'É ASSIM QUE DEVE SER" - CAPÍTULO 25

Querida Giulia,

O início está demasiadamente formal, mas, não sabia como começar a escrever. O lápis cai da minha mão constantemente, o que me deixa nervoso e a minha letra, um garrancho.

Optara pelo lápis no lugar da caneta. Tenho errado muito. Apagar fica mais fácil. Na verdade, não sei porque escrevo. Talvez vc nem chegue a ler. Talvez se case com ele. Talvez, deva ser assim. Talvez esteja 'escrito nas estrelas', como sua tia dissera quando a vira pela primeira vez.

Minhas pernas já não me obedecem mais. É uma merda. Mas quem precisa de pernas para escrever? Minhas frases, a cada dia, perdem o sentido. Tenho falado mais palavrões do que antes. Isso é velhice ou doença?

Celeste tem sido bastante escorregadia ultimamente. Já não a reconheço. Éramos inseparáveis. Mesmo após a descoberta do Alzheimer, ela estivera comigo, sempre me cercando de cuidados, mas, bastou que ele viesse nos visitar. Então, ela mudara por completo.

Giulia, estou perdendo a capacidade de raciocinar. A capacidade de ver o óbvio. Aquele homem obscuro a atrai e ela, não faz a menor questão de esconder de mim o seu fascínio por ele. Ela enlouquece dentro desse quarto quando eu a peço para ficar e me abraçar como ela sempre o fizera. Eu me apaixonei pela mocinha entusiástica com um sorriso doce e os olhos absolutamente expressivos. Já não há mais nada dessa moça em sua tia. Seu olhar é severo. Suas palavras são afiadas como lâminas. Seus movimentos, bruscos. Filha, eu nunca acreditei nessas coisas sobre as quais ela te ensina. Creio ser um erro incutir em sua cabecinha inocente, crenças em um mundo sobrenatural que deveria ficar longe de vc.

No entanto, vc absorve suas palavras com avidez e, à noite, tem medo de dormir sozinha. Vc tem seus motivos. Por quantas noites vc viera ao nosso quarto, suplicando por ajuda? Por quantas vezes, ela te ordenara a retornar ao quarto ainda que vc lhe dissesse que havia algo de ruim dentro do espelho? Segundo ela, enfrentar seus medos te fortaleceria. Maldade! Por quantas vezes eu mesmo dormira contigo, em seu quarto, por achar injusta a forma como ela te tratava?

Ou ainda trata? Vc precisa me contar se ela ainda te trata desse jeito. Vc precisa parar de proteger a sua tia, escondendo os fatos de mim.

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Talvez não se lembre das mudanças repentinas de humor de sua tia. Espero que não. Espero que tenha se esquecido do quanto ela se transformara quando ele, o Obscuro, entrara em nossas vidas. Se eu não fosse tão cético, poderia jurar que minha doença se agravara, e muito, a partir do dia em que ele se hospedara em nossa casa pretextando estar entediado de suas viagens e com saudades de Celeste, sua prima e do 'Nobre Fernando', como ele mesmo o apelidara.

Patife.

Celeste era uma boa mulher. Em quase quarenta anos de casados, ela jamais me fora infiel. Disso eu tenho certeza. Não nos desgrudávamos, logo, faltava-lhe tempo e espaço, caso ela quisesse me trair. Era fisicamente impossível. No entanto, quando seu primo irlandês surgira em nossas vidas, brechas foram abertas.

Gael era o seu nome. "Belo e generoso", traduzia ele num Português lastimável. Longe das paixões que me machucavam àquela época, hoje, aqui, sozinho, posso admitir que Gael era, de fato, um homem fascinante. Eu era tão comum ao seu lado. Sentia-me tão diminuído diante de sua beleza física, de seus olhos negros e penetrantes, os cabelos escuros, lisos, longos e sempre presos. Gael era alto, esguio, sombrio. Falava pouco. Quase não sorria e, quando o fazia, fazia-o para ela enquanto contava-lhe suas aventuras em seu país de origem, famoso por suas lendas onde fadas, duendes e bruxas levavam ao povo dos vilarejos a má sorte.

Engraçado. Eu não me recordo se Gael surgira em nossas vidas quando ainda éramos jovens ou um pouco antes de sua tia morrer. De qualquer forma, eu não gostava dele. Ele nutria uma indisfarçável preferência por Fernando, deixando vc de lado, como um cachorrinho sem dono. Aquilo me enfurecia. Então, eu a tomava em meus braços enquanto observávamos seu irmão ser venerado com a um deus. Um 'deusinho' tirânico.

