XV
                                                
_Acalme-se! – pede a mulher, preocupada com o estado do homem; bastava uma simples crise emocional para que fosse vítima de outro enfarto, desta vez, certamente fatal.
 
_Quero sair daqui! Preciso ver meu filho... Onde ele está?
 
_O que acontece? – pergunta um médico ao se aproximar.
 
_Quero meu filho!!! Quero meu filho!!! – implora o homem, incontido.
 
_Senhor Leonardo, tenha calma! Se continuar agitado deste jeito, poderá sofrer outro ataque. Vamos evitar mais dor, não é?
 
_ QUERO MEU FILHO!!!
 
_ Escute, só poderei ajudá-lo se fizer o que peço...entende?
 
O médico faz sinal para que a enfermeira lhe ministre um sedativo.
 
_Onde estou? – olha para todos os cantos.
 
_ No hospital. O senhor foi vítima de um enfarto.
 
_Preciso sair daqui, meu filho corre perigo – lembra-se do telefonema-, tenho de protegê-lo. Me ajude a levantar. Já estou bem!
 
O sedativo faz efeito, aos poucos ele sente o corpo relaxar e adormece.
 
_Ainda bem que foi rápido – comenta o médico.
 
_E agora, doutor, o que faremos?
 
_Ele está um pouco agitado, vamos deixá-lo aqui mais um pouco, se à noite estiver melhor, o transferiremos para o apartamento, certo?
 
_Com certeza! – volta-se para Gabriel, no outro biombo. _ E este? Ainda tem alguma chance?
 
_A natureza é surpreendente, quando pensamos que as últimas folhas de um galho estão desatando, eis que um milagre acontece, e o que era frágil se torna resistente.
 
_Quer dizer que ele ainda tem alguma salvação?
 
_Não desisto de nenhum de meus pacientes – diz, verificando seus batimentos. _ Espero vê-lo em breve, meu rapaz!
 
_Com certeza! – responde Ricardo, bastante abatido, diante da urna funerária de Anna. _ O que o senhor fez por mim não tem preço! - diz ao senhor que havia lhe estendido as mãos alguns momentos antes, na escadaria.
 
_ Não se importe com comentários maldosos, levante a cabeça e siga em frente, nada acontece por acaso, para tudo o que está vivendo há uma explicação.
 
_Não me conformo em perder Anna e o nosso filho... Como pude ser tão ordinário – lembra-se da briga na mansão.
 
_Ordinário por quê? Como poderia saber que ela estava grávida? Nem se fosse a mãe Dinah.
 
Ao lado do corpo da garota estava também a urna funerária do gato, velado em lágrimas por sua dona.
 
_Como isso pôde acontecer, meu bebê? – sua dor é profunda. _Como eu o amava! E agora o que será de mim? Responda-me, amor da minha vida – volta-se para o esposo-, o que será de mim sem o Ernesto? Ernesto! Minha paixão! Por que se foi tão cedo? Por que, meu anjinho?
 
_ Que sandice! A mulher está agarrada ao caixãozinho do gato; sequer se dirigiu ao da filha. – pontua uma grã-fina a sua empregada. _Precisava era de uma camisa de força! Não suporto esta nossa casta! O que tem de egoísta, tem de hipócrita.
 
_Não fale assim, senhora! Credo!
 
_Às vezes gostaria de estar no seu lugar, Cremilda!
 
_A senhora não sabe o que passo...São tantas privações!
 
_ Tenho certeza de que, na hora da morte, sejam mais humanos, velam seus mortos com todas as honras que merecem... Espetáculos circenses como este, simplesmente inexistem, ou estaria errada?
 
_Não mesmo! As pessoas valem muito para nós, assim como as lembranças que elas nos deixam. Pelo menos para isso, ser pobre vale a pena.
 
_Acalme-se, meu docinho, Ernesto está no céu, à direita de Deus, exibindo seus belos pelos, seus olhos grandes e meigos, sua alegria de sempre.
 
_De quem estão falando? – indaga um idoso a uma jovem, que serve vinho aos presentes.
 
_Do gato!
 
