V

O estado de Leonardo se agrava e ele é imediatamente conduzido ao C.T.I., para o desespero de Jacira, que deixa Márcia falando sozinha e desce à recepção à procura de Ricardo, mas não o encontra.
 
_Cadê aquele moleque? – olha para todos os lados. _ E não é que o bicho sumiu mesmo! Hum! E logo agora, Suzicreide? Como é duro ser empregada de uma família tão fora do prumo como essa. Acho que vou é voltar para o interior, tô cansada de tentar remendar aquilo que já não tem mais conserto.
 
Mesmo contrariada, retoma a busca, pede ajuda a pacientes e funcionários, quer encontrar o rapaz e lhe repassar as últimas informações sobre o estado clínico de seu pai.
 
_Onde está meu sobrinho? – aproxima-se Márcia, recomposta.
 
_A senhora fique longe de mim, senão eu grito!- ameaça, afastando-se.
 
_Ei, criada, o que se passa? Marque uma consulta com minha secretária, precisa de orientação e medicamentos.
 
_Com a senhora? NUNCA! No mínimo vai querer me matar, porque sei de tudo o que fez.
 
_E o que eu fiz? – dissimula com um sarcasmo que beira à surrealidade. _ Responda!
 
_Bem, bem, a senhora... ah, sei lá, mas que fez, fez! Eu sei! Eu sinto! E ninguém há de me tirar isso da cabeça.
 
_Suzicreide... - provoca-a. 
 
_Este não é o meu nome, já lhe disse!
 
_Que seja! Precisa de ajuda! Eu estava apenas verificando os sinais vitais de meu cunhado, checando a medicação, porque a desconfiança é um dos meus maiores males.
 
_Meu também!
 
_Não entendi!
 
_A desconfiança também é um dos meus maiores males.
 
Márcia faz expressão de poucos amigos, mas tenta dar a volta por cima.
 
_ Sabe, querida, você está vendo e ouvindo coisas com uma certeza que impressiona. Sintomas clássicos da esquizofrenia.
 
_Está me chamando de louca? Louca é a senhora! Sua... sua...lagartixa de salto alto. Agora saia daqui antes que... que...
 
A psiquiatra se aproxima a ponto dela sentir o seu hálito carregado.
 
_Antes que...? Diga! Antes que...? Já viu onde estamos? Aqui é a “minha terra”, a “minha praia”, como diria meu sobrinho, onde tudo o que eu disser será considerado como última sentença, sem direito a recursos protelatórios, se é que me entende!
 
_Como assim? – a mulher não acompanha o raciocínio.
 
_AQUI É UM HOSPITAL, BASTA EU ESPALHAR AOS QUATRO VENTOS QUE ME AMEAÇOU PARA QUE SEJA RECOLHIDA A UMA CAMISA DE FORÇA E JOGADA AO SEU PIOR PESADELO –  dá o xeque-mate.
 
_A senhora não seria capaz...eu...eu...
 
_Quer ver?!!
 
_É a senhora que está à procura de seu Ricardo Médici? – pergunta uma funcionária a Jacira, em cujos olhos há marcas sobressalentes da intimidação que sofrera. _ É a senhora? – insiste, percebendo que ela não reagia.
 
_Sim! É ela mesma, querida! – responde Márcia no seu lugar. _ Pois onde ele está? Sou a tia dele.
 
_Foi para a casa, segundo recado que deixou.
 
_Quer uma carona, Suzicrei...digo, Jacira?
 
_Vou de ônibus! Não se preocupe!
 
_Gosto de pessoas assim, que conhecem o seu lugar! – diz ao pôr os óculos de sol._ Qualquer novidade sobre o estado de saúde de Leonardo, me avise, estou uma pilha de preocupação.
 
E se vai.
 
Entrando na casa, Ricardo decide comer algo, está muito ansioso, apesar de ainda não estar inteirado das últimas notícias sobre o estado de seu pai. Para chegar à cozinha é preciso passar pela sala de estar e pelo salão de música. Cabisbaixo, atravessa o grande corredor que separa o hall de entrada da sala de estar. Diante da porta que dá acesso ao cômodo em que Leonardo enfartara, ele para... Uma estranha sensação o invade. É como se pudesse ver o pai gritando por ele. Tudo é tão real que arrepia. Coça a cabeça como se não soubesse o que fazer para que aquelas imagens fossem enterradas de vez no baú no tempo, de onde jamais deveriam ter saltado. Tenta avançar, mas não consegue, está estático, preso a pensamentos dolorosos.

