me serve a terceira taça. - É amadeirado?

- Sim. - Levemente interessada, desvio meus olhos, desfocados, de Fernando e, então, desorientada, percebo que o garçom educado se foi, tão rápido quanto chegou. Imbecil que eu fui. - Como eu pude ter sido tão grosseira com ele??? - Decidida a me levantar e a encontrar o garçom sem rosto, eu volto a me sentar, despencando na cadeira, esbarrando nos talheres. - Bebi demais. - Concluo, levando a mão à testa, o estômago embrulhado. - Me tira daqui. - Digo ao vulto que acaba de se sentar ao meu lado.

- Vc não tá acostumada a beber, baby.

- Ao contrário de vc. - Retruco com a voz grave, irritadiça. Ele estende o braço para mim. Eu me apoio nele enquanto tento não esbarrar nas mesas sempre cheias de pessoas cochichando, sombras que as circundam. - Eu preciso falar com ele. - Murmuro, de olhos cerrados, empacando como uma mula bem no meio do salão. - Manda essa gente parar de rodar, Fernando.

- Falar com quem?

- Com o menino...o menino - Estalo os dedos, ansiosa, entorpecida. - O menino, porra. - Fernando me puxa contra a minha vontade. Eu volto a empacar. - Me solta. Preciso falar com ele. Vc não entende? - Ele apoia suas mãos em meus braços e se posiciona à minha frente. Ainda que eu esteja tonta, não estou lesada. É óbvio que ele não quer que eu faça escândalo no grande restaurante onde ele é o competente proprietário. Onde todos o julgam um bom homem, cordial, extrovertido, divertido, equilibrado, educadíssimo como todo bom anfitrião deve ser. Suas mãos estão esmagando os meus braços. Isso dói. - O MENINO!

- O garçom?

- Isso! - Estatelo os olhos ansiosos, tentando me desvencilhar da pressão incômoda que sinto em minha pele certamente já marcada. Ele não me solta, então entendo que devo ficar quieta. Ele torna a caminhar, segurando em minha mão. Eu o sigo porque estou sendo puxada, equilibrando-me na porra de um scarpin altíssimo ressuscitado do fundo da sapateira somente para que ele se orgulhasse de mim. Bem feito! Quem manda ser burra? Eu quero as minhas botas! São mais seguras. Firmes. EU QUERO AS MINHAS BOTAS DE TIFFANY-TWISTER COBRINDO MINHAS COXAS AGORA! Angustiada e enjoada, eu o puxo para trás e, num tom de aviso, proclamo. - Eu não vou embora sem falar com ele. Eu preciso me desculpar. Por favor, Fernando... - Fernando estaca quase em frente ao bar. Vira-se para mim, enquanto, delicadamente, ajeita meus cabelos. Acaricia meu rosto, demonstrando afeto e preocupação, embora seu 'olhar de crocodilo' me diga o contrário. - Me deixa falar com ele. - Suplico, ouvindo o ronco do meu estômago vazio. - Deixa, amor.

- Pedir desculpas a um garçom. - Ironiza ele, elevando uma sobrancelha e o canto da boca.

- Sim! - Contrariado, ele prossegue, sem desviar aqueles olhos dos meus.

- Pedir desculpas a um garçom gay?

- Sim! Qual é o problema??? Gay ou não, eu fui grosseira com ele. Ele não merece.

- Isso tudo...- Ele dá um passo para trás, olhando-me com desprezo, de cima a baixo. - Por um garçom? Um garçom que vc não conhece? - Sua expressão vai do desprezo à suspeita. Sua voz sai tão baixa que mal posso ouvi-la. - Ou conhece?

- Amor...- Baixo o tom de voz e, sem me compreender, imploro, ignorando todos os sinais de que o 'príncipe' adormeceu e, quem está diante de mim, agora, é o 'monstro'. - Deixa eu falar com ele. Depois, a gente vai embora.