Dali por diante, eu passei a te levar comigo para o trabalho. Não confiava naqueles olhos de serpente ou naqueles longos e finos dedos afagando o rosto de Fernando que, até então, de nada suspeitava. Fernando era um bom menino. Um bom "mau" menino. Arteiro, manhoso, manipulador, cruel, dissimulado. Se Isabella estivesse viva, seria o oposto dele. Deus do céu! O que há com a minha cabeça!? Quem nasceu primeiro? Fernando, Isabella ou você?!

Doutor Alexandre acha que essa coisa de escrever o que penso vai me ajudar a não me esquecer. Bobagem! Eu não me lembro do que esqueci e me esqueço do que me lembrei há pouco. Talvez, eu não queira me lembrar porque lembrar dói.

Gael e Fernando tinham muito em comum. Eram obscuros. Meu filho. Meu pequeno Fernando. Era tão lindo quando nascera. Foram dias felizes. Mas ele cresceu. Crescera tão rápido. Isabella viera pouco tempo depois. Nascera e morrera num piscar de olhos. Quando falo disso, algo dói aqui no peito. Será o início de um infarto? Preciso ver como anda o meu coração. E se eu me esquecer?

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Minha doce Isabella,

Hoje ele estivera aqui. Ele veio ao meu quarto e conversou comigo enquanto me barbeava. Falamos sobre futebol, política, finanças e testamento. Acho que ele não gostou do que lhe dissera. Eu vi nos olhos dele. Seus olhos sempre ficam mais escuros quando está nervoso, com raiva ou com aquela vontade inata de machucar. Uma vontade que jamais fora corrigida por sua tia. Devo admitir que vê-lo deslizar a lâmina em meu pescoço me deu 'paura'.

Vc sabia que não foram somente os seus gatos que ele matou? Não. Houve outros incidentes inexplicáveis com alguns cães da vizinhança. 'Inexplicáveis', enfatizava sua tia enquanto beijava o topo da cabeça do pequeno psicopata. Ele me ameaçou, filha. Ele me ordenara a mudar o testamento que te beneficia. Eu fingi não entender, o que, para este velho senil aqui, não é tão difícil assim.

Eu até me divirto com essa coisa de esquecimento!

"Deixei metade do que tenho para Isabella!", de olhos fechados, já deitado em minha cama, eu murmurei sentindo seu hálito de uísque bem próximo ao meu rosto. As mãos pesadas e espalmadas sobre o meu peito. Ouvira sua risada descontraída quando ele repetira num tom desdenhoso: "Para Isabella, papai? Sei. Para Isabella". Seu mau humor se dissipara por achar que eu estava esquecido de que ela havia morrido. Mas, desta vez, eu não me esqueci. Não é engraçado? Eu não me esqueci!

Isabella ainda vive. Ela vive em vc. Ao menos, para mim, ela vive em vc. Em cada sorriso, em cada beijo, em cada carinho que recebo de vc, eu a vejo. Eu a amo. Mas, o meu amor por vc é maior. Talvez não seja uma questão de amor. Acho que a palavra correta seria AFINIDADE. Ela quase não fala comigo. Pobrezinha. Sempre solitária. Não deixe que ela saiba que eu te amo mais, ok?

Giulia morrera como um pássaro caído de uma árvore. Quietinha. Imóvel. Os olhinhos abertos. Eu os fechei assim que chegara ao seu quarto, de madrugada. Eu retirei seu travesseiro do berço. A fronha ainda úmida. O cheirinho gostoso de seu hálito, o talquinho no pescoço. Como ela poderia ter encostado sua boquinha e babado no pano se dormia de barriguinha para cima?

Eu me calei. Eu pensei, pensei, pensei e me calei. De nada mais adiantaria pensar. Porém, chegara a uma silenciosa conclusão hedionda. Ela já havia partido. Celeste já havia chorado por noites seguidas. Celeste sabia de tudo e se calou. Seu sonho era o de ser mãe e só havia restado Fernando que, então, reinava absoluto. Somos todos culpados. Restara Fernando. Um moleque lindo, alegre até o dia em que aquele crápula aparecera em nossas vidas.

Lembrei!