Com os olhos fechados e as mãos cerradas, pede a si mesmo que se acalme, tudo aquilo não é mais real; deixara de ser há algumas horas e não mais voltariam à vida se dependesse dele.

Na garagem, Marcos analisa os furos de balas na lataria do carro usado pelo rapaz na noite passada. Tudo leva a crer que só não morreu por sorte. Havia marcas de tiros nas portas do passageiro e do motorista; alguns palmos à frente, teria sido fatal.

_ Meu deus, o que terá seu Ricardo aprontado para receber um presente desses?- indaga, horrorizado.

Dirige-se ao casarão depois de fechar a garagem. Neste exato momento, Ricardo rompe as amarras da agonia e entra na sala.
 
_Então chegou? – pergunta uma voz fina, contida de um ódio letal, ao perceber a presença do rapaz.


_Anna?! O que faz aqui? – pergunta, surpreso, focando-se na garota, que está entre o sofá e uma mesa de canto, no lado oposto à entrada, de costas para ele, apreciando uma tela de Manolo Safont, o mago espanhol da pintura cerâmica.

Com um cigarro entre os dedos e olhos contornados de um negro que destaca o verde da íris, ela responde:
 
_ Adoro “Nebulosa”. Safont sempre foi um de meus artistas preferidos!
 
Dá mais um passo em direção ao quadro.

_Este provável buraco cósmico, de um vermelho que se mescla a um marrom quase cinza, assim como deve ser o fosso que sugará toda a essência maligna de uma geração, me instiga... Se pudesse, ficaria aqui o dia todo a apreciá-lo.
 
_Você não está aqui para falar de arte, certo?

_De fato! Por que fez isso comigo? – exige, virando-se para ele. _ Sempre fui sua criada sexual e jamais me neguei a um capricho seu. Bastava estalar os dedos para que eu, feito uma cadelinha, corresse para seus braços e lhe entregasse todos os meus segredos e devaneios. Mas, você nunca me valorizou, não é? Por isso resolveu brincar com minha imagem, vendendo-a como se fosse a de uma meretriz. Se você gosta mesmo de homens, o problema é seu...

_Do que você está falando? Que história é essa de que eu gosto de homens?- interrompe, aterrorizado, aproximando-se da moça, com a imagem do Desbravador lhe saltando aos olhos.

_...mas dizer que a minha carne é insossa e que está disponível apenas a quem pode pagar, isso é demais! – continua Anna, como se não tivesse ouvido o questionamento de Ricardo.
_ Que história é essa? Por acaso bebeu, sua ordinária? – brada o garoto, pegando-a pelo braço, num aparente desequilíbrio.

_Você não sabe mesmo, senhor Ricardo Médici? – desafia a mulher, soltando-se.

_Não, eu não sei! Pois fale, o que você quer dizer com esse papo sem pé nem cabeça?


A garota emudece.

_FALE! EU EXIJO...

_VOCE EXIGE O QUÊ? – interrompe-o, exaltada._ QUEM É VOCÊ PARA EXIGIR ALGUMA COISA? DEPOIS DE TUDO QUE ME FEZ AINDA É CAPAZ DE SE MANTER NESTA ARROGÂNCIA, COMO SE FOSSE O DONO DO MUNDO? VOCÊ NÃO PASSA DE UM NADA, RICARDO! DE UM NADA!

_Quem você pensa que é para falar assim comigo? Sua...

_SUA... SUA... O QUÊ? VEADO DE UM FIGA! – ofende-o sem se atentar às consequências.

_EU NÃO SOU VEADO! NÃO SOU! – enlouquece, agarrando-a pelo pescoço._ EU NÃO SOU VEADO! NÃO SOU!

A fúria do rapaz é alimentada pelas palavras selvagens daquela anciã, cujo filho, homossexual, era visto como uma aberração da natureza. Por instantes, é como se ele fosse o filho morto e Anna a velha, numa troca de papéis fantástica, engendrada pelo fato de ter sua identidade vasculhada, seus mistérios revelados e suas fraquezas, ainda que não totalmente confirmadas, manipuladas pelas línguas maldosas da sociedade.

_Meu Deus, o que está acontecendo aqui, seu Ricardo?- inquire o horrorizado motorista, ao ser atraído à sala pela gritaria. _Solte-a senão o senhor vai matá-la.

Percebendo que ele não a libertaria, Marcos tenta puxá-lo pelos braços; não consegue. O filho do patrão é bem mais alto e muito mais forte.

_Solte-a, seu Ricardo, pelo amor de Deus!- implora o empregado, tentando afastá-lo da moça, cujo rosto está roxeado.