- Embora? - Seu riso me faz estremecer. - Quem vai embora? A festa mal começou. - Ele olha por sobre o meu ombro e, com a mão livre, acena, abrindo um sorriso de propaganda de margarina a alguém atrás de mim e, baixinho, comenta. - Eu disse que eu tinha uma surpresa. Não disse? - Não ouso me virar. Sei que ele acena para os homens com quem conversou durante o tempo em que me largou na mesa sozinha e eu...eu ainda penso no garçom com quem fora estúpida. - Quero te apresentar meus amigos. - Dizendo isso ele volta a me puxar pelo antebraço, apertando-o cada vez mais. Ele ouve meus apelos. Ele ouve o meu gemido de dor. Ele ignora os clientes, as crianças que agora comem tranquilamente. Os garçons de um lado ao outro equilibrando bandejas com pratos que me fazem salivar. Não vejo seus rostos e, mesmo que os visse, eu não o reconheceria. Sequer eu o cumprimentei. Fernando anda tão rápido que preciso ser hábil para não torcer um dos pés. Passo por vultos que me atravessam como se eu fosse uma porta escancarada. Há algo de errado nisso tudo e ele não enxerga. Não me ouve. - Fernando, me ouve. Alguma coisa de ruim vai acontecer. - Ele não diminui os passos. Sequer olha para trás. A cada passo que me aproxima de 'seus amigos', entendo que seu objetivo não é o de me apresentar como sua namorada ou noiva ou seja lá o que eu signifique para ele àqueles com quem ele convive diariamente. Meu tio, ao contrário dele, fazia questão de dizer a todos os seus funcionários que eu era a sua filha, seu xodó. Todos se foram. Todos morreram ou se aposentaram ou Fernando dera um jeitinho de se livrar dos que ele rotulava como 'velhos inúteis'.

Uma punhalada atinge o meu peito quando, segundos antes de chegarmos ao bar, ele se volta para mim e, com malícia no olhar, cochicha ao meu ouvido.

- Seja boazinha.

Apuro a minha visão enquanto encaro os homens com ternos caros e uma expressão nauseabunda em seus rostos. Compreendo o que há pouco sentia. Logo atrás deles, os vultos tomam forma. Eu os ouço. Eu os vejo sugarem, com dificuldade, uma espécie de fumaça exalada pela boca dos tais homens já embriagados. Fernando nos apresenta e eu me nego a tocar naquelas mãos imundas.

- Não me deixa, Fernando. - Minhas palavras saem entrecortadas por soluços. Agarro-me a ele que me abraça somente para me advertir, me repreender, me ameaçar. - Por quê? - Balbucio contra sua camisa de grife. Minhas lágrimas a mancham. - Por que me trouxe aqui? O que eu fiz? O que mudou? - Ele une os dedos de suas mãos na altura da minha lombar e me puxa contra si, violentamente sem se importar com mais nada além do seu ódio impresso em sua voz.

- Mulher minha não fala com outros. Não flerta com outros. Não fode com outros sem a minha autorização. - Agarro-me à gola de seu blazer, forçando meu corpo contra o dele na inútil tentativa de afastá-lo dos que o esperam, ávidos por prazer. - Dá próxima vez que te convidar pra sair comigo, não estraga a noite bancando a puta.

- Eu não fiz nada. Eu não fiz nada. - Minhas mãos aflitas tocam seu rosto, sua boca. Minha bochecha se encosta a dele quando, num fio de voz, digo. - Me castiga em casa, mas...não faz o que tá pensando em fazer. Por seu pai, eu te imploro.

- Vc vai gostar...baby.

Antes de cruzar o portal em arco e deixar o grande saguão onde, há pouco, eu sonhava em ter uma noite fantástica com o rapaz encantador que me buscara em casa, meus olhos desesperados ainda procuram salvação nas mãos do homem com quem eu fora estúpida. Ele possui um bom coração. Eu pude sentir. Ele, talvez, pudesse mudar o rumo daquela noite...ou não.

"Uma vez puta, sempre puta". Nunca meu pai tivera tanta razão.

'Me ajuda, pai. Me ajuda'

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 08/05/2020
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