Se Fernando era ainda uma criança, então, sua tia ainda era jovem, assim como Gael e eu. É isso aí! Depois dele, não houve mais ninguém. Sua tia morrera fiel a mim. Eu amava aquela mulher. Ah, como eu a amava!

O arrependimento dela corroera suas entranhas. Não pela traição. Não. Foram poucos dias juntos. Foram poucos e intensos dias e noites de uma medonha aliança entre ambos. Sua tia acreditara no que Gael lhe dissera sobre o futuro incerto de Fernando. Gael, em minha ausência, realizava sessões onde previra que Fernando, ao alcançar a maturidade, definharia caso não encontrasse alguém que o amasse de verdade. Que desse a ele, seu coração.

"Uma moça com dons sobrenaturais, saudável, que o ame o suficiente para lhe dar seu coração", fora o que sua tia, insana e leviana, me dissera antes de se levantar de nossa cama, certa de que eu estaria dormindo. Eu a seguira mergulhado na escuridão em que a casa vivia desde que aquele louco mórbido chegara. Eu a seguira até o quarto de hóspedes onde ele a aguardava. Toquei levemente a maçaneta, a carótida latejando, a visão ficando turva. Um pavor tomara conta de mim. Não deu. Recuei, recostando-me à parede. Afinal, o que eu esperava ver ali senão o amor da minha vida nos braços de outro?

Um silêncio profundo seguido de vozes num tom baixo, entoando uma canção num dialeto que eu desconhecia. A porta se abrira sozinha. Estremeci por inteiro. Reconhecera a voz melodiosa de sua tia misturada a um murmúrio grave e rítmico de Gael, ambos sentados no chão, pernas cruzadas como se estivessem meditando. Os olhos fechados, os troncos pendiam de um lado para o outro. Absolutamente entorpecidos. Lembraram-me dos anos de faculdade onde sua tia e eu dividíamos um baseado. Eu não te contei? Ah! Coisas da juventude. Coisas que eu compartilhei com ela e somente com ela.

Passou.

Lá estava ela, diante de mim, louvando a uma tal de 'Morrigan!'. O ar quase irrespirável, a fumaça do incenso se alastrando pelo cômodo, a luz tênue do abajur de pé num dos cantos do quarto permitia-me vislumbrar vultos. Alienados, não notaram a minha presença até que eu, imobilizado, gritei de pavor diante do que vira sobre o colchão da cama onde Gael costumava se deitar. Fernando, deitado, ao seu lado, ambos inconscientes. Eu, literalmente, pulei sobre sua tia e te alcancei e quando sacudira seu corpo tentando te acordar, percebera que sua mão estava entrelaçada a de Fernando e que vcs respiravam pesadamente. Sob os protestos histéricos de Celeste, eu os retirei daquele quarto cheirando a mofo, enxofre ou coisa parecida.

Pela primeira e única vez em minha vida, eu agredira fisicamente sua tia. Ela mereceu aquele tapa em seu rosto, o que a despertara instantaneamente. Gael permanecera atrás dela com um sorriso macabro no rosto perfeito.

Filho da puta. Quando se diz que se ama alguém a ponto de lhe dar o coração não é literal. Não deveria ser! Por Deus!

Naquela mesma noite, eu o expulsara de minha casa ainda que ele me ameaçasse com suas maldições tolas. O diabo que o carregue! Não sei se ele te tocou, filha. Não sei. Não creio. Que diabos eles pretendiam fazer ali, naquele ritual bizarro?! Até hoje, ouço aquela melodia sinistra ecoando em minha mente.

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Fernando me olha com desconfiança. Como eu ainda consigo perceber isso? Não faço a menor ideia. Eis uma coisa da qual eu gostaria de me esquecer de lembrar: dos olhos do meu filho quando vem me visitar. Ele diz me amar, mas, meu bem, quando se é amado como vc me ama, torna-se fácil separar o joio do trigo.