_Verdade? Mas o velório não é da moça acidentada?
 
_Deveria ! – responde, virando-os olhos.
 
_E ainda dizem que o gagá aqui sou seu! Valha-me Deus! O mundo está perdido!
 
_ Vamos para os camarins, você precisa descansar um pouco, logo será o enterro de nosso “filhinho” – diz Giacomo a Lícia.
 
_Você encomendou a melhor sepultura para ele, não é?
 
_Sim! Toda ornamentada com flores vistosas e uma lápide com detalhes em ouro.
 
_Oh my good!!! Como dói o meu coração! Não vou aguentar...ai...ai...
   
_Alguém me ajude, per favore! – pede, agoniado, mesclando os idiomas.
 
Todos o ignoram. Só lhe resta fazer um movimento brusco e pegá-la no colo.
 
_Coitada! – apieda-se uma senhora de meia-idade.
 
_Coitada? Deveria morrer também! Pessoas como ela, aliás, como todos eles, não fariam falta a este mundo tão surreal – comenta um magnata, com a cabeça empinada, tragando um charuto. _ Como pode derramar-se em lágrimas por um “bichano”, quando tem ao lado o corpo da filha carbonizado? É muita loucura para um dia só! Isso tá parecendo o Programa do Chacrinha, só faltam as chacretes, aquelas bailarinas com parte dos glúteos à mostra...
 
_ ... e o próprio Chacrinha, que faleceu no final da década de 80.
 
_ Aí que se engana, para ele temos uma versão chinesa, melhor, italiana, talvez um pouquinho melhor, ou não é assim que se porta o patriarca desta família? – resmunga.
 
O celular de Ricardo toca.
 
_Como? Sim, Marcos! O que tem Jacira? – o rapaz se segura. _ Ela...ela o quê? Como assim? Por que faz isso? Não! Não deixe!
 
_E alguém consegue impedir aquela teimosa, patrãozinho? Daqui a pouco o ônibus sairá e o senhor a perderá de vez. Precisa fazer alguma coisa!
 
_Mas por que isso? – está tão confuso que não se lembra do ocorrido no hospital.
 
_E o senhor ainda pergunta? Chamou a mulher de espírito ruim. Se eu fosse ela, não ficaria só nisso, entraria na justiça, cobrando danos morais – atiça o chofer, para a descrença do jovem, que se recolhe a um acento.
 
_Você tem de impedi-la!!!
 
_EEEEEU??? Tô fora! De tanto insistir, acabei levantando sei lá quantos tabefes na cabeça.
 
_MEU DEUS! – arfa com dificuldade. _ E como faremos??? Estou sem carro!
 
_Vixi! E o da sua tia?
 
Ricardo não responde.
 
_Não precisa dizer mais nada, já entendi tudo! O senhor está só! Como é ruim estar nessa situação, não é? Se tivesse ficado do lado dela, não estaria passando por isso, mas preferiu ouvir aquela...aquela...aquela dona! Mas dê um jeito aí, pegue um táxi, ou se quiser, venha de buzão mesmo- ironiza, quem sabe dá tempo de chegar aqui e impedir que Jacira faça essa bobagem.
 
_Venha me buscar! – determina.
 
_Impossível, patrãozinho, estou do outro lado, com o trânsito parado; até eu chegar aí, ela já estará com um pé na Índia. Corra! Corra, moleque, quer dizer, seu Ricardo, antes que não dê mais tempo.
 
Sem pensar duas vezes, ele cruza o saguão, chega à entrada, desce as escadarias e procura por ajuda. Passa um táxi. Não para. Passa outro. Também não.E mais outro... Todos estão com clientes. Atormentado, cobre os olhos com as mãos e chora. Ao reabri-los, o homem que o ajudara há pouco, está estacado à sua frente, num desses carros importados.
 
_Entre! Vou levá-lo!
 
_Não! O senhor já fez muito por mim. Só por ter me ouvido naquelas horas de angústias, já sou grato!
 
_Entre aí e deixe de história. Vou ajudá-lo. Sei o que está passando e não lhe virarei as costas, senhor Médici. Venha! Não posso ficar parado aqui por muito tempo.
 
