XXIX

Os corpos de Leonardo e Márcia Médici são velados no Salão Nobre da Assembleia Legislativa de São Paulo, sob os olhares atentos de uma sociedade traumatizada. O local é restrito aos amigos e familiares – alguns poucos, que vieram a São Paulo para prestarem solidariedade ao jovem Ricardo, a verdadeira vítima de toda essa desgraça.

Políticos rivais deixam de lado as picuinhas e acenam com a possibilidade de exigirem do Governador a exoneração do Secretário da Segurança Pública; sob suas mãos, a violência na cidade e no Estado atingiu índices alarmantes, levando consigo, vidas de pessoas inocentes, que só faziam o bem à sociedade. Perder Leonardo, o grande empresário do ramo petroquímico, para um bandidinho da favela Pantanal, considerado morto pelos arquivos oficiais, já era terrível. Perder Márcia, a mulher que encantava a todos com suas vestes delicadas, sua pose peculiar e sua bondade contagiante, que atendia graciosamente muitos dos pacientes que ora a procuraram no desespero de uma vida tribulada, inaceitável.

Há quem dissesse que Leonardo era o pai dos pobres, o “Getúlio” do novo século, porque o que mais gostava de fazer era tratar os funcionários de igual para igual, dando-lhes a oportunidade de crescerem profissionalmente, alcançando os próprios sonhos. Márcia nem se fale. Para muitos, era a verdadeira Madre Tereza de Calcutá, mas sem o sari branco com bordas azuis. Como amava os mais humildes. Todo mês fazia questão de doar dezenas de milhares de reais aos hospitais da cidade por meio de festas beneficentes e leilões de caridade, todos realizados com muito bom gosto, como foco nos mais necessitados. São Paulo, certamente, perdia duas de suas maiores estrelas e numa só tacada, para o desespero de muitos, principalmente dos amigos falidos, que viviam das esmolas distribuídas. E Giacomo era um deles. Homem da maior confiança de Leonardo, foi ele que conseguiu o acesso ao Carandiru; que escondeu os casos dele da mídia e da boca mais azeda dos burgueses; que localizou a morada de Gabriel, para a desgraça do homem, que lá encontrou o seu fim.

Sob o caixão do amigo ele chorava, sendo consolado pelo filho, já que a mãe, depois da última consulta com a psiquiatra, estava muito estranha, falando com as esculturas da casa, dormindo no chão como uma indigente, bebendo água dos vasos. Às vezes sorria, chorava, coçava a cabeça, rangia os dentes, cuspia nas empregadas; alguns diziam que ela estava possuída, mas o marido, ao invés de procurar ajuda profissional, preferiu dobrar a dose da medicação, sem o consentimento da médica, que agora jaz naquele belo caixão feito de madeira fina de mogno . Achava, em sua nada ingênua imaginação, que ela estava passando por um período de ajuste, chamado de janela, que se compreende entre o primeiro comprimido àquele que efetivamente fará efeito.

Ricardo, sem derramar uma lágrima, está sentado à direita do pai, com os pensamentos na empregada, que era a única que merecia o seu afeto.

_Olá, meu amigo! - toca-lhe no ombro o jovem Benício.

_ Você aqui também? Depois de tudo que passamos?

_Vim em paz!

_Que seja então!

_Meus sentimentos mais profundos! Deve estar doendo muito, não é? Senti a mesma coisa com a perda de Anna. Foi uma como facada no peito, perdi o ar e o chão, tudo ao mesmo tempo. E por pouco também não perdi a razão. Disse-lhe coisas muito fortes! Me desculpe!

_Não precisa disso, já o desculpei! No calor das emoções falamos sem pensar; quando nos damos conta, bate o arrependimento, é justamente nesta hora que a dor parece aumentar, porque não temos para onde fugir.

_Você tem razão!

_Sofre também por Ernesto? – destila o veneno.

O rapaz solta uma gargalhada, contendo-se em seguida, após os olhares de censura dos que estavam mais próximos.

_Sofri muito! – diz, com o riso preso à boca. _ Não sabe o quanto!

_Ainda bem que há alguém normal na sua família.

_Pois é! – senta-se ao lado dele. _ Queria lhe dizer uma coisa...

_Então fale!

_Quando o vi entrar naquele carro, com aquele sujeito, estranhei, pensei que estivesse mesmo “vestindo outra pele”...

_Como assim?

_Você não o reconheceu?

Responde que não.

_Ele é conhecido por assediar jovens de todas as idades; tem mais de quarenta processos nas costas e está foragido.

_Nossa! Jamais imaginaria isso -estranha. _Então é um lobo em pele de cordeiro? Mas comigo não teve chance!

_Pois é! Mas depois que seu jardineiro contou à faxineira de minha casa sobre o que fez para evitar que Jacira partisse, senti-me mal pelo péssimo julgamento. Desculpe mais uma vez! No fundo, Anna acertou ao se apaixonar você, é um grande rapaz, só agora percebo. Na vida, tragédias são necessárias, porque são a partir delas que conseguimos encontrar sentido nos menores gestos, aqueles que passariam despercebidos se não recebêssemos um puxão de orelha do destino.