O que diabos fizeram a vcs naquela noite? Nada físico porque o coração de ambos ainda continua batendo firme e forte! Gael sumira como fumaça. Sua tia voltara a ser o que sempre fora. Doce, dedicada como se tivesse sofrido uma lavagem cerebral, passando a se dedicar a vc com tanto afinco que beirava o fanatismo. Foram dias inteiros de exames e mais exames aos quais ela te submetera alegando que vc se queixava de dores no peito e cansaço. Uma súbita preocupação com a saúde de seu coração a transtornava. Eu me lembro de ter surtado, ao imaginar que Celeste estaria enfeitiçada por aquele canalha tamanho o tormento em que ela vivia. Eu mesmo chegara a te levar ao cardiologista por te achar abatida, sem ânimo nos dias posteriores à saída dele de nossas vidas. Pudera! Colheram tanto sangue de vc! Deveria estar anêmica! No ápice de minha preocupação, chegara a acreditar que Gael havia te dado algo para beber ou coisa parecida que te fizera adoecer. Mas, logo recuperei minha sanidade quando o cardiologista me acalmara afirmando que jamais havia encontrado um coração tão forte quanto o seu. Vc saíra do consultório aos pulos, um pirulito no canto da boca e um sorriso sapeca. Fomos tomar sorvete! "Chocolate com calda de chocolate", era o que invariavelmente pedia ao Giuseppe que se derretia por vc mais do que a própria calda.

Meu bom amigo Giuseppe. Meu melhor amigo, companheiro de uma vida. Vc acredita que, por meses, nos tempos 'das vacas magras', eu não conseguira pagar seu salário e, ainda assim, ele jamais me abandonara?! Se o "Italia Mia" está dando certo é porque ele estivera ao meu lado nos piores momentos.

Fernando não gosta dele e, acredito que seja recíproco. Giuseppe jamais o diria, mas eu sinto. Como gostar de um rapaz que o trata como a um empregado qualquer? Giuseppe é mais do que um irmão, ora bolas! Não dizem que amigos são os irmãos que escolhemos? Pois então!

Isabella, preste atenção! Procure por Giuseppe quando eu me for. Seu irmão não é bom da cabeça. Puxara à mãe. Pobre Celeste. Antes de morrer, ela me pedira perdão. "Perdoar o quê?", eu lhe respondera enquanto ela me sorria como a mocinha entusiástica, quase hippie, estudante de Psicologia com quem eu dividia meu baseado nos intervalos das aulas. Fora Gael que a desvirtuara. Ele nos trouxera o Mal que permanece entre estas paredes, armários, tetos. Celeste não tem limpado os cantos do teto de nosso quarto. Há teias de aranha neles. A doença ainda não afetou a minha visão. Será que vou me esquecer de comer, beber e respirar como Fernando me dissera, e morrer sufocando?

Por que ele se compraz em me fazer sofrer? Afaste-se dele, filha. Encontre um bom homem e se case com ele. More longe daqui. Bem longe! Longe de seu irmão que não tem um bom coração, literalmente. Seu problema não é somente físico. Existem pessoas que têm cardiopatias severas e são boas. Sua tia era uma delas. Semeara o bem antes de Gael trazer as trevas ao nosso lar. Nada justifica o que Fernando já fizera e o que ainda é capaz de fazer.

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Giulia, se eu chegar a vegetar, desligue tudo. Não me deixe preso aos aparelhos. Não me deixe na escuridão. Somente vc poderá fazer isso. Fernando não o fará. Ele, sorrindo, já me avisara de que me deixará preso ao corpo. Filha, me liberta! Vc pode. Vc deve! Sua tia o faria, mas ela partira antes de mim. Não me deixe na Escuridão em cima de uma cama de hospital. Desligue tudo. Saia desta casa e viva. Viva intensamente! Ame intensamente! E, haja o que houver, afaste-se de Fernando. Vc não deve nada a ele ou à sua tia.

Vc não faz parte do pacto.

Toda a Magia tem início e fim. Como sua tia costumava dizer: "Não há mal que perdure". Os laços maléficos que ela e aquele homem sombrio ataram podem ser desatados.

Devem ser!

Se existir uma vida além da morte, eu darei um jeito de te proteger do mal que te prende ao meu filho. Ele não quer se curar, Giulia. Não perca seu tempo com ele. Ele não sabe amar. Desde pequenino, ele não sabia amar. Isabella ainda estaria aqui se ele soubesse amar.

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Não dá mais.

Fernando aqui. Seus olhos escuros.

Procurar Giuseppe. Ele sabe.

Te amo.

Cresça.

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Vá.

Tenho medo.

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Termino de ler, encolhida sobre o piso frio e limpo do quarto de hóspedes onde tudo acontecera. Agarro-me ao diário sentindo um imenso vazio; a vontade de dormir para sempre e nunca mais acordar até que ele retorne da "Terra dos Mortos'. Ele não acreditava na vida após a morte. Dizia que éramos como poeira ao vento.