Entra ressabiado, acompanhado de longe por Benício.
 
_Para onde vai?
 
_Rodoviária da Barra Funda.
 
_Vai viajar? Não seria melhor ir de avião?
 
O rapaz não responde.
 
_Admiro sua coragem, senhor Médici.
 
Ricardo estranha as palavras do homem.
 
_Do que o senhor está falando?
 
_Sabe, assumir-se para a sociedade não é fácil, mesmo no início do novo milênio, quando as cabeças deveriam estar mais abertas à modernidade.
 
Associa as palavras ao e-mail do Desbravador.
 
_Eu não mandei aquilo, se é o que quer saber.
 
_Não precisa mentir para mim! Queria ter sua audácia! – o homem muda a face, deixando transparecer um sorriso malicioso.
 
_Pare o carro! – pede, irando-se.
 
_Ainda não chegamos, faltam algumas quadras...- argumenta, colocando a mão direita sobre a perna dele.
 
_PARE O CARRO! – determina, repelindo-o.

_Calma, gatinho! Mais alguns minutinhos e...
 
_ JÁ DISSE, PARE O CARRO, ANTES QUE EU COMETA UM CRIME!
 
_Não quer cometer este suposto “crime” na cama de um motel? Que tal nos curtirmos ? Sei fazer uma massagem como ninguém... Vamos! Eu pago! E se quiser, o mais caro da cidade...
 
_ PARE O CARRO!!! – ordena, com os olhos fulminando de ódio.
 
_ Desde a hora que o vi lá naquela escadaria, senti um frescor varrer minhas veias, como se eu tivesse voltado no tempo...
 
_PARE O CAARRO!!! – avança sobre o volante, surpreendo o homem, que para não acertar um pedestre, sobe na calçada. Abre a porta, antes de partir, dispara:
 
_ Dá próxima vez, avalie melhor suas escolhas. Não caia no conteúdo de um e-mail qualquer! Como eu lhe disse, não sou gay, não mandei mensagem alguma a ninguém, e mesmo se a tivesse mandado, você não estaria no meu rol de opções, entendeu? Agora caia fora antes que eu lhe arrebente, bicha velha.
 
O homem dá ré e desaparece pelas ruas movimentadas da metrópole. Ricardo olha para todos os cantos, o tempo corre, quando avista uma placa indicativa. A rodoviária da Barra Funda estava a quase um quilômetro. Sem a quem pedir ajuda, decide correr. E corre. Corre. Corre até ficar sem fôlego. E quando pensa em desistir, arranja forças de dentro do coração e volta a correr, precisa chegar a tempo de impedir que Jacira deixe sua vida. A mulher que mais o amou depois de sua mãe se esvaía por suas mãos, assim como as folhas carregadas pela ventania. E precisava corrigir o seu erro. Ah, isso precisava! Nem que lhe custasse as últimas palavras em vida.
 
Depois de muitos minutos correndo, chega à Barra Funda, sobe a rampa, passa pelo corredor que dá acesso ao metrô e chega aos guichês. Olha um a um, precisa encontrar a empresa que faz viagem a Vila dos Princípios, terra natal da mulher. E quando encontra, solta um tímido sorriso. O ônibus partiria em alguns minutos. Corre, esbarra num jovem com discman, numa senhora com cachorro no colo, numa garota com uma bola de sorvete, num menino comendo um biscoito. Ao descer a escadaria de acesso à plataforma, tropeça, rola dois ou três degraus, parando ao atingir o corrimão. Com a ajuda de um senhor se levanta e continua a correr. Ao chegar ao portão de embarque, o desespero. O ônibus havia partido. E agora? O que seria dele sem sua segunda mãe? Se tivesse ouvido o coração, jamais teria feito aquilo! Que arrependimento! Seu mundo havia desmoronado.
 
Faz o caminho de volta. Desanimado, senta-se em um banco à frente de uma cantina, abaixa a cabeça e chora. Chora. Chora como no dia em que perdeu sua mãe biológica.
 
Quando ia se levantar, uma mão pousa em seu ombro direito; ao virar-se...