_Que horas são? – pergunta o rapaz, dando-se conta de que a noite, avançada, dava sinais de esgotamento.

_Quase cinco da manhã.

_Preciso ir!- diz, levantando-se apressado.

_Aonde vai, Ricardo? – Benício o segura pelo braço. _Às oito seu pai será cremado e às nove sua tia será enterrada. Você deverá estar presente, é o principal membro da família, o legítimo herdeiro de todas as indústrias que integram o patrimônio dos Médici.

_Represente-me diante de todos, melhor, se quiser, assuma meu lugar, porque aqui não fico mais um minuto, outros precisam de mim.

_Ricardo...

_Não sabemos bem o que aconteceu com o jovem Médici... Dizem alguns que ele teve uma crise nervosa, outros que ele foi para casa onde levou algumas mulheres “sem credenciais” - uma forma de acalentar o coração; uns poucos que estava tentando resolver problemas de última hora de uma de suas empresas. Seja como for, o filho de Leonardo causa estranheza ao deixar o recinto onde são velados seus entes mais queridos - anuncia o apresentador de um dos programas que melhor retratam o mundo cão em uma rádio local.

_Pois eu acho que ele foi sacar a grana e cair na gandaia, não é todo dia que um garoto sem escrúpulos como aquele, que acabou com o aniversário da filha dos Marcondes, tem a oportunidade de torrar toda a bufunfa da família na casa das primas , e olhem que primas, meu amigo ouvinte, tem umas que até me arriscaria – malda o outro participante.

_Será mesmo, Durval? Acho que não! Ricardo é doido, perde a cabeça fácil, só nos lembrarmos do ringue que se transformou o velório de Anna Ferrara, no Municipal, mas daí a abandonar o pai e a tia mortos para esbaldar-se nas águas da luxúria já é demais! – rebate o apresentador.

_Só se for para você; pra mim, não! Ele nunca prestou! Coitado de doutor Leonardo, um homem de um caráter ilibado, de um coração santo e de uma alma sublime, ter um filho daqueles... O bicho é arrogante, vagal e não poupa esforços para machucar os mais humildes, diferente de seu pai. Quantas vezes não o vimos doando colchões aos asilos, cobertores aos desprevenidos, comida aos famintos? Leonardo era uma figura exemplar, ficará para sempre na memória do povo paulistano. Já seu filho, cruzes, tirando as festas que estragou e as pequenas que “devorou”, nada mais me vem à lembrança.

_Acho que você está pegando pesado com o rapaz, ele é novo, tem muito ainda que aprender... – tenta atenuar o apresentador.

_... E que seja logo! São Paulo não pode ficar sem um guardião da moral e dos bons costumes, porque era assim que víamos seu pai, Leonardo Médici...

_... e doutora Márcia também! - completa o apresentador.

_Dessa nem se fala, era de uma santidade jamais vista! Que mulher! O céu deve estar em festa com a chegada destes dois.

_O que faz aqui? – pergunta a mãe de Gabriel a Ricardo, ao vê-lo.

_Não poderia deixá-la sozinha. Senti vontade de vir! – responde, aproximando-se do caixão do bombeiro, cujo material, à primeira vista, assemelhava-se a papelão, em cuja coloração eram visíveis gotas de um roxo escuro.

_Mas...mas...e sua família? – pergunta, cobrindo-se do frio, naquela pequena sala.

_Há muitos bajuladores ocupando meu lugar; aqui só estamos nós dois! Venha, saia de perto da porta, está muito frio.

Sentam-se num banco de concreto.

_Obrigado por tudo que fez por meu filho. Você lhe devolveu a dignidade.

_ E ele salvou minha vida!

_Hã? O que disse?

_Se ele não tivesse me provocado naquela noite, com aqueles papos de doido, eu não teria mudado o rumo de minha história; certamente estaria por aí, fazendo mal às pessoas, achando-me melhor que o próximo, rodando a noite atrás de prazer....Hoje vejo o quanto mudei! Ele era mesmo um salvador de vidas! – levanta-se e se aproxima do corpo do rapaz, cuja maquilagem cobre parte das enormes cicatrizes. _ Obrigado por existir, meu AMIGO!

A mulher se emociona.

A hora corre...

_Cadê o filho de Leonardo? – pergunta a apresentadora de tevê, surtando com a ausência do único herdeiro na cerimônia de cremação do próprio pai.

_Ninguém sabe! É um mistério! O rapaz disse que ia tomar uma água e não voltou mais – responde o repórter.

_Será que não foi uma vodca? Tem gente que se confunde – ironiza um comentarista.

O caixão de Gabriel desce bem devagar, suportado por duas cordas. Assim que as últimas flores são atiradas, os coveiros jogam pás e mais pás, até fecharem a cova.

_Então não nos veremos mais? – pergunta a mãe de Gabriel, sofrendo com a partida.

_Quem sabe! A terra é redonda, vai que nos cruzamos qualquer dia desses.