Anna se contorce, enquanto seus olhos lacrimejam. Numa tentativa desesperada para libertá-la, o chofer o golpeia nas costas com um pequeno vaso de cristal, retirado de um aparador, que se parte. Ricardo grita de dor e a solta.

_Vá daqui, dona! – pede o serviçal, encharcado de suor.

_NÃO SE META! POBRE COMO VOCÊ EU TENHO NOJO! – humilha-o a ensandecida criatura, enquanto acaricia o pescoço. _E QUANTO A VOCÊ, RICARDO, NUNCA MAIS ESCARNEÇA DE MEU NOME, NUNCA MAIS DESPREZE MINHA INGENUIDADE, NUNCA MAIS SE DIRIJA A MIM E NUNCA MAIS CRUZE O MEU CAMINHO, PORQUE SE O FIZER, JURO QUE O MATO!

_Pare, moça! Vá daqui antes que ele...


_ANTES QUE ELE O QUÊ, SEU PARALÍTICO? – menospreza após correr os olhos pela perna do rapaz.
 
 _A senhora é louca!- conclui Marcos.

_Louco é o senhor de andar com esse sujeito, se ele resolve atacá-lo com seus beijos estonteantes e sua prosa de deixar mole qualquer corpo, coitado!...Aliás – volta-se para Ricardo –, qual sua preferência? A de homem ou a de mulherzinha da relação? – dispara a garota para surpresa do empregado, que não se contendo, olha para o jovem num misto de repúdio e descrença.

Ricardo mantém-na sob a mira. Está fora de si e é bem capaz de matar.

_Vá daqui, moça! - implora o serviçal, percebendo o monstro que se criava no âmago do rapaz.


_Eu irei, mas antes, vou reavivar a memória desse gay enrustido...

Ao ouvir a ofensa, Ricardo parte para estrangulá-la, sendo impedido pelo motorista, que se põe entre os dois.

_SE DISSER MAIS UMA VEZ QUE SOU GAY, EU ACABO COM SUA VIDA, OUVIU? – ameaça o rapaz, com a saliva descendo pelos cantos da boca.

_ E não é...? – ironiza, jogando-lhe algumas folhas._ Veja você mesmo! Você acabou com a minha vida e isso não ficará assim. Eu juro! – promete, agora em prantos, enquanto é despejada da casa pelo chofer, que vê no momento, uma rara oportunidade de se livrar da garota.


O estopim de toda essa violência, as tais folhas, era uma sinopse bem elaborada de como o rapaz amava a garota – fotos coloridas de ambos praticando sexo, inclusive em situações inusitadas, ilustravam o documento - e procurava a companhia de homossexuais altas horas da noite, horário em que saía do armário e transformava-se num Ricardo desconhecido pela sociedade paulistana, acostumada a tratá-lo como o “terror das ninfetas de Alphaville”.

Uma segunda página trazia a foto ampliada do rapaz nas imediações da Rua Augusta, acompanhado de dois homossexuais, na noite em que marcara de se encontrar com o Desbravador.


Na página seguinte, o tiro de misericórdia:
 
                 “Sou rico, onipotente, dono do Céu e da Terra,
               do pecado e da virtude, do prazer e do ópio.

                Tenho a mulher que quero, toda virgem ou
                consumida que o dinheiro pode me dar...

                Tenho Anna, a infeliz que toda São Paulo deseja,
                 mas que pouquíssimos bolsos podem bancar.


      Uma mulher bonita, apesar de insossa; e transar com ela é como vasculhar as entranhas de um cadáver; talvez por eu ser bicha, gostar de garotos e por eles fazer qualquer loucura, como enfrentar os perigos da noite para agarrar o primeiro que passar e me fazer experimentar as sensações mais extravagantes.

              E assim vivo minha vida, sendo o terror das ninfetas para            alguns e o cobiçado bofe da desvairada pauliceia gay para                   outros...Gostou? Não tô nem aí, bando de hipócritas!  ”


                                                                            Ricardo Médici

Uma quarta página trazia os endereços dos e-mails que haviam recebido este dossiê. Passavam dos milhares. A vida dos Médici jamais seria a mesma depois desse escândalo!

_Foi ele... O Desbravador de Identidades!!! FOI ELE!!! Aquele desgraçado me paga! Juro, vou caçá-lo até o fim de meus dias!!! – promete, aos berros, rasgando as páginas em pedacinhos.

_Seu Ricardo... GAY? Quem diria, mais um nesta família! Ninguém vai acreditar quando eu contar! – comenta Marcos, ao ver o carro da garota cruzar o portão de saída.