"Dusty in the wind", ele assobiava essa canção enquanto dirigia. Um olho no trânsito, outro em mim, sentada ao seu lado no banco do passageiro, alegre por ter quem cuidasse de mim e acreditasse que um dia, eu seria uma bailarina de verdade.

As últimas letras estão quase ilegíveis, borradas por lágrimas que não param de cair sobre as páginas. Tio, existe vida após a morte. Existe sim. Se não existisse, porque ela estaria aqui, olhando-me, aflita, como se tivesse acabado de contar sua história para mim?

***

Corro até a área de serviço onde costumava passar suas camisas, seu avental de trabalho. Ligo o ferro de passar. Queimo a ponta do dedo, testando a temperatura, porque ainda choro, sentindo tudo o que ele vivera trancafiado em seu quarto. Suas lembranças são minhas agora. Seu sofrimento é como um punhal abrindo meu peito de ponta à ponta. A superfície lisa e quente do metal desliza sobre as páginas que umedeci. Largo o ferro sobre a tábua. Abraço o caderno de capa dura como se o abraçasse. Caminho lentamente, cruzando o corredor, procurando um sentido para minha vida. "Cresça", ele me pedira...me ordenara. Não consigo deixar de ser a sua criança. Necessito ser a mulher corajosa, forte e destemida. Sair daqui, onde vivi por tanto tempo. Onde não há mais nada que me lembre dos bons momentos, dos risos, da música.

- Gael! - Seu nome escapa num gemido dolorido ao me recordar do homem que meu tio descrevera. Gael, o monstro. Eu ainda era uma criança. Não consigo me lembrar de mais detalhes além das sombras que o cercavam ou das broncas que ouvia de minha tia que parecia outra pessoa ao lado dele. Magia, feitiços, doença, pactos. Não me lembro de nada. Então, não sei se meu tio, de fato, vivenciara tudo aquilo ou se o Alzheimer criara uma realidade à parte para amenizar a dor da traição. Disso sim, eu me lembro. Os olhares, a boca entreaberta, a língua umedecendo os lábios. Sinais que, para uma criança inocente, eram incômodos, nojentos. O modo como minha tia e seu primo se portavam me incomodava absurdamente e, agora, eu conheço o motivo. Agora, eu posso afirmar o que antes era somente suposição.

Talvez, por isso, ela chore tanto. Talvez, por isso, ela não encontre a paz de que tanto necessita. Talvez, por isso, os vermes...

- Ele a perdoou. - Cerro os olhos e sussurro, deitada sobre o colchão forrado com lençol e fronha em algodão, limpos. Não a quero por perto. Quero digerir o que acabo de ler. Quero entender o sofrimento do meu tio. Quero entender o desvario de minha tia. Entender para não julgar, não condenar. Eu ainda a amo, apesar de sentir sua hostilidade. - Vai embora. - Digo, entre soluços, agarrada ao travesseiro do homem que trocara o meu nome pelo de sua filha, enquanto escrevia, torturado, confuso e sozinho. Quando ele começou a perder a consciência? Por que nunca me confessara o quanto sofria? Por que minha tia não sai do quarto e volta à escuridão de onde não deveria ter saído? - Não me toca! - Rosno assim que ela se ergue da poltrona, as mãos descarnadas a centímetros do meu rosto. - Some! - Cuspo, usando um dos muitos truques que ela me ensinara. De um ponto no meio de minhas sobrancelhas, imagino uma chama violácea que se espalha, cobrindo meu corpo como labaredas, irradiando-se pelo quarto, teto, chão. Expulsando-a pela porta que se tranca por dentro, impedindo-a de retornar e me atormentar com seu sofrimento. - Chega! - Urro contra o travesseiro onde ele deitara sua cabeça cansada nos últimos dias. - Eu não quero continuar sem vc. Não vou. Não dá. - Choro, bocejando. Bocejo, choramingando, exausta, perdida. Sozinha, inspirando profundamente, tento encontrar vestígios do cheiro do meu tio. O amaciante com perfume de lavanda invade minhas narinas e quando estou prestes a dormir, os olhos pesados de sono, a dor se alastra injetando adrenalina em minhas veias. Diabos. Odeio essa velha sensação, indício de que algo está por vir.