_Será um prazer! Obrigado por vir! Nunca poderei pagar pelo que nos fez.

Ricardo dá-lhe um beijo.

Jacira entra algemada a uma sala do CDP Feminino de Franco da Rocha. Uma advogada a espera, com muitos papéis em mãos.

_Se veio atrás de dinheiro, dê meia-volta e se retire, sou pobre que nem o Lula.

_Acalme-se, dona Jacira!

_ Dona? Tá me chamando de véia? Cruzes, Suzicreide! Preciso aumentar o creme, as rugas devem estar a saltar.

_Espere! Não disse nada disso – a advogada tenta consertar a situação. _Sou a doutora Elaine e estou aqui para ajudá-la.

_E como vai me ajudar? Não tenho um gato pra puxar pelo rabo.

_Esqueça isso dona...quer dizer, Jacira!

_Agora está melhor! Sinto o vento da mocidade bater de novo em meu rosto.

_Como é animada, mesmo neste lugar.

_Fia, já passei por tantas, que isso aqui até parece um spa. Mas de uma coisa sinto falta...

_De quê?

_De meu moleque! Nunca, nos últimos vinte e um anos, estive um só dia longe dele. É como se meu peito estivesse vazio... Como ele me alegrava! E como me deixava doida! Só de lembrar, tenho vontade de sair daqui e ir atrás dele pra lhe dá uns tapas. Oh bicho atentado! Tá pra nascer um igual!

_Por isso estou aqui! Faremos o que for necessário para que volte à sua vida normal, entretanto, tenho de ser honesta, seu caso está complicado, o juiz está irredutível; pedi que relaxasse a prisão, que determinasse uma fiança, visto que é ré primária. Mas, talvez por força da opinião pública, ele resistiu às minhas investidas. Você mexeu com uma pessoa muito poderosa, a psiquiatra era unanimidade entre seus pares.

_Pois pra mim era uma bisca.

_Não diga isso – repreende-a. _ Se as autoridades a ouvirem, pensarão que a matou premeditamente.

_Preme... o quê? Ah, fala sério, eu não matei ninguém! Até tive vontade, mas aquela cara de cavalo não me despertava coragem.

_Ainda bem, mas agora precisamos provar, para isso, colocamos todo o escritório de advocacia à sua disposição - entrega-lhe um cartão.

A mulher o assunta, curiosa.

_O que são todos estes nomes?

_São as advogadas que hoje trabalham no seu caso.

_Oxi! É muié pra dedéu. Se eu fosse do outro time, ia fazê a festa. Mas são boas mesmo?

_As melhores!

_Hum! Doutoras Mirese, Juliana, Rosana, Luciana... Mais óia! Tô admirada! Se essa muierada conseguí me tirar daqui, juro que volto a estudar, porque faz bem, né? Sou véia, ops, força de expressão, quero dizer vivida, mas ainda dô pro tranco. Sabe, posso ser burra com as palavras, mas entendo bem das coisas, porque comigo é assim, escreveu não leu o pau comeu, né, não, Suzicreide?

Doutora Elaine ri do jeito engraçado da mulher.

_ Mas, vamos ao que interessa, de onde vou tirar a bufunfa pra lhes pagar? Não tenho onde cair morta e agora que tô vendo o sol nascer quadrado, não tem nem como receber meu salário. Não quero Ricardo nesse rolo, eu fiz o estrago e agora tenho de passar o pano, meu moleque já sofreu muito e não quero que chore mais. Chega de lágrimas, né? A vida é difícil, mas nóis vence! Ah se vence!

_Já lhe disse, não se preocupe com isso.

_Não vai me dizer que são do time da boca de goiaba da Márcia. Gente que esfola os pobres e se pousa de santo. Pois não aceito! Prefiro ter a ajuda de um advogado público, nele sei que poderei confiar. Acha! Uma dona surge aqui do nada, com um bando de nomes de muié, dizendo que vai tudo se juntá pra me defender... Hum! Sei!

_Está bem! – cede a advogada. _Há uma pessoa pagando por isso...

_Já disse que não quero meu moleque envolvido nisso! Nem tente! Dê meia-volta e chispa daqui. Prefiro ficar presa a ter de lhe tirar algum. Não! Não! Não quero! A não ser que diga de onde vem esse dinheiro, porque de louco, santo e bandido todo mundo tem um pouco, basta vê o Marcos... Com aquela cara de retardado, o bicho era o tigrão da bandidagem. Que não prestava eu já sabia, daí a ser um dos maiores donos da boca é outra coisa.

_ Não é Ricardo que está pagando pelos nossos serviços.

_ Não? Oxi! Não sabia que eu tinha tantos fãs.

_ E se eu lhe disser quem é, ficará mais tranquila?

_ Claro! A coisa melhora, né? O seguro morreu de velho!

_Quem está lhe custeando é...

_Deixe que eu mesmo fale!

_VO-VO-VO-VO-VOCÊ??? SANGUE DE JESUS TEM PODER!!! – entra em choque, caindo da cadeira.