Meus músculos se enrijecem num repente, os pés enrodilhados, os olhos se reviram, então, surgem as imagens difusas, confusas. As vozes, os flashes de bocas, do teto, a cortina esvoaçante da janela logo acima de meus olhos arregalados. As mãos firmes em meu pescoço. O ar me falta. Ouço o ruído de minha respiração fraca, seguido de tosse. O coração dispara. Os batimentos chegam ao limite para, logo em seguida, cessarem, de súbito. Exalo um suspiro e, num último esforço, encaro meu agressor. Reconheço os olhos que me observam sem emoção.

Puxo o ar pela boca com o desespero de um náufrago de volta à superfície. Arremesso com força o travesseiro contra o abajur que tomba, ruidosamente, no chão onde piso, afastando-me da cama. Uma onda de ódio me consome. Meus olhos se enchem d'água.

- Deus. - Digo enquanto deixo o ar sair dos meus pulmões. Ouço meu coração bater, então, certifico-me de que voltara ao meu corpo. Comprimo os olhos. Duas lágrimas escorrem por meu rosto contraído. Inspiro e expiro de boca aberta, as costas contra a porta fechada, as mãos trêmulas enfurnadas em meu cabelo em desalinho. Abro os olhos, desorientada. Olho do teto ao colchão. Do colchão ao travesseiro caído no canto do cômodo escuro. Junto o que acabo de ver e sentir. Os últimos momentos de sua vida. "A vida de um homem bom não merece terminar assim", penso enquanto seco o rosto com a barra do vestido. Ergo os olhos irados, o queixo O afronta quando pergunto com a voz baixa, cheia de ódio ao "Crucificado", preso à parede acima da cabeceira da cama de meu tio. - Por que deixou que isso acontecesse a ele? Responde. - Levo ao mão ao peito que estremece enquanto aguardo por Sua resposta. Volto aos seis anos quando encontrara o homem que mudaria, para sempre, o curso de minha vida. Na igreja, eu encarava o mesmo Cristo, sofrido, solitário. "Por que não tiram Ele dali!?", aos gritos, apontava o indicador à imagem gigantesca por detrás da mesa em mármore. Diante do altar, o padre me encarava entre a desconfiança e a piedade. "Isso dói. Tira Ele dali! Isso dói!" - Não acredito em Você. - Digo, baixando a cabeça, o cabelo cobrindo o rosto, a alma amargurada. - Se Você existisse, não teria deixado que ele morresse assim. - Sem forças nas pernas, vou escorregando apoiada à porta, até o chão, onde permaneço. As pernas flexionadas, os ombros curvados, um olhar vago, a cabeça doendo. - Talvez eu não tenha visto. - Lanço um olhar esperançoso ao filho do Criador que se mantem calado. - Nem sempre eu acerto. Eu não sou perfeita. Eu não sou como Você. Eu não posso ter visto aquilo. É feio demais. É duro demais. - Dou uma pausa, exalando um suspiro. - Me diz que eu tô errada. - Suplico. - Me diz que ele não morreu dessa forma. Me diz que aquilo não foi a última coisa que ele viu antes de morrer! - Ele não me responde, então, eu grito. - ME DIZ! FALA ALGUMA COISA! - Estreito os olhos e, de súbito, a raiva, o desespero, a angústia, a dor e o horror erguem o meu braço. Na mão, aperto um pé do meu chinelo de dedos com abas flexíveis que voa ligeiro contra a cruz. Ela desaba sobre o lençol feito um palitinho de picolé. Ouço o som estridente de minha gargalhada que ecoa entre as paredes, chegando aos ouvidos da morta logo atrás da porta. Ela sabe do que acontecera. Ela presenciara a tudo sem nada fazer. Sem mover a porra de um de seus dedos podres para ajudar ao companheiro de uma vida inteira. - Miserável. - Resmungo, pressionando minha bochecha à madeira. Abro um sorriso macabro, pois consigo ouvir seus soluços de arrependimento, a voz chorosa, o farfalhar de suas vestes imundas. Ainda sorrindo, colérica, xingo entredentes. - Traidora vagabunda. - Inspiro, prendendo o ar nos pulmões. Fecho os olhos. Cravo as unhas na pele das minhas coxas. Solto o ar pela boca e, pausadamente, falo contra a porta, esperando que ela sofra por todo mal que cometera. - Tia, como deixou que seu filho fizesse isso?

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 31/08/